24.4.06

Édipo

[Emil Nolde - Mar de Outono VII]

Ainda sabíamos a sal, o banho estava atrasado. Que belo dia de praia. A casa de férias, alugada, era pequena, desconfortável, mas tinha algo imensurável: uma vista imensa sobre o oceano, do alto das escarpas. À janela do quarto espreitávamos talvez os reflexos dourados do Sol a desaparecer dentro do mar. Um fim de tarde digno de um postal piroso. Ainda não tínhamos sido chamados para jantar. Na sala, as vozes elevavam-se ríspidas, ladradas. Fomos brincar, para cima da cama, rindo e falando alto, para tentar não ouvir a tempestade que se levantava. Em vão. A voz do nosso pai ribombava-nos nas entranhas, cada vez mais alta. A mãe chorava e gritava. Ouvia-se também a voz da outra mulher, da amante do nosso pai. A minha irmã começou a chorar baixinho. Abracei-a. Aos gritos dos adultos juntava-se agora o choro do meu irmão, bebé de colo. Ao colo da minha mãe. A noite caíra, entretanto, e a tempestade crescia de intensidade. Não sei os motivos. Eram normais as discussões. Mas esta adquiria proporções nunca vistas. Parece que a mãe os tinha apanhado em flagrante, e atirava-lho o cara. Nós, agarrados um ao outro, chorávamos baixinho, aterrorizados com cada novo berro colérico do nosso pai. Angustiados com cada novo queixume da mãe. Depois faltou a luz. A minha irmã gritou muito. Da sala deixámos, de repente, de ouvir o nosso pai e a sua amante aos berros. Agora apenas nos chegavam os gritos desesperados da mãe, o choro aflitivo do meu irmão bebé, o som de algo a rebolar no chão. E sons secos. Pontapés. Murros. Empurrões. Estão a bater na mãe! Estão a matá-la! Agarrados um ao outro chorávamos descontrolados. Não me lembro de mais nada. Não sei como nem porque acabou o espancamento. A mãe entrou no quarto, a chorar, vermelha dos murros e dos pontapés, com o bebé ao colo. O bebé que tinha rebolado pelo chão enquanto o nosso pai e a amante a espancavam. Disse-nos que a abraçássemos, e saímos de casa, descalços, numa terra desconhecida, à procura de quem nos desse abrigo, de quem nos levasse para casa.

Fez ontem 60 anos de idade, e, apesar de não ter sido poupada pelas agruras da vida, é hoje uma mulher muito mais feliz, forte e digna do que os que a espancaram covardemente naquela noite de Verão, há cerca de 30 anos.

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