[Miguel Ângelo - Pietà]
à memória do Rui
Um grito partindo o ar pesado daquela manhã de Fevereiro. Não conseguira aproximar-me. Deixara-me ficar no meio da multidão. Ao longe. Não era capaz de ver aquilo. Ainda assim fizera questão de estar presente. Para despedir-me? Não sei. Não consegui fazê-lo, até hoje. Vi-o, no dia anterior. Os seus contornos, debaixo de um lençol. Imagem gravada para sempre. E naquela manhã não sei o que me levou ali. Não sou crente. Não acredito na vida depois da morte. Mas estava ali. Vejo-o sair da capela. Sinto-me sem forças, pronto a cair. Retenho as lágrimas, involuntariamente. Porquê? Tanta gente chora. Não consigo. Nó na garganta, cada vez mais apertado. É agora. É agora que vou chorar. Não. Não saem. E sufoco. Ardo por dentro. O trajecto é curto. Vou-me deixando ficar para trás. Perdido. E agora. Tudo se passa lá ao longe. Não me consigo aproximar. Deixo-me ficar aqui, no meio da multidão. Não quero ver aquilo. Não sou capaz. Percebo o que se passa apenas pelos silêncios da turba e pelos movimentos do padre e dos que o carregam, ao longe. Descem-no. Sinto-me a morrer. E depois o grito. De mulher desesperada. Partindo o ar pesado daquela manhã de Fevereiro.
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