30.4.07

Releituras - Kafka

[Bosch - O carro de feno (painel central)]

"Durante a conversa o abutre ouvira serenamente, deixando vaguear o olhar entre mim e o homem. Via agora que ele entendera tudo, levantou voo, curvou-se muito para trás para ganhar balanço e como um atirador de lanças enfiou então o bico pela minha boca até ao mais fundo de mim. Ao cair para trás senti-me liberto enquanto no meu sangue que enchia todas as profundezas e transbordava de todas as margens ele se afogava sem salvação."
Kafka, O abutre, ed. Assírio e Alvim


"Der Geier hatte während des Gespräches ruhig zugehört und die Blicke zwischen mir und dem Herrn wandern lassen. Jetzt sah ich, daß er alles verstanden hatte, er flog auf, weit beugte er sich zurück, um genug Schwung zu bekommen und stieß dann wie ein Speerwerfer den Schnabel durch meinen Mund tief in mich. Zurückfallend fühlte ich befreit, wie er in meinem alle Tiefen füllenden, alle Ufer überfließenden Blut unrettbar ertrank."
Kafka, Der Geier

A viragem

[Caspar David Friedrich - No barco à vela]

Porque há aqueles momentos em que aquilo que parecia. A nau que parecia derribada toma de súbito rota nova. E nem sempre o que parece. Lembro-me daquele dia há mais de trinta anos. Uma névoa pegajosa. E não sabia da mãe. Perdido. Havia areia e mar. E a névoa. E eu gritava mãe mãe. E achava que ela não me achava. Que não. E depois ela achou-me. Também ela me tinha perdido. Tínhamo-nos perdido um ao outro. E a dor dela tinha sido tão grande. E eu percebi que achar que só eu tinha perdido era stultitia maxima. Que às vezes quem parece não ter perdido. E assim segue a nau estultífera. Estulta sempre estulta. Mas ergue de novo as velas e lança-se ao mar. Destroçada ainda. Mas firme.

Sempre o tempo

[Bosch - Dia do Juízo (painel central)]

omnia aliena sunt tempus tantum nostrum est

Séneca


Talvez fosse agora tempo. Depois de tanto andar. Pés rasgados sangrantes. Talvez fosse agora tempo. De largar a estrada. E ficar sem tempo.

29.4.07

Tempo

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor)]

Gracias a tu cuerpo doy

Por haberme esperado
Tuve que perderme
Pa'
llegar hasta tu lado
Gracias a tus brazos doy
Por haberme alcanzado
Tuve que alejarme
Pa'
llegar hasta tu lado
Gracias a tus manos doy
Por haberme aguantado
Tuve que quemarme
Pa' llegar hasta tu lado

(cantado por Lhasa de Sela)

Não era tempo. E no entanto. Há dias em que penso se. Agora fecho os olhos e não vejo nada. Nem negro. É como se o tempo. As horas. Os dias da serenidade. Deitava-me na areia e ouvia as ondas. E o Sol morno nas pálpebras. Mas não era tempo. E não são essas as memórias que me assaltam. Não não. Não tenho memórias. Ainda que me lembre daqueles dias mornos. Mas não é uma memória. Agora não vejo nada. Não me resta nada. Só o tempo. Que parece que.

Resposta a quem deu pela falta do veleiro

[Bosch - Nauis stultifera]

Agora é nau. Pesada e rangente. Atulhada de fantasmas e demónios. Água negra lodosa lutuosa. O claro veleiro ficou no mar claro. Seguindo a sua viagem. Aqui regressa a nau. Tombando aflita para o lado. E há fantasmas que nascem do lodo fedorento e abordam enfurecidos a nau esmagada de dores. E há um que rosna risus abundat in ore stultorum e os outros guincham e casquinam. Agora é nau. E volta ao pântano. De onde não mais sairá.

Espuma

[Caspar David Friedrich - Afloramento rochoso]

Porque não pedia que o amassem. Só que gostassem de si o suficiente para a sua presença não ser fastidiosa. Que os seus abraços não fossem um incómodo. Pensava olhando o mar da escarpa negra. Que os seus beijos não soubessem mal. Isso bastava-lhe para ser feliz. Porque sabia que não era possível ser amado. Porquê. Porque é que sabe tão bem a espuma branca das ondas trazida pelo vento. Não sei. Pois aí tens a resposta à tua pergunta. Era aquela hora em que o Sol bate com força na nuca. Como um martelo.

Releituras - Tchékhov

[Millais - Ophelia]

"Numa noite calma e luarenta de Julho, Olga Ivánovna estava no convés do vapor do Volga e olhava ora a água, ora as margens aprazíveis. A seu lado estava Riabóvski e dizia-lhe que as sombras negras na água não são sombras, mas sonhos, que à vista desta água-bruxa com seu brilho fantástico, à vista deste céu sem fundo e das margens tristes e pensativas que nos falam da vaidade da vida e nos dizem da existência de alguma coisa superior, eterna, beatífica, seria bom adormecer, morrer, tornar-se lembrança. O passado é vulgar, sem interesse, o futuro é insignificante, e esta noite divina, única em toda uma vida, acaba depressa, funde-se com a eternidade - então, para quê viver?"


Tchékhov, Lavandisca, ed. Relógio d'Água

Soon this space will be too small



Soon this space will be too small

And I'll go outside
To the huge illside
Where the wild winds blow
And the cold stars shine

I'll put my foot
On the living road
And be carried from here
To the heart of the world

I'll be strong as a ship
And wise as a whale
And I'll say the three words
That will save us all
And I'll say the three words
That will save us all

Soon this space will be too small
And I'll laugh so hard
That the walls cave in

Then I'll die three times
And be born again
In a little box
With a golden key
And a flying fish
Will set me free

Soon this space will be too small
All my veins and bones
Will be burned to dust
You can throw me into
A black iron pot
And my dust will tell
What my flesh would not

Soon this space will be too small
And I'll go outside
And I'll go outside
And I'll go outside

Cantado por Lhasa de Sela

انشاء اﷲ

[El Greco - Retrato de monge dominicano]
Ne te courbe que pour aimer.
René Char

Eu sei que não. Mas. Não posso deixar de sonhar. Ter-te de novo nos meus braços. Passar de novo as mãos pela tua pele. Proteger-te de todos os males. Não posso deixar de sonhar.

28.4.07

Natura abhorret uacuum

[Munch - Angústia]

É que. Estou cansado. Não sei. Talvez. E depois. Mas é que assim. De que serve. Podia. É que. Tão cansado. Sei lá. Valerá a pena. Outra vez. Voltar ao início. Passar por tudo outra vez. Caminho tão batido já. Sem fim. Não. Cansado. É que. Não lutar mais. Chega.

Releituras - Tchékhov


"Neste momento, em cima, do lado onde se põe o sol, apertam-se as nuvens; uma assemelha-se a um arco de triunfo, a outra a um leão, a terceira a uma tesoura... De trás das nuvens sai um raio largo e verde que se estende até meio do céu; logo após, ao lado do raio verde estende-se um raio violeta, a seguir um dourado, depois um rosado... O céu torna-se cor de lilás terno. Olhando para este céu magnífico, encantatório, o oceano fica, a princípio, carrancudo, mas breve adquire ele próprio umas cores meigas, alegres, apaixonadas, a que é difícil arranjar nomes na língua humana."
Tchékhov, Gússev, ed. Relógio d'Água

Si tu meurs, tu aimes encore.



Ne te courbe que pour aimer. Si tu meurs, tu aimes encore.

René Char



à memória do Rui

Fiquei de novo à porta. Portão fechado. Preciso de ti. Do teu abraço. Forte. Que me salves de novo. Deste naufrágio maior. Preciso de te ver. De te sentir perto de mim. Para outra vez me levantares do chão. E te poder abraçar com tanta força. Como naqueles dias. Agora abraço diferente. Porque o abraço de que precisava. Mas agora só contigo posso contar. Outra vez. Quamquam obiisti. Vtinam obirem et ego. Non est tempus tamen. Não sabias latim. Mas que importa. Nunca lerás estas linhas. Oxalá acreditasse na vida depois da morte. Gostava de pensar que tu me ouves. E eu sei que não. Que escrevo para mim mesmo. Que mais ninguém entenderá. Ainda que pense que sim. E que sentido faz escrever aos mortos. E que sentido faz.

Le sommeil

[Vermeer - Mulher dormindo à mesa]

Autrefois au moment de me mettre au lit, l'idée d'une mort temporaire au sein du sommeil me rassérénait, aujourd'hui je m'endors pour vivre quelques heures.

René Char


Dormir o dia todo e não acordar nunca mais para nunca mais passar por isto e acabar de vez com esta dor que me arranca as entranhas e fugir. De vez.

Releituras - Gógol


[Jerzy Czerniawski - Diário de um louco]

«Dia 25

Hoje, o inquisidor-mor entrou no meu quarto, mas eu, como tivesse ouvido ainda ao longe os passos dele, escondi-me debaixo da cadeira. Como não me via, começou a chamar por mim. Primeiro gritou: "Popríchin!" - mas eu, nem pio. Depois: "Aksénti Ivánovitch! Conselheiro titular! Fidalgo!" E eu, moita. "Fernando VIII, rei de Espanha!" Já me preparava para assomar a cabeça, mas pensei: "Não, amigo, não me aldrabas! Bem sabemos como tu és: vais outra vez derramar-me água fria na cabeça." Acabou por me encontrar e expulsou-me à paulada de debaixo da cadeira. Dói muito quando o maldito pau nos atinge. Contudo, fui recompensado por uma descoberta minha, feita hoje: fiquei a saber que qualquer galo tem uma Espanha debaixo das penas. Entretanto, o inquisidor-mor saiu furiosíssimo, ameaçando-me com um castigo qualquer. Eu, porém, dei ao desprezo a sua raiva impotente, sabendo que ele agia como uma máquina, como uma ferramenta dos ingleses.»

Nikolai Gógol, Diário de um Louco, Assírio e Alvim

Число 25

Сегодня великий инквизитор пришел в мою комнату, но я, услышавши еще издали шаги его, спрятался под стул. Он, увидевши, что нет меня, начал звать. Сначала закричал: "Поприщин!" - я ни слова. Потом: "Аксентий Иванов! титулярный советник! дворянин!" Я все молчу. "Фердинанд VIII, король испанский!" Я хотел было высунуть голову, но после подумал: "Нет, брат, не надуешь! знаем мы тебя: опять будешь лить холодную воду мне на голову". Однако же он увидел меня и выгнал палкою из-под стула. Чрезвычайно больно бьется проклятая палка. Впрочем, за все это вознаградило меня нынешнее открытие: я узнал, что у всякого петуха есть Испания, что она у него находится под перьями. Великий инквизитор, однако же, ушел от меня разгневанный и грозя мне каким-то наказанием. Но я совершенно пренебрег его бессильною злобою, зная, что он действует, как машина, как орудие англичанина.

Николай В. Гоголь, Записки сумасшедшего

sem título


animus in oculis habitat
auto-retrato I

él que no sabe de amores no sabe lo qué es martirio
(popular mexicano)


Antes de. Quando a lucidez. Presente. Talvez ausente. Começar o dia. Que não acaba. لي قلب جريح دمويّ


Ondas

[Peeters - Navegando na tempestade em costa rochosa]


Dai-me o sol das águas azuis e das esferas
Quando o mundo está cheio de novas esculturas
E as ondas inclinando o colo marram
Como unicórnios brancos.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Corpo

[Van Gogh - Pomar com ameixoeiras em flor]

Le seuil de l'immortalité
Est assez haut, en pierre, avec des plantes
On ne s'apercevait pas du tout qu'on le passait
Mais de l'autre côté
Des tripotées
D'oiseaux sans ailes ni sans eaux
Poussaient des cris d'échiran...
Boris Vian


Corpo estendido abandonado debicado pelo pássaro negro. Chove-lhe em cima chuva ácida ardente. Abrasa-o Sol impiedoso fumegante. Transido do beijo do Inverno. E não mexe. Corpo.

Noite

[Van Gogh - Noite estrelada sobre o Reno]

Noite pesada sem estrelas que me iluminem os passos tontos. Que me levam não sei a que estrada longa sem curvas. Porque as curvas escondem as surpresas e eu já não espero nada senão o esperar. Esperar o que não vem nem virá nem pode vir. Então para quê. Se já nada. Se.

27.4.07

Fear no more the heat o' the sun

[Rui Oliveira - Auto-retrato]

à memória do Rui

Fear no more the heat o' the sun
Shakespeare

Como naquele primeiro dia. Lembras-te. Peito aberto sangrante. O meu. Estendeste-me a mão. Não fosses tu. Afundava-me na terra mole. E rias-te comigo. E ias-me puxando. E mandavas-me pedras à janela para eu ir ver quem era. E eu ia. E eras tu com o teu riso traquina. E eu fui-me salvando. Agora que olho à minha volta e não vejo ninguém que me queira tirar da terra onde me enterro. Sabes. Às vezes parece-me ouvir um toque na janela. E eu vou ver e tu não estás lá. Não está lá ninguém. Preciso de ti. Podia-te abraçar sempre. Estavas sempre ali. Nunca me abandonaste. Hoje fui para te ver. Há coisa de uma hora. Mas fecham-te à noite. E eu deixei-me ficar agarrado ao portão. A chorar-te. A chorar-me. Já não sei. Já não tenho lágrimas salgadas. Fazes-me falta. E nunca me senti tão perto de ti. Porque à minha volta estão todos mortos. E nós é que estamos vivos. Ou sou eu que já estou morto. E ainda ninguém reparou.


Fear no more the heat o' the sun,

Nor the furious winter's rages;

Thou thy worldly task hast done,

Home art gone, and ta'en thy wages:

Golden lads and girls all must,

As chimney-sweepers, come to dust.

Fear no more the frown o' the great;

Thou art past the tyrant's stroke;

Care no more to clothe and eat;

To thee the reed is as the oak:

The sceptre, learning, physic, must

All follow this, and come to dust.

Fear no more the lightning flash,

Nor the all-dreaded thunder-stone;

Fear not slander, censure rash;

Thou hast finish'd joy and moan:

All lovers young, all lovers must

Consign to thee, and come to dust.

No exorciser harm thee!

Nor no witchcraft charm thee!

Ghost unlaid forbear thee!

Nothing ill come near thee!

Quiet consummation have;

And renowned be thy grave!


Shakespeare, Cymbeline, IV, II, 324-349

pudoris potius memor quam doloris

[Vermeer - Leiteira]

Projecto falhado de tradução da Passio Perpetuae et Felicitatis

Para as raparigas preparou o diabo uma ferocíssima vaca, aprestada de forma diferente do normal, correspondendo ao sexo delas o da besta. Assim foram despidas e apresentadas cobertas de redes finas. Horrorizou-se o povo, ao ver a delicada rapariga, e a outra com as mamas gotejantes, ainda de parto recente. Foram então trazidas, e vestidas com túnicas largas. Perpétua foi arremetida, e caiu de costas. E quando se sentou, puxou a túnica, rasgada de lado, para cobrir a perna, mais preocupada com o pudor do que com a dor. Depois, tendo pedido um gancho, apanhou os cabelos soltos - na verdade não era próprio uma mártir morrer de cabelos soltos, não fosse parecer prantear na hora da sua glória. Assim, levantou-se, e ao ver Felicidade caída, chegou-se a ela, estendeu-lhe uma mão, e levantou-a. E ambas se ficaram de pé. E vencida a dureza do povo, foram levadas até à porta Sanavivária. Ali, Perpétua foi amparada por um catecúmeno, de nome Rústico, que se encostava a ela, e como que desperta do sono (até então estivera em êxtase), começou a olhar à volta, e, para espanto geral, disse: "Quando é que vamos ser levadas a essa tal vaca?". E ao ouvir que isso já acontecera, não acreditou até ver marcas de violência no corpo e na roupa. Então, chamando o irmão e aquele catecúmeno, disse-lhes: "Permanecei firmes na Fé, e amai-vos todos uns aos outros, e não vos escandalizeis com a nossa paixão".

Paixão de Perpétua e Felicidade, XX

puellis autem ferocissimam uaccam ideoque praeter consuetudinem conparatam diabolus praeparauit sexui earum etiam de bestia aemulatus. itaque dispoliatae et reticulis indutae producebantur horruit populus alteram respiciens puellam delicatam alteram a partu recentem stillantibus mammis ita reuocatae et discinctis indutae prior perpetua iactata est et concidit in lumbos et ubi sedit tunicam a latere discissam ad uelamentum femoris reduxit pudoris potius memor quam doloris dehinc acu requisita et dispersos capillos infibulauit non enim decebat martyram sparsis capillis pati ne in sua gloria plangere uideretur ita surrexit et elisam Felicitatem cum uidisset accessit et manum ei tradidit et suscitauit illam et ambae pariter steterunt et populi duritia deuicta reuocatae sunt in portam sanauiuariam illic perpetua a quodam tunc catechumeno rustico nomine qui ei adhaerebat suscepta et quasi a somno expergita adeo in spiritu et in extasi fuerat circumspicere coepit et stupentibus omnibus ait quando inquit producimur ad uaccam illam nescioquam et cum audisset quod iam euenerat non prius credidit nisi quasdam notas uexationis in corpore et habitu suo recognouisset exinde accersitum fratrem suum et illum catechumenum adlocuta est dicens in fide state et inuicem omnes diligite et passionibus nostris ne scandalizemini

Passio Perpetuae et Felicitatis, XX

É como te digo

[Francis Picabia - M'amenez-y]

Deusnossenhormacuda.
Não não não.
E no entanto.
Mas não pode ser.
É como te digo.
Mas quem te contou.
Está-se mesmo a ver.
Pode lá ser.
Não não não.
Ainhanossassenhora.

A dança

[Cézanne - Jardim em Les Lauves]

La vie, c'est comme une dent
D'abord on y a pas pensé
On s'est contenté de mâcher
Et puis ça se gâte soudain
Ça vous fait mal, et on y tient
Et on la soigne et les soucis
Et pour qu'on soit vraiment guéri
Il faut vous l'arracher, la vie

Boris Vian

Deixar de. Porque há dias que. Por mais que os tentemos colher não se deixam apanhar. Voltar à cela por porta angusta. Estendido sobre o catre. Rijo. Olhos no tecto baixo. Contar o tempo que passa e não pára de calcar قلبي . Vehementissime. E esta parede lisa. Tivesse ela rugas. Poderia trepá-la. Chegar ao tecto - e cair outra vez outra. Mas assim. Revolver-me na enxerga. E pensar que. E depois. Não vale a pena. Tentar olhar o céu. E bater com os olhos no tecto negro. E cair desamparado no catre. Porque não há espaço para cair no chão. Ainda que o houvesse. É que não há chão. Catre angusto porta paredes lisas que se beijam umas às outras em amplexo de morte. As quatro. حبيبي suspiram. Que ninguém as ouça. Prontas para me esmagarem em abraço fatal. E eu sinto o catre rijo e lanço os olhos ao tecto negro. Deixar-me ir. Abraço das quatro paredes lisas. Mas entre o catre negro. E o tecto rijo. Não sei. Desistir.

Quod si sal euanuerit

[Van Gogh - Campo de trigo sob céu ameaçador]

Corpo lançado à terra. Semeado de dor. Olhos fechados trancados. Mãos arrepanhadas de mágoa. Rasgar a terra com as unhas comidas. Dedos doridos de tanto rasgar. Regar a terra com lágrimas insípidas. Vos estis sal terrae. Perderam o sal. Gasto. Água só. Eivada de sangue. Que rega a terra rasgada. E o chumbo do céu desfaz-se em torrentes de aço. Carne rasgada de terra que ensopa a boca. Lábios abertos em respiração lenta pausada. Muda. Regam a terra torrentes de lágrimas. Sem sal. Que mais sal não tem o corpo de tanto aguar.

26.4.07

Porfia

[Van Gogh - Caminho com choupos]

Harto de tanta porfía
sostengo bevir tan fuerte
qu'es triste el ánima mía
fasta que venga la muerte

En tus manos la mi vida
encomiendo condenado.
O piedad mereçida!
Por qué m'as desanparado?

Fin hará la profecía
dada por mi mala suerte
qu'es triste el ánima mía
fasta que venga la muerte

(anónimo espanhol, s. XV/XVI)

Caminhos II

[Memling - Vir dolorum]

Não ir. Por ali. Porque. Este vento. Feroz. Veloz. Fosse ele mais forte. E me levasse a alma. Ab immo. E me lavasse a alma. Não. Por ali. Silêncio. Folhas dançantes. Lá vem. Silenciosa. Rasgando-me as entranhas. Sinto-lhe as garras de aço. Outra vez. Sempre. Para sempre. Por ali. Não ir. Não voltar. Estou cansado. Ficar.

Caminhos I

[Memling - Vir dolorum]

Trilhando os caminhos que trilhámos juntos no primeiro dia batidos os caminhos não nós pelo vento que empurra puxa pontapeia mas não dói tanto como esta garra que agora me agarra rebenta o coração sangrante.

Manhã

[Caspar David Friedrich - Mulher à janela]

Quero
Nos teus quartos forrados de luar
Onde nenhum dos meus gestos faz barulho
Voltar.
E sentar-me um instante
Na beira da janela contra os astros
E olhando para dentro contemplar-te,
Tu dormindo antes de jamais teres acordado,
Tu como um rio adormecido e doce
Seguindo a voz do vento e a voz do mar
Subindo as escadas que sobem pelo ar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

25.4.07

Imago

[Bosch - Nauis stultifera]

Porque as noites não custam tanto. Porque há o escuro e com o escuro não se vê nada. E quando não se vê nada. Porque a memória é feita de imagens. E as imagens não se vêem no escuro. No escuro só há sono. Depressa vem. O sono. Quando não se vê nada. Porque estão à minha volta. As imagens. E não as vejo nas trevas. E os cheiros. Apagados. Agora já não me atormentam. Porque desapareceram. Mas as imagens. Ai as imagens. Pudesse eu apagá-las. Então escondo-as. Na escuridão. E enrolo-me no ninho. E não vejo nada. Porque as trevas.

As manhãs são o pior. Porque está liberta. A mente. Solta e selvagem. Sem freio. Tomar tomar. Já. Um copo de água. Mas demora a prendê-la domá-la. Cavalo negro indómito arrastando a alma. Platão. No Fedro. Cavalo branco cavalo negro. Alma com rédeas. Anacreonte. Mas sabe. Agora sabe. Mas não interessa. Agora não interessa. Lançar as mãos à alma. Domá-la. A indómita. Agora sossega. Sim. Até à noite.

Porque à noite regressam as trevas e escondem-se as imagens. E vem o sono. E com ele a paz. Não dói. O Rui dizia que não doía. Que dormia para não doer. Mas era uma dor diferente, a dele. Pior. E quando me dói lembro-me dele. E sei que esta dor. Não é uma dor. Não é. Porque não mata. Porque esta dor é uma cócega comparada com a dele. Mas. Pois. Pudesse dormir eu o resto da vida. É que. O pior são as manhãs.

Enquanto não

[Preti - São Sebastião]

Antes de os químicos. Enquanto não controlo. Dura manhã. Pesada. Chumbo no céu. Na alma. Grossas flechas rasgando-me a carne. Voltar aos lençóis. Gelados. Não mais sair. Sangrar o dia. Parar o tempo.

Viagem

[Bosch - Nau dos loucos em chamas]

Porque eu trazia rios de frescura

E claros horizontes de pureza
Mas tudo se perdeu ante a secura
De combater em vão

E as arestas finas e vivas do meu reino
São o claro brilhar da solidão

Sophia de Mello Breyner Andresen


Recolher. As velas. Barco atracado. Preso na areia. Velas rasgadas de tempestades muitas. Vela rota espessa de remendo sobre remendo. Embalado pelo vento já não pelo mar. Range rouco rouco. Louco. Dançando lento no vazio. Seco. Beijado pela areia já não pela onda. Velas recolhidas. Acabou. A viagem.

24.4.07

Acordar

[El Greco - El soplón]

Acordar. Abrir os olhos pesados. De sal. Voltar ao frio pesadelo. Apagar a luz. E depois. Voltar ao ninho quente. Agora frio. Molhado.

23.4.07

retrorsum

[Münch - Noite em S. Cloud]

Há dias em que. Se me perguntassem se. Não sei. Talvez. É que. Às vezes parece que tudo. Não sei. Quando já parecia. E agora. Outra vez. Não sei. Ponho-me a pensar se. Porque. Porquê. Há dias em que.

Vou ficar a olhar o mar

[Caspar David Friedrich - Monge junto ao mar]

moi je t'offrirai

des perles de pluie
venues de pays
où il ne pleut pas
je creuserai la terre
jusqu'après ma mort
pour couvrir ton corps
d'or et de lumière
Jacques Brel

Ferida rasgada de novo. Cicatriz arrancada. E agora. Esperar que feche. Mais espessa. Mais feia. E este vazio. Que me sufoca. Olhando à volta. À procura. De quê. Não vale a pena. Gotas salgadas de mar. Plangente. Lavam-me a cara fria marcada do vento. Mãos enterradas na areia. Não vale a pena. Olhos ardentes queimados do Sol. Do sal. Recolher à cela. Não. Vou ficar aqui. A olhar o mar. À espera de nada. Não tenho de esperar. Não voltará. Mas vou ficar. A olhar o mar.

As mãos

[Delacroix - Mar visto de Dieppe]

Mãos


Côncavas de ter
Longas de desejo
Frescas de abandono
Consumidas de espanto
Inquietas de tocar e não prender.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Glosa. Côncavas de quem não tem. Mas dá. Porque. Aquele quadro do Arpad. Le seul cadeau que je peux t'offrir. Isto é o que ele diz. Ce que j'ai de plus précieux. Côncavas de tocar. Leves. Longas. De. Não é. Não é de desejo. As mãos não sentem. As mãos não desejam. Falam. As mãos dizem. E não é desejo. É حب. Abandonadas sobre o teu corpo. Quentes. Murmuram. أحبك. Sossegadas. Não prendem. Nunca. Só tocam. Leves. Quietas.

21.4.07

Parate uiam Domini

[Bosch - São João Baptista]

Ἑτοιμάσατε τὴν ὁδὸν κυρίου, εὐθείας ποιεῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ
Lc 3, 4

O caminho. O gelo. E aquele ronronar das rodas esfregando os carris. Via a vida escapar-me pelos olhos. Enquanto os lançava contra o céu negro rasgado de branco. Nunca vira a Via. A Láctea. Tão branca. Os dedos dormentes. E aqueles pontinhos brilhantes. Furando-me a alma. E virava o pescoço e tirava a cabeça da janela e a imagem que me chegava à mente ainda era a da Via. A Láctea. Porque já não via nada. Negro. A escuridão pastosa. E havia aquele silêncio que me gelava o corpo. Louco. O silêncio. Cortado de branco. Enrolado no casaco gelado. E depois deixei de ver. E morri.

Rectas facite semitas eius. Abri os olhos. Novo. O céu cinzento negro pesado. Se calhar chovia. Havia humidade no ar. E a branca bola distante. Forçando o chumbo celeste. Casaco gelado lançado ao chão. Tanto frio. Sempre o ronronar. Dos carris acariciados. O vento forte entrando pelas frinchas. E depois acordei. Para a vida nova.

20.4.07

O tremor

[Leonardo da Vinci - Esquema de máquina voadora]

...maior que tudo quanto existe...

Vinícius de Moraes

Tremor na alma. Tinha-o dito às ondas. Quando fui ver o mar. Fustigado pelo vento de areia. Olhos lançados ao horizonte. E tremi. Pensei que fosse do abraço do vento. Do beijo molhado do mar. Tremendo. Murmurando às ondas.

Sem título

[Turner - San Giorgio Maggiore ao amanhecer]

Emudeço. Se pudessem palavras dizer descrever pintar. Por isso olho-te. Deixa-me olhar para ti. E não dizer nada. Porque não são precisas palavras. Porque.

19.4.07

totus tuus

[Turner - Colour beginning]

Nos meus braços. Não me canso de o escrever. De o dizer. Não me canso de te ter. Aninhado no meu abraço.
totus tuus
te ab omni malo protegam
quia quod in corde habeo
fortissimum me fecit hominum
quia quod in corde habeo
uerbis non possum describere
Embalando-te. Pele com pele. Alma na alma. Totus tuus.




18.4.07

ἡ ἀγάπη οὐδέποτε πίπτει

[Hemessen - Mulher pesando ouro]

Revolvendo a areia estéril. Mão dançante. Procuro não sei o quê. Um tesouro. Adormecendo os olhos sobre o mar. Não há ouro nestas praias. E não é ouro que procuro. Sei que que aqui está. Não sei onde. Mas está. Está aqui. O meu tesouro. Nascido da areia estéril. E depois lanço os olhos ao mar. Sussurro as palavras. E levo o meu tesouro no bolso. Não é ouro. É o meu tesouro.

16.4.07

Te tangere

[Bosch - O jardim das delícias (pormenor)]

Pele na pele. Arrepio. O teu toque. Morrem-me todos os sentidos. Fica o tocar-te. A tua pele. A minha alma cheia de ti. O tempo já não é. Nada mais. Só tu. Pele na pele. Ninguém mais. E há aqueles mutantes. Que nada podem. Porque. Na tua pele. Só nós.

15.4.07

até à última gota de mim

qalbî laka

até à última gota de mim
mesmo que me esvaeça rendido
onde em tempos prevaleci altivo
tenho agora o peito aberto e doce
e mostro-te o meu coração

14.4.07

Os instantes

[Dürer - Estudos de auto-retrato, mão e almofada]

Quando eu morrer voltarei para buscar

Os instantes que não vivi junto do mar.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Se não saísse nunca daqui. Face abrasada pelo Sol. E ficar o resto do tempo a olhar as ondas. Não cairia nunca a noite. Ou não daria eu por ela. O marrar das ondas. Isto é Sophia. As ondas. A marrar. Foi ela que escreveu. Porque só o marrar das ondas na areia dura me despertaria o olhar. Isto fui eu. Ficar aqui. Passando as mãos pela tua face. Pés lavados pela água salgada.


قلبي لك

13.4.07

Ἕρος



Ἕρος δ'αὖτ᾽ ὲτίναξεν ἔμοι φρένας,
ἄνεμος κατ᾽ ὄρος δρύσιν ἐμπέσων.

(Safo)

de novo me agita Eros o coração,
vento pela montanha lançando-se sobre os carvalhos

قلبي لك

11.4.07

Sentido

Agora que te vejo tudo volta a fazer sentido.

O portão

[Caravaggio - São João Baptista]

Tenho passado perto de ti e pensado em ir dizer-te bom dia. Sim. Eu sei. Tenho escrito que não consigo. Entrar. Procurar. Já não sei onde estás. Não te vejo há quatro longos anos. Desde aquela manhã de Fevereiro. Lembras-te. Havia tanta gente. Claro que te lembras. Não me lembro de onde te deixaram. Não quis ver. Bom, mas já começo a divagar, como é hábito. Lembras-te. Dizias que eu seria feliz um dia. E eu sorria e mirava os teus olhos ingénuos. E eu dizia-te que já era feliz. Que tu. Isto não dizia. Claro. Não era preciso. Tu percebias. E dizias que não com a cabeça com aquele teu ar trocista. Tu sabias. Que não serias tu que eu. E é isso que te quero ir dizer. Começo a ganhar coragem para franquear aquele portão. Para ir ter contigo. E dizer-te tu sabias.

Mundo novo


[Dürer - O mestre-escola]

Cheirava a terra molhada. Doce da chuva recente. Talvez fizesse frio. A pele arrepiada do gelo matinal. Não me lembro bem. Havia aquele Sol fraco de Outono. Ou não. Só me lembro do cheiro da terra molhada. E da novidade. O gradeamento verde. Ou se calhar não. Não sei se era verde. Talvez fossem apenas os arbustos que o abraçavam. Verdes pontuados de bagas vermelhas. Sim sim. Havia molhos de bagas vermelhas. E aquele arrepio de entusiasmo. Ou de frio. Já falei do gelo matinal. Que não me lembro se. Porque aquilo de que me lembro é da terra molhada. Do cheiro. Do meu mundo novo. Como era. Não me lembro. Foi há demasiado tempo. E no entanto. Sempre aquele cheiro a terra molhada. E a frio. Sim. Estava frio. Muito frio. E era bom.

10.4.07

O abraço

[Wright - Vista do lago de Nemi]

am fuaim mara
Canto de Amergin


Repouso. Braço de mar. Espelho verde tranquilo. Mesmo quando fervilha por dentro. Fiorde. Balança a superfície. Mas tão. Ondas suaves. Afagando as paredes de rocha escura. Quase não mexe. Embalado pelo choro das gaivotas. Ansiando o abraço do grande mar salgado. O beijo das ondas trazidas do oceano. Para se tornarem num só.

9.4.07

Sub arbore

[Claude Lorrain - Árvores]

illa sub arbore ut primum dedimus basium iam firmus eras in pectore meo

Tilia grandifolia

Cheira a futebol. Não sei. A Domingo à noite. Pijama quente. Na televisão os golos do dia. Chávena fumegante. Não sei se é nostalgia. Esta sensação morna no estômago. Quando se jogava ao Domingo à tarde. Agora não. Cheiro doce. Para dormir melhor. Tinha tanto medo. A angústia do dia seguinte. Noites curtas. Adiando o deitar. Como se. Medo do dia. A cama opressiva. E aquele silêncio. Sufocante. Os pensamentos. Não sei em que. Frio no estômago. Os medos. Não passava. A noite. A noite não passava. E eu fugia-lhe. Agarrado àquelas imagens. Preso. O golo. A classificação. A próxima jornada. O golpe no estômago quando acabava a emissão. A chávena fumegante. E depois aquele corredor. O quarto. Não sei se é nostalgia.

8.4.07

O despertar

[Dürer - Auto-retrato]
ἡ ἀγάπη οὐδέποτε πίπτει
I Cor 13,8


enquanto desenrolava tecidos de algodão al-qutn
القطن ntuq-la. E depois lembrei-me. Porque não pensava que. Achava que nunca mais. Já escrevi isto. Não me canso de o escrever. Na palma da minha mão. Tibi, παῖ παρθένιον βλέπων. Achava que a tinha perdido para sempre. Branca brilhante amarfinada. O tempo todo. Enrolada em al-qutn. Para me fazer pensar que a tinha perdido. Afinal estava ali ἡ ἀγάπη meo in pectore escondida. À espera. De que a descobrisses في قلبي despertasses. Segurei-a na palma da minha mão. Agora aberta. Surpreendido. he agápe oudépote píptei. Estiveste aqui este tempo todo في قلبي in pectore meo. E não te via. E depois achei-te

7.4.07

Cor in oculis habitat

[Dürer - Auto-retrato com 22 anos]

osculetur me osculo oris sui

Cant 1, 1

Lembras-te. Não te conseguia olhar nos olhos. Medo de que me visses o coração. Animus in oculis habitat. Não. Cor. Cor in oculis habitat. É que não era o espírito que queria esconder. O meu espírito é transparente. Era o coração. Porque não achava possível que. Porque tinha vergonha. Achava que era só eu que. E fugiam-me os olhos. Conformados. Imaginava-te nos meus braços. As minhas mãos nos teus cabelos. Pousando-te beijos na face. Mas bastava-me a tua presença. A tua luz. Era o suficente para ser quase feliz. Saber que estavas ali. Mas faltava-me isto: conseguir olhar-te nos olhos. Como olho agora. Porque já não me fogem os olhos. Quia nouisti cor meum. Porque to abri. قلبي لك . Já não tenho medo. Cor meum tibi offero.

Tempus

[Bonington - Adriático]

Quantos dias passaram. Podia contá-los no calendário. Um dois vinte trinta. Foi ontem. Foi há tanto tempo. Lembras-te. Debaixo da oliveira. Et fructus eius dulcis gutturi meo. Uma cortina à nossa volta. Que mais ninguém nos visse. Que o tempo não passasse. E não passou. E não passa. Tudo pára. Só tu. Nos meus braços. Apertado. O resto não interessa. O tempo não passa. O tempo não importa. Só tu.