[Rui Oliveira - Auto-retrato]
à memória do Rui
Fear no more the heat o' the sun
Shakespeare
Como naquele primeiro dia. Lembras-te. Peito aberto sangrante. O meu. Estendeste-me a mão. Não fosses tu. Afundava-me na terra mole. E rias-te comigo. E ias-me puxando. E mandavas-me pedras à janela para eu ir ver quem era. E eu ia. E eras tu com o teu riso traquina. E eu fui-me salvando. Agora que olho à minha volta e não vejo ninguém que me queira tirar da terra onde me enterro. Sabes. Às vezes parece-me ouvir um toque na janela. E eu vou ver e tu não estás lá. Não está lá ninguém. Preciso de ti. Podia-te abraçar sempre. Estavas sempre ali. Nunca me abandonaste. Hoje fui para te ver. Há coisa de uma hora. Mas fecham-te à noite. E eu deixei-me ficar agarrado ao portão. A chorar-te. A chorar-me. Já não sei. Já não tenho lágrimas salgadas. Fazes-me falta. E nunca me senti tão perto de ti. Porque à minha volta estão todos mortos. E nós é que estamos vivos. Ou sou eu que já estou morto. E ainda ninguém reparou.
Fear no more the heat o' the sun,
Nor the furious winter's rages;
Thou thy worldly task hast done,
Home art gone, and ta'en thy wages:
Golden lads and girls all must,
As chimney-sweepers, come to dust.
Fear no more the frown o' the great;
Thou art past the tyrant's stroke;
Care no more to clothe and eat;
To thee the reed is as the oak:
The sceptre, learning, physic, must
All follow this, and come to dust.
Fear no more the lightning flash,
Nor the all-dreaded thunder-stone;
Fear not slander, censure rash;
Thou hast finish'd joy and moan:
All lovers young, all lovers must
Consign to thee, and come to dust.
No exorciser harm thee!
Nor no witchcraft charm thee!
Ghost unlaid forbear thee!
Nothing ill come near thee!
Quiet consummation have;
And renowned be thy grave!
Shakespeare, Cymbeline, IV, II, 324-349