Ne te courbe que pour aimer. Si tu meurs, tu aimes encore.
René Char
à memória do Rui
Fiquei de novo à porta. Portão fechado. Preciso de ti. Do teu abraço. Forte. Que me salves de novo. Deste naufrágio maior. Preciso de te ver. De te sentir perto de mim. Para outra vez me levantares do chão. E te poder abraçar com tanta força. Como naqueles dias. Agora abraço diferente. Porque o abraço de que precisava. Mas agora só contigo posso contar. Outra vez. Quamquam obiisti. Vtinam obirem et ego. Non est tempus tamen. Não sabias latim. Mas que importa. Nunca lerás estas linhas. Oxalá acreditasse na vida depois da morte. Gostava de pensar que tu me ouves. E eu sei que não. Que escrevo para mim mesmo. Que mais ninguém entenderá. Ainda que pense que sim. E que sentido faz escrever aos mortos. E que sentido faz.
4 comentários:
A poesia não me pede uma especialização pois a sua arte é a
arte do ser.
Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria.
Pede-me antes a inteireza do meu ser,
uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade
mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma inteligência sem lacuna. Pede-me
que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui,
uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça Pede-me uma obstinação sem trégus, densa e compacta.
Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação
no real, o meu encontro com as vozes e as imagens.
ARTE POÉTICA II
Sophia de Mello Breyner Andresen
Fragmento
Inteireza do ser.
Pergunta:
Porque partiu a clara vela do claro veleiro no claro mar de Kuinji quase tão claro como toda a claridade contida naqueles cinco
quadros do Arpad que só às terças têm o portão fechado?
Não é bem uma pergunta, é uma pedrinha atirada à janela
Margarita
Errata- Kuindji
O veleiro no claro mar tinha para mim um sentido que se perdeu. Ou que perderam. Porque eu não o perdi. Para mim permanece. Mas de que vale. Olhando à volta só vejo o mar imenso. Não vejo o meu querido veleiro. Estes símbolos só fazem sentido quando são sentidos pelos dois lados. Assim abandono a imagem do claro veleiro no claro mar. Que no entanto permanece agarrada ao meu coração. Substituo-a pela imagem da nau dos loucos. Que é a que de novo me ataca e invade o coração abandonado. Sem a paz do claro veleiro em claras águas. Abandono-me à nau dos loucos. Que de tão cheia não tarda a afundar.
Pois era o veleiro que aqui me trazia.Aquele ou outro.
A sua possibilidade em ti. A inteireza do ser. A dualidade do ser.
A reinvenção do dia claro. Do vasto espaço. Do copo de água.
Porque perfilados de medo agradecemos o medo que nos salva da loucura.
Perfilados.
Altivos.
Solitários.
Erguidos.
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