29.12.07

Limo

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel esquerdo)]

Pousou o copo no parapeito e despejou os olhos no rio. Gostava de os ter ali. Bebendo o limo e a lama enquanto a noite morria devagarinho. Depois respirou fundo. A mão procurou o copo. Ali. Está ali. Baixo e largo. Um gole. Dois. Já chega.

Não devia beber tanto nesta noite tão. Mas quê. Olhar as estrelas e beijar a Lua como se fosse um romance cor-de-rosa. Não. Os meus olhos bebem o limo e a lama. Habituem-se ao gosto. Para quê olhar o céu. E o cheiro. Água morta. Buaaaaaaaaaaaach. Buaaaaaaaaaaaaach. Como se me chamasse. Ouve. Buaaaaaaaaaach. O mar é mais bruuuuuum bruuuuuum. Aqui as ondas são tão. E o cheiro. Eu entrava em casa com lama até ao pescoço. Uma rã na mão. E a água quente quente na banheira cheia. Sabia tão bem. Se aqueles dias. A pele a ficar vermelha e o vapor tão espesso. Aqui não há rãs. Tê-las-ia ouvido. Só morte. Às vezes penso em ti e choro. Depois os dedos engelhavam e a mãe gritava sai já do banho. Se agora me engelharem os dedos. E os olhos de te chorar. Tantos anos. E ainda. Eu acreditava que amanhã era sempre melhor. E agora quando acordo de manhã. E se me estende este dia sem fim. Porque eu gostava da noite eterna. Sabes. Dormir. Quando durmo não dói. E depois não acordar. Para não ter de enfrentar outra vez esta luz medonha. É limo. Cheira a limo. Não é morte. As forças começam a faltar. Não é por. Não. Isso já não me mata. É esta falta de. Este vazio. Mas não. Hoje não.

Recolheu os olhos e empurrou o copo para fora do parapeito. Ficou a ouvi-lo estilhaçar-se com um som negro contra a falésia. Depois o silêncio.

Talvez amanhã.

27.12.07

In memoriam

بینظیر بھٹو

Carceri d'Invenzione . III . Doppler

[Piranesi - Carceri d'Invenzione]

Na manhã em que foi libertado coçou a barriga e ouviu um estrondo lá dentro. Da barriga. Claro. Porque mais nada poderia estoirar daquela maneira. Assim. Ouviste? Deixou-se ficar um bocadinho a pensar. O que seria aquilo. Um estrondo dentro da sua barriga. Podia ter morrido. O perigo. E terem-lhe saltado as tripas cá para fora. Não. Que disparate. E coçou outra vez, só por via das dúvidas. E de novo um estrondo. Mas agora. Sim, sem dúvida. Agora estava mais grave. Como se a barriga se estivesse a ir embora. Mas se realmente estivesse. Não. Impossível. Ora deixa lá ver. Ora essa. Estava. Vermelha. A sua barriga estava vermelha. No lugar onde a coçara. Ora se estava vermelha. Então abriu a mão e colocou-a devagarinho. Assim. Sobre a pele da barriga peluda. E pensou: e se eu coçar outra vez. Afagou a barriga. Mas sem coçar. Só afagar. E vinha de dentro da barriga um rosnar rnh rnh assim rnh rnh como um tigre zangado. Zangado. Mesmo zangado. É que se não estivesse zangado não era bem assim. Era mais como. Então levado talvez por estes pensamentos coçou distraidamente a barriga. E fez-se ouvir outro estrondo. Assim. Agora mais grave. E se o som do estrondo era agora mais grave. Pronto. Não havia mais dúvidas. A sua barriga estava a fugir-lhe. Cada vez mais longe. Cada vez mais vermelha. E isso era óbvio para qualquer pessoa que soubesse um bocadinho de astrofísica.

25.12.07

Exitus

[Goya - Três homens cavando]

Quando o peso da noite se me lança pesado sobre o pescoço. E a luz das estrelas me rasga os olhos de tanto gritar. Quando o luar me dilacera as costas geladas e me beija os lábios de sangue. E o frio me incha a cama e me molha os lençóis. Quando os sonhos me arrancam as tripas. E relógio tic tic me esmurra as orelhas. Fumegantes. E as trevas me arrastam sozinho até. Quando os móveis estalantes murmuram a minha morte. E o sangue me ferve na cara. E os dedos se esmagam uns contra os outros. E o estômago ardente me rebenta o ventre. E o dia já não nasce.

وصية

لأمي خروقي
لأختي كتبي
لأخي كمبيوتري

24.12.07

Regista no Livro as palavras do Ateu

[Alcorão do século XVI, Lahore. Sura de Maria]

وَٱذْكُرْ فِى ٱلْكِتَبِ مَرْيَمَ إِذِ ٱنتَبَذَتْ مِنْ أَهْلِهَا مَكَانًۭا شَرْقِيًّۭا ١٦
فَٱتَّخَذَتْ مِن دُونِهِمْ حِجَابًۭا فَأَرْسَلْنَآ إِلَيْهَا رُوحَنَا فَتَمَثَّلَ لَهَا بَشَرًۭا سَوِيًّۭا ١٧
قَالَتْ إِنِّىٓ أَعُوذُ بِٱلرَّحْمَنِ مِنكَ إِن كُنتَ تَقِيًّۭا ١٨
قَالَ إِنَّمَآ أَنَا۠ رَسُولُ رَبِّكِ لِأَهَبَ لَكِ غُلَمًۭا زَكِيًّۭا ١٩
قَالَتْ أَنَّىٰ يَكُونُ لِى غُلَمٌۭ وَلَمْ يَمْسَسْنِى بَشَرٌۭ وَلَمْ أَكُ بَغِيًّۭا ٢٠
قَالَ كَذَلِكِ قَالَ رَبُّكِ هُوَ عَلَىَّ هَيِّنٌۭ ۖ وَلِنَجْعَلَهُۥٓ ءَايَةًۭ لِّلنَّاسِ وَرَحْمَةًۭ مِّنَّا ۚ وَكَانَ أَمْرًۭا مَّقْضِيًّۭا ٢١

سورة مريم ١٦-٢١


E regista Maria no Livro, quando ela se afastou da sua família para um lugar virado a Leste, e então colocou entre eles e ela um véu, e então enviámos-lhe o nosso espírito, e ele então apresentou-se-lhe com a aparência de um homem. Ela disse: “Na verdade refugio-me de ti junto do Misericordioso, se és piedoso”. Ele disse: “Eu sou apenas um mensageiro do teu Senhor, para te anunciar o nascimento de um menino sem mácula”. E então ela disse: “Na verdade, como posso eu ter um menino, se não fui tocada por homem nenhum, se não sou desonesta?”. Ele disse: “Assim disse o Senhor: 'Isso é fácil para mim, e tornamo-lo sinal para os Homens, e nossa misericórdia, e isto é ordem já cumprida' ”.
Alcorão, Sura de Maria (19), 16-21

O cadafalso

[Goya - Mulher batendo noutra com um sapato]

«Ele receava da mesma maneira um terramoto e um dia de sol em que pássaros desconhecidos parecem iniciar uma amizade eterna com casais de apaixonados que não conhecem. Nestes dias calmos, Lenz via uma saúde falsa, uma preparação da maldade - alguém, com cuidado, limpava o cadafalso na véspera de a vítima o pisar.»

Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na Era da Ténica

22.12.07

Os pés

P9120109
[Painel de azulejos do século XVIII - Convento da Graça (Torres Vedras)]
à memória do Rui

Passos curtos pensados. Se dás um passo mal dado. É a dor que te come por dentro. Outra vez. Sempre. E agora vai acabar. ما شاء اﷲ . Porque tu estás morto há muito tempo e esse não é o teu corpo.

Se eu te abraçasse agora com tanta força. Como naquela noite. Só que agora eu não te largava nunca mais.

Não te cabem nos sapatos. Dos tratamentos. Os vómitos. As dores. A fraqueza. E agora os pés. Inchados. Não te cabem nos. Sabes. O que a ti te rasga as entranhas. A mim arranca-me a alma.

17.12.07

الغيب

[Marcantonio Bassetti - São Sebastião]


‏أَمْ عِندَهُمُ ٱلْغَيْبُ فَهُمْ يَكْتُبُونَ
Alcorão.
Sura da Montanha.
Quarenta e um.

à memória do Rui

Devagarinho. Como se ainda.
_ estavas a dormir
_ estava
Tinhas a barba de quê. Dois. Três dias. Com esforço erguido. Sentado. A mão nas costas. Ou na barriga. E o terror nos teus olhos. Aquilo. Outra vez. E agora. Mas não. Não pode ser. Porque se afinal.
_ quando durmo não tenho dores sabes
_ sei
A dor que te arranca as entranhas. Aquilo.

E a cada dia eu subia as escadas e pensava é hoje que te digo. E depois secava-me a boca e o terror nos teus olhos. E deixava os meus caídos no chão.
_ quando durmo é como se morresse sabes


Um molho de ossos sobre a cama. E a pele. Devagarinho. Como uma concertina. Assim. Fininha. Para cima para baixo. E havia um silvo quase mudo.

A luz morta e eu mal te via. Depois morri-me escadas abaixo. E nunca mais te vi.

15.12.07

الباب

[Petrus Christus - Vir dolorum]

Se te pedir que me agarres a mão. E me abraces e me bebas as lágrimas. A mão que me espia as entranhas. Porque os dias não morrem e as noites.

6.12.07

Morte

[Chagall - Aleko e Zemphira ao luar]


المَوت

afogar-me no teu mar
الغَرَقُ في بَحْرِك


A galinha

[Cristofano Allori - Judite com a cabeça de Holofernes]

Se eu pudesse agarrar um machado e depois levantá-lo afiado à altura da minha cabeça. Assim. E deixá-lo cair sobre as mãos. O problema é que. Repara bem. Como posso cortar as mãos. As duas. E ao mesmo tempo segurar o machado. Olha. São Luís. A quem cortaram a cabeça. E ele não se ficou. Levantou-se e andou. Como as galinhas. Eu nunca vi. Mas parece que sim. Que correm depois de lhes cortarem o pescoço. E um santo não é uma galinha. Diz que pegou na cabeça com as mãos e a beijou. Se um santo consegue. Eu que não sou santo. Talvez consiga cortar as mãos as duas e ao mesmo tempo segurar o machado.

30.11.07

Sal

[Iluminura do Livro do conhecimento dos engenhosos aparelhos mecânicos de al-Jazari (s. XIV)]


الزَّبَدُ والمَلْحُ الَّتي تَطْفَحُ فَمـــــــــــــــــــي

لَيسَتْ لَون الألمِ الَّذي يَمْزِقُ أَحْشائـــــــي

a espuma e o sal que me enchem a boca
não têm a cor da dor que me rasga as entranhas


az-zabadu wa-l-mal
hu allatî tatfahu famî
laysat lawnu l-'alami alladhî yamziqu 'ahshâ'î



Kill the pain . XII . Stride

[Caravaggio - São João Baptista]
I take a small step now it's a giant stride
'O que é aquilo que brilha e me cega e me mostra as entranhas. As minhas.' E o velho de barbas negras olha para mim e abre a boca que é apenas um rasgão na cara feia e não diz nada. Levanta um braço e aponta. E o gancho oscila e eu com ele. Na direcção do braço. Como se não apontasse mas empurrasse. Para ali para aquele fogo imenso de onde saltam gafanhotos com cara de cobra hic delirat e se ergue uma escada. Sem degraus. Uma rampa. E de um lado e do outro machados e facas e garfos e espadas passionem legit Perpetuae e ganchos que se me agarram à pele e à carne mesmo sem lhes ter tocado. 'Anda sobe'.

E agora já não há gancho e eu ando sobre o fogo assim como. E ao longe a escada e eu não sinto as chamas que me devoram os pés e as pernas. Porque os meus olhos estão pregados na escada na rampa. Como vou conseguir subir. Atrás o velho das barbas negras rasga a cara num sorriso atrás de mim. Como é que eu sei. Se tenho os olhos pregados na rampa na escada. Mas sei. Ele ri-se.

Já está. 'Anda sobe'.

28.11.07

Os tiros

[Francisco Pradilla y Ortiz - Joana a Louca]

"Ontem sonhei que me matavam os filhos a tiro."
(frase que uma desconhecida disparou contra o Jorge, companheiro de infortúnios)


Puxou-me a manga assim até eu parar e olhar para trás. Abriu a boca num sorriso pequeno e bonito. Depois os lábios fecharam-se devagarinho. Assim. Vês. E aos poucos morreu-lhe o sorriso. Desculpa. Pensei que eras outra pessoa. Depois foi-se embora. Quer dizer. Virou-me as costas e deu três passos. Um dois três. Eu contei-os. Não sei se isto é ir embora. Até porque logo a seguir parou. Voltou-se para mim e já lhe estava outra vez o mesmo sorriso nos lábios. Sim. Só nos lábios. Ela só sorria nos lábios. Nos olhos não. Nem no resto da cara. Deu três passos rápidos. Não os contei. Mas foram três de certeza. Porque se chegou de novo ao pé de mim. E abriu a boca e não disse nada. E eu. Bem. Eu estive o tempo todo parado a olhar para ela. Podia ter seguido o meu caminho. Para onde não sei. Mas ir. Mas não. Fiquei ali parado como morto de pé. Um morto de pé. Como se esperasse que ela abrisse a boca e me falasse e me dissesse alguma coisa. Assim. Importante. Que me mudasse o dia e a vida. E ela fechou a boca e caiu-lhe o medo nos olhos. E os lábios torceram-se-lhe num silvo. Ontem sonhei que me davam um tiro na cabeça dos meus filhos. Um a um. Pum. Pum. Pum. Eu tenho três. Primus Secundus Tertius. O pai deles é louco e deu-lhes estes nomes. Imagina. Um tiro na cabeça. À maneira romana. Os nomes. Não os tiros. Não sei se os romanos davam tiros. Se calhar não davam. Eles gostavam mais de matar com leões. Sabes. Tinham assim umas máquinas grandes e mandavam leões para cima das pessoas. Pum. Quer dizer. Não era pum. Como é que fazem os leões. E tinham escravos para levarem as máquinas de leões. Se calhar nem eram leões a sério. Porque levar um leão na máquina. Se calhar eram leões de pedra. Isso sim matava logo uma pessoa. Pum. Um leão de pedra em cima da cabeça. E depois eu fiquei a olhar para os meus filhos assim com um tiro na cabeça cada um. Depois peguei neles um a um. E deitei-os ao rio. Uma mãe não deita os filhos ao rio. Mas eu deitei. Primus Tertius Secundus. O meu marido era louco. Ah desculpa. Confundi-te com outra pessoa. Adeus. Um sorriso alisou-lhe os lábios. Voltou-me as costas e foi-se embora.

25.11.07

Falco

[Alcorão do século VIII]

أنت الصَّقْرُ الّذي في السَّماءِ على النَّخْلِ
أنت الأَيلُ الّذي يَرْكُضُ بالواَحَةِ
أنت النَّهرُ
أنت الماءُ
أنت واحَتي في صَحْراءِ سَنَواتي
أنت سَيّدي
وأنا عَبْدُك

tu super palmas falco per auras
tu ceruus currens per oasin
tu flumen
tu aqua
tu oasis in eremo uitae meae
tu dominus meus
et ego seruus tuus

'anta s-saqru alladhî fî s-samâ'i ῾alâ n-nahli
'anta l-'aylu
alladhî yarkudu bi-l-wâ
hati
'anta n-nahru
'anta l-mâ'u
'anta wâ
hatî fî sahrâ'i sanawâtî
'anta sayydî
wa-'anâ
῾abduka

24.11.07

et seniores uestri somnia somniabunt

[Miguel Ângelo - A queda de Faetonte]

Tenho sonhado contigo. Desde há. Não sei. Muito tempo. Mas agora mais. Começaste a aparecer-me devagarinho. Assim. Momentos pequeninos. Ou não. Os momentos nos sonhos não têm medida. E tu lá. No meio de tantas outras imagens. Já te disse que sonho a cores. Os meus sonhos são festivais de luz louca. Há vermelhos que me entram pelos olhos dentro. E azuis perigosos. E verdes ardentes. E amarelos. E há gente que vive no meio da cor. Estás lá tu. Cada vez mais. Não sei porquê. E não és tu antes de. Nem és um tu sem tempo que bem poderia ser antes de. Não. Tu tens uma data nos meus sonhos. És tu. Depois de. Vivo. Com o teu sorriso traquina. E ontem eu perguntava-te mas tu não. E tu dizias não eu não. E agarravas-me e abraçavas-me e eu chorava e eu acordei e chorava. Porque agora tu vens todas as noites. Em momentos cada vez maiores. E eu deito-me cada vez mais cedo. Para te sonhar. Um dia não me levanto. Um dia não acordo. Para não te perder outra vez.

Pompeiis die IX K. Sep. anno DCCCXXXII A.V.C.

[O deus Baco, com o Vesúvio ao fundo]

Severo saúda o seu Tito.

Espero que estejas bem. Eu vou bem. Ou assim convém dizer nas cartas. Mas não. Os dias não passam e os deuses nada me trazem de bom. A Serena queixa-se da barriga. Não me morra ela como lhe morreu a mãe. Lembras-te. Aquele inchaço. E as mãos retorcidas arrancando a pele de dor. Olhava para a montanha e gemia. Ela. A Flávia. Porque a montanha não gemia então como geme agora. Os roncos. E as entranhas revoltas. Pobre Flávia. E agora a Serena. Não sei. Às vezes parece-me que os deuses. Sabes. Tenho medo. Há fumo. E estes tremores. Os anos. Um dia deixarei de escrever. Porque a mão já não me acompanha. Notarás aqui e ali a cera raspada. Porque me foge a mão. Assim. Como se ma puxassem. Mas não há ninguém no escritório. Só eu. Tu sabes. E às vezes é todo o braço que treme. Um repelão. E depois não me apetece raspar a cera toda e recomeçar esta carta. Perdoarás pois o teu velho amigo e o seu desmazelo. Tenho pena de que não estejas aqui. Sinto a tua falta. Tens de voltar. Já passaram nove anos. As reconstruções avançam. O chão tem tremido é verdade. Mas a cidade reergue-se. E enquanto treme assim aos bocadinhos é certo que não treme como. Lembras-te. Claro que te lembras. E eu não sei porque me banha este terror. Se a doença da Serena. A perspectiva da morte. A dela. E a minha. Sobretudo a minha. Não é no corpo. É na alma. Porque o corpo não está mal. Ainda ontem vim de Cumas. Lembras-te. Dia da Lua. Feira em Cumas. E estou cansado. Mas não mais do que quando tinha trinta anos. É na alma. Um peso um terror. E quando o chão treme. E o fumo. O que me mete medo é o fumo. Porque me lembra a morte. A pira. E eu sei que não tarda morro. Gostava de te voltar a ver. A montanha geme. Como a Flávia. E este Agosto vai tão quente.

Trata de ti.
Adeus.

Satisfecho

[Holbein - Loucura]

«Y desnudándose con toda priesa los calzones, quedó en carnes y en pañales, y luego, sin más ni más, dio dos zapatetas en el aire y dos tumbas la cabeza abajo y los pies en alto, descubriendo cosas que, por no verlas otra vez, volvió Sancho la rienda a Rocinante, y se dio por contento y satisfecho de que podía jurar que su amo quedaba loco. Y así, le dejaremos ir a su camino, hasta la vuelta, que fue breve.»
Cervantes, Don Quijote, I, III, XXV

22.11.07

Aurea folia

[Jacobello Alberegno - A colheita do mundo]

الخَريف
والأوراق الذَهَبية
في الأرض
والهَواء المَبْلول
والريح الّتي غَسَلَت عيوني
وخَرْقَها
autumnum
aurea folia
super terram
humida aura
uentus qui oculos lauat meos
et lacrimas
al-kharîfu
wa-l-'awrâqu adh-dhahabiyatu
fi l-'ard
wa-l-hawâ'u l-mablûlu
wa-l-rî
kh allatî ghasalat ῾uyûnî
wa-
kharqahâ

18.11.07

A Arkádi Ivánovitch Svidrigáilov

[Bosch - Extracção da pedra da loucura]

Para onde para quem olhas. Para mim. Que foi. Nunca viste. Assim. Ao perto. Um homem. Desesperado.

A Ródion Románovitch Raskólnikov

[Juan de Flandres - Joana a Louca]

Douda. Isso. Douda. Não sejas douda. Sandia. Sandeu. Sim. Tu. Doudo. Já viste como. Essas mãos. Quieto. Sossegado. Pois sim. Doudo.

A Aliona Ivánovna

[Goya - A casa dos loucos]

Aquele machado que eu não vejo e que me desce tão tão depressa sobre a cabeça tão pesado. Por trás. E se alguém me pudesse salvar. Abrir a porta e gritar. Se tu soubesses. Já está. E agora.

A Lev Nikoláevitch Míchkin

[Bruegel o Velho - Dulle Griet]

E se isto e se eu. Se fosse só. Não sei. Mesmo se. Não não. Mania. Nunca mais. Nunca. E as mãos. Mortas. Moles moles. Se as cortasse. E as pusesse assim. Secas. Negras. De me matarem. Mania mania. Morto. Eu. Só.

15.11.07

A Ivan Dmítrich

[Goya - Velho num balouço]

Então deixei de raciocinar e mergulhei no medo e na desesperança. Não porque me fosse inútil resistir mas porque me era mais fácil. E assim depositei cuidadosamente o que me sobrava de lucidez. E com as minhas mãos acabei com a minha vida.

8.11.07

O mar

[Ticiano - Filipe II de Espanha e Portugal]

há o cheiro do mar e a areia
e os dias pausados e as noites
e a espuma salgada e
quentes
os meus olhos
de querer-te tanto

3.11.07

Kill the pain . XII . Supplikant

[Caravaggio - São João Baptista]

nearly worn
kneeling like a supplicant
(Cantado por Massive Attack)

No guts. No blood. Depois chegou-se a mim scilicet senex atra barba e deu-me a cheirar o naco de carne e cheirava a mim. Quer dizer. Não cheirava a nada. Portanto era meu. Porque o meu cheiro não me cheira. A que cheiras tu. A mim. Pois claro. Talvez a quente. Sim sim cheirava a quente. Fígado. Ou estômago. Não sei. Não se deviam confundir assim. Mas eu não vejo nada neste talho. Só o cheiro a morte. E a sangue. Imundo. Tira-me deste gancho por favor.

E agora onde está o talho. Nesta história não se pode fechar os olhos. Porque isto é um sonho. Ou não. E quando fecho os olhos. É que eu não dei por adormecer. E se isto fosse um sonho. Então e esta dor.

Livre الحمد لله quod dicitur al-hamdu lillah ac interpretatur Deo gratias fora do talho da morte. Balanço no ar e ele tem-me por ele pelo gancho. Como um pêndulo. Assim. Deste lado para aquele. O da Escola Politécnica. E para aquele. E se eu caio. Lá em baixo. Naquele rio vermelho e negro.

28.10.07

Et cecidit et dormiebat et somnia non habebat

[Ribera - O sonho de Jacó]

Subiu à torre e pensou este é o dia. Ergueu os olhos ao céu. Três vezes inspirou e outras tantas expirou. Deixou cair as pálpebras e baixou a cabeça. Tivesse eu medo. E me faltasse a coragem. Não me fossem pesados os dias e duras as noites. Acordar todas as manhãs e. Já chega. Arrancar-me esta dor. E um dia abrir os olhos. Mas não. Em vez disso. E se. Porquê. É como adormecer. Mas sem sonhos. Por fim achou que era tempo. Já o Sol furioso lhe martelava a nuca.

O desafio


O desafio do André Benjamim. Devia tê-lo feito aqui. Mas achei que ficaria melhor ali.

27.10.07

Kill the pain . XI . Honeysuckle

[Caravaggio - Decapitação de São João Baptista]

weightless falls honeysuckle
strangers (strange this)
lights from pages
paper thin thing
(Cantado por Massive Attack)

Do chão saíam línguas de cobra e o bafo de dragões de fogo verde (1). Assim. Devagarinho lambendo-me os pés. E eu não sei se estava deitado. Porque o bafo me aquecia costas e pernas e pés e eu não me conseguia mexer. E assim se eu estivesse de pé. Ou deitado. Tanto faz. E isto. Veneno (2) duro rasgando-me a pele - cravando-me fundo na carne e nos ossos. E a dor era tanta e eu abri os olhos e não vi nem línguas nem bafo. O velho. O das barbas negras. E na mão um naco de carne vermelha morta. Oozing bloodgouts (3)

Ganchos. O cheiro. A morte e sangue. Um talho. Porcos esventrados e vacas. E eu. Peito e barriga. Sem nada. Abertos. Assim. No chão o lago plinc plinc vermelho escuro. Debaixo de mim do meu corpo. Oozing bloodgouts from my absent guts. E as moscas são tão grandes. Metidas dentro de mim. Daqui a nada as larvas e eu serei. Não há ninguém neste talho imundo. Eu. Os porcos e as vacas. E as moscas. Comido. De fora para dentro. Guts. I have no.


-----
(1) Quoniam uiridis frigidior ignis flauo rubroque et in terra illa non aestus sed frigor sentiendus. Quia dracones nescio at scire nollo.
(2) Scilicet draconum.
(3) Iacobus Joyce ut patet omnibus hoc scripsit.

O medo

[Goya - Loco furioso]

«Por fim, Ivan Dmítrich, vendo que era inútil resistir, deixou de raciocinar e entregou-se ao desespero e ao medo. Começou a isolar-se e a evitar as pessoas. O serviço, que já antes lhe repugnava, tornou-se-lhe insuportável. Tinha medo que o levassem a meter-se em sarilhos, que lhe metessem à socapa dinheiro de um suborno no bolso para depois o apanharem, ou que ele próprio, por descuido, cometesse um erro nos papéis oficiais que pudesse ser considerado fraude, ou que perdesse dinheiro que não fosse dele. É curioso: o seu raciocínio nunca dantes fora tão flexível e inventivo como agora que fantasiava, dia a dia, milhares de motivos sérios de receio pela sua liberdade e honra. Ao mesmo tempo, ia enfraquecendo a olhos vistos o seu interesse pelo mundo exterior, em particular pelos livros, e já a memória começava a traí-lo.»
Tchékhov, Enfermaria nº 6
trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra

22.10.07

Os cegos

[Iluminura árabe do século XIII]

صُمٌّۢ بُكْمٌ عُمْىٌۭ فَهُمْ لَا يَرْجِعُونَ
são surdos, mudos, cegos, e então não voltam
Alcorão 2:18

20.10.07

Agrafena Ivánovna


[Chagall - Homenagem a Gógol]

«O general tirou o cachimbo da boca e, com ar de grande satisfação, pôs-se a olhar para Agrafena Ivánovna. O próprio coronel desceu as escadas e abraçou Agrafena Ivánovna pelo focinho. O próprio major deu palmadinhas na perna de Agrafena Ivánovna; os outros estalaram as línguas.»
Nikolai Gógol, A Caleche
trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra

Carceri d'Invenzione . II . Dedos

[Piranesi - Carceri d'Invenzione]

Na manhã em que foi libertado estalou os dedos das mãos apenas duas vezes. Quer dizer, não estalou apenas dois dedos. Isso não faria qualquer sentido. Pois se o objectivo de estalar os dedos é devolvê-los ao seu encaixe ósseo natural, seria uma injustiça devolver apenas dois. E os outros oito? Ficariam fora do seu sítio? Ah não. Nem pensar. Não seria natural. Nem lógico. Não não. O que ele fez foi duas sequências de estalo completas. Assim. Começou pelo mindinho da mão esquerda. Este é fácil. Como todos os pequeninos. Basta um toque leve do polegar da mão direita. Depois o anular. Às vezes não estala. Será do anel. Embora ele não use anel. Mas pode ser do anel. Talvez o anel lhe aperte a articulação. Claro. E o médio e o indicador. Dedos chatos. Sem interesse, sem particularidades. E ele gosta tanto de particularidades. Antes de ser preso começava todas as suas conversas por "Isto é aqui entre nós, em particular". Os amigos não gostavam muito desta sua particularidade. Mas a verdade é que ele não tinha amigos, o que neste caso até é coisa boa. Ora o indicador e o polegar não têm particularidades, como já ficou dito. Estalam quase ao mesmo tempo, obedientemente. Fosse o anular assim. Mas não. Tinha de ser diferente. Não lhe chegava ter anel. Bom, o dele não tem anel. Mas é como se tivesse. É que se comporta como se o tivesse: não estala com facilidade, e tem uma pequena depressão regular ali, onde deveria estar o dito anel. Falta o polegar. Aperta-o dentro dos outros dedos. Quer dizer, o mindinho só lhe toca a ponta. É o mais pequenino. E como todos os pequeninos fica de fora, ninguém quer saber dele. Com toda a razão. Afinal não tem qualquer utilidade. E ninguém quer saber de coisas que não tenham utilidade. Muito menos ele. Por isso gostava de ouvir o clac clac dos ossos a entrarem no seu encaixe. Quando não tinha nada que fazer entretinha-se, pois, a estalar os dedos. Às vezes corria-os um a um, começando pelo indicador, usando a palma da mão oposta. Como um piano. Um dia achou que para variar poderia tocar uma ou outra fuga de Bach com o estalar dos dedos. Que tolice. Claro que não passou da primeira nota. Porque, convenhamos, tocar Bach com o estalar dos dedos não é coisa ajuizada. Ainda se fosse uma peça de Cabezón.

12.10.07

Pele

[Bosch - A tentação de Santo Antão (pormenor do painel esquerdo)]

I wrote you a letter and tried to make it clear

that you just don't believe that, I'm sincere.
(cantado por Massive Attack)

Se eu pudesse parar os dias e saltar as noites. Se eu pudesse fechar os olhos e vazar a alma. Se eu pudesse saber se ainda estás aí. E se posso sonhar. E se um dia. Ou não. Se devo ir embora. Desistir. E esquecer. Porque de noite há fantasmas que me arrancam a pele.

8.10.07

Carceri d'Invenzione . I . Cara

[Piranesi - Carceri d'Invenzione]

No manhã em que foi libertado lavou a cara apenas uma vez. É que nas outras manhãs lavava a cara muitas, muitas vezes. Tantas que um dia achou que se lhe começavam a ver as veias e os músculos assim, quase à transparência. Não se preocupou nada com isso. Afinal, quem, senão ele, lhe podia ver a cara? Quem, senão ele, poderia ficar impressionado, enojado até? Não não. Não tinha qualquer importância. Pensou até que talvez fosse interessante. Que, se lavasse mais ainda a cara, se a esfregasse assim bem esfregadinha, a sua pele acabaria por se tornar completamente transparente. Poderia então ver todas mas mesmo todas as veias, e todos todos os músculos. Todinhos. E que seria ainda mais engraçado se passasse a lavar o corpo todo várias vezes por dia. Assim poderia ver todos todos os pormenores mais divertidos da sua anatomia. Sim, porque ele tinha uma anatomia divertida, como veremos. Mas achou que o melhor mesmo era experimentar primeiro na cara. É que não sabia até que ponto aguentaria ver todos todos os pormenores da sua anatomia. Todinhos. E enquanto fosse só a cara, não vinha daí grande mal ao mundo. Podia sempre cobri-la de pó-de-arroz, se um dia se fartasse de ver todos os músculos, todas as veias. Assim, passou a esfregar cuidadosamente a cara várias vezes por dia. Mas não se pense que o fazia de forma obsessiva. Não. Ele só esfregava a pele da cara quando não tinha nada para fazer. Bom, é verdade que na sua cela não havia muito mais para fazer. Aliás, não havia mesmo mais nada para fazer. Isto seria muito mais interessante até, se ele tivesse um espelho onde se ver. Como não tinha, contentava-se em imaginar que a pele da sua cara estava a ficar transparente.

5.10.07

Kill the pain . X . Keep me tasking

[Bosch - São João Baptista no deserto]

why you keep me testing, keep me tasking
you keep on asking
(cantado por Massive Attack)

E depois o vento ardente morreu e eu abri os olhos e o velho de barbas negras estava ali. Levantou o braço direito e com a mão tomou o punho da espada. Depois puxou devagarinho. Assim. E o crânio chiou e o seu gemido era insuportável. Como se a espada lhe fosse um órgão e lha arrancassem à força. E quando a espada saiu foi como se nunca lá tivesse estado. Porque não havia sangue nem ferida. Onde antes tivera rasgão agora tinha uma boca. Com lábios e dentes. E dela escorria pasta negra de sangue podre. E eu desmaiei. O cheiro.

E depois acordei e o velho de barbas negras estava ali. Numa mão oferecia-me a espada e dizia. Tolle. Lege (1). E eu pus-me de pé e com a mão esquerda tomei a espada. Era fria como gelo. Percorria-lhe a lâmina negra uma escritura que não pude decifrar. Porque as letras saltavam e mudavam de lugar quando começava a custo a delas tirar sentido. E o velho dizia. Lege. Mas eu não podia. E deitei a espada ao chão e o estrondo foi maior que mil trovões. Fechei os olhos e depois não sei. Se dormi. Se morri.

-----
(1) Vt Augustinus. Sed non librum sed gladium ostendens. Nescio cur id faceret.

أغدا ألقاك

أم كلثم

أغدا ألقاك
يا خوف فؤادي من غد
يا لشوقي واحتراقي في انتظار الموعد
آه كم أخشى غدي هذا ، وأرجوه اقترابا
كنت استدنيه ، لكن ، هبته لما أهابا
وأهلّت فرحة القرب به حين استجابا
هكذا أحتمل العمر نعيما وعذابا
مهجة حرى وقلبا مسه الشوق فذابا
أغداً ألقاك؟
أنت يا جنة حبي واشتياقي وجنوني
أنت يا قبلة روحي وانطلاقي وشجوني
أغدا تشرق أضواؤك في ليل عيوني ؟
آه من فرحة أحلامي ، ومن خوف ظنوني
كم أناديك ، وفي لحني حنين ودعاء
يا رجائي أنا ، كم عذبني طول الرجاء
أنا لولا أنت لم أحفل بمن راح وجاء
أنا أحيا في غدي الآن بأحلام اللقاء
فأت، أو لا تأت أو فافعل بقلبي ما تشاء
هذه الدنيا كتاب أنت فيه الفكر
هذه الدنيا ليال أنت فيها العمر
هذه الدنيا عيون أنت فيه البصر
هذه الدنيا سماء أنت فيها القمر
فارحم القلب الذي يصبو إليك
فغدا تملكه بين يديك
وغدا تأتلق الجنة أنهارا وظلا
وغدا ننسى ، فلا نأسى على ماض تولى
وغدا نسمو فلا نعرف للغيب محلا
وغدا للحاضر الزاهر نحيا ليس إلا
قد يكون الغيب حلوا ، إنما الحاضر أحلى
أغدا ألقاك؟

الحرف : الهادي آدم
الصوت : كوكب الشرق

1.10.07

Kill the pain . IX . Carbunculus

[Andrea del Brescianino - Madona com menino Jesus e São João Baptista]

toy-like people make me boy-like
(cantado por Massive Attack)

E antes de cegar. Se ceguei. Já não sei. Porque a verdade é que o que agora é treva já antes. Mas não. Havia um homem. Um velho. De barbas negras. Longas. Pelos pés. Sem roupas. Só barbas. E uns olhos vermelhos de sangue. Ou de fogo. Chamas. Ou carvões. E a luz daqueles olhos era tão pesada. Mais do que. Quando a luz me inundou a cela. Pensei que cegava. Porque era tão tão. Sabes. Assim. Como quem olha para o Sol e lá deixa ficar os olhos. Ou mais forte. E depois apareceu aquele homem. Assim. vulto negro no meio da luz. E eu não via mais nada. Nem paredes. Nem porta. Só luz. E o homem. Como num sonho. Por isso. Não. E a boca era rasgada. Sem lábios. E dela saía uma espada (1). Negra como a barba que o cobria. E da ponta pingava sangue. Podre. Por causa do cheiro. E da cor. Não era vermelho. Pastoso. Negro. Petróleo. Mas era sangue. Porque eu sei. Como se a espada. Se lhe entrasse pela nuca. E lhe rasgasse a boca que não tinha e abanava em fúria. E a espada a cada esticão rasgava-lhe um pouco mais a boca. E espirrava-lhe o sangue e guinchava assim como ferro quente em água fria. E das ventas vento ardente. E eu tapava os olhos com as mãos para não cegar. E o vento ardia e abria caminho por entre os meus dedos. E as chamas entravam-me nos olhos e eu gritava de dor e ninguém me ouvia (2).

-----
(1) Υἱὸς ἀνθρώπου ut in Apocalipsi Iohannis. Sed hic de quo scribitur non hominis.
(2)
آخر الليل بتسمع اليعات

30.9.07

Kill the pain . VIII . Maridhtu

[Domenico Beccafumi - Virgem com menino Jesus e São João Baptista]

you light my ways through the club maze

we would struggle through the dub daze
(cantado por Massive Attack)

Enrolei-me em mim mesmo e não sei se dormi. Se vigilava (1). Se dormia (2). Se isto é sonho. Se é vigília. Se os tijolos. Os trinta e cinco. Se já os puseram. Um a um. E me deixaram aqui. Sem luz. Sem dor. Livre por fim (3). E se aquilo que eu vi. Se o vi se o sonhei.

Às vezes é como se enlouquecesse. Pois se eu sou são. Se fosse. Não sou (4).

Primeiro havia as trevas. E eu não via nada. E depois veio a luz. Assim tão. Assim como o Sol de manhã. Fria. E havia raios e estrondos. E não havia nem porta nem parede. Só luz. E depois fiquei cego.

-----
(1) Quia nesciebam diem neque horam.
(2) Habui somnum imaginem mortis.
(3) ان شــاء الله
مــرضــت (4

27.9.07

O chá

[Honthorst - Jovem bebendo]

by the light of dawn

a midnight blue ... day and night ...
I've been missing you

I've been thinking about you baby

almost makes me crazy

(cantado por Massive Attack)


Aqui. Toca aqui. No peito. Vês. Sentes. Dói. Por isso não falo. Ainda que os teus olhos me toquem. E me digam o que é o que foi o que tens. Não tenho não foi não é. E devia olhar-te e dizer-te que me custa levantar da cama de manhã. Porque dói tanto. E o dia não acaba. E se pudesse deitava-me e não voltava a. O resto da minha vida. Havia de se me colar ao corpo a cama. Faltam-me as forças. E cada dia que passa. Sabes. Quando o Sol nos martela a cabeça. E os segundos são dias. Não. Tu não sabes. Porque eu não falo. E agito a chávena devagarinho. Assim. Para não entornar o chá. Para te distrair os olhos. Tirá-los de mim. Noli me tangere. E se um dia.

24.9.07

The carnival is over

[Munch - Florescer doloroso]
"The Carnival is Over"
(Dead Can Dance)

Outside
The storm clouds gathering,
Moved silently along the dusty boulevard.
Where flowers turning crane their fragile necks
So they can in turn
Reach up and kiss the sky.

They are driven by a strange desire
Unseen by the human eye
Someone is calling.

I remember when you held my hand
In the park we would play when the circus came to town.
Look! Over here.

Outside
The circus gathering
Moved silently along the rainswept boulevard.
The procession moved on the shouting is over
The fabulous freaks are leaving town.

They are driven by a strange desire
Unseen by the human eye.
The carnival is over

We sat and watched
As the moon rose again
For the very first time.

20.9.07

Kill the pain . VII . Cold mirror

[Geertgen - Os ossos de São João Baptista]

I seen you go down to a cold mirror
it was never clearer in my era so
you lick a shine upon your forehead or
check it by the signs in the corridor

(cantado por Massive Attack)

Há quanto tempo. Uma semana. Duas. Ou mais. Um mês. Trinta dias. Trinta e cinco. Não interessa. Aqui o tempo não foge. E eu já não sei se isto é um sonho grande grande. Porque eu não vejo não ouço nada. Só negrume vazio. Como se já. E ainda não vi o meu tubarão. Pour faire mon requiem. Nem pedi que pusessem o primeiro tijolo. Porque se isto é um sonho. Então ontem. Se eu estiver a dormir. Se isto é um sonho grande sem fim. Então ontem era verdade. E aquela luz. E as chamas. E os. Não. Não. Ontem foi um sonho. Não. Foi. É. Tem de ser. Porque se não.

19.9.07

Noches muertas

[Jacques-Louis David - A morte de Séneca]

love kills, hey,
drills you through your heart

love kills, tears you right apart

it won't let go, it won't let go
love kills, yeah

(cantado por Freddie Mercury)


Ya lo ves. Noches muertas y días sin ganas. Y al alba ese dolor que duele tanto. Y allí me quedo. En silencio. De cara a la pared. Piensando en tí. Y en lo que podría haber sido. Y que no has querido tú. Hombre. A veces me parece que. Pero ya lo ves. No ha cambiado nada. Sigo aquí. Solo. No querías hacerme daño. Pero hombre. No sería peor que lo que estoy viviendo. Porque lo que me hizo daño. Sabes. Verdaderamente lo que me hizo daño. Lo que todavía me haz daño. Bueno. Ya lo sabes.

Fatal

[Bosch - Jardim das delícias terrenas]

Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.

Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.

Porquê
Esperar?
- Tudo é
Sonhar.

Fernando Pessoa

16.9.07

Kill the pain . VI . Kaputt

[Andrea Solari - Salomé com a cabeça de São João Baptista]

I turn a stone I'll find you there
into reflected light I'll stare

(cantado por Massive Attack)

Tubarão em cela escura. Si je vois un requin je fais mon requiem. Le mien. A sério. Se o vir passar à minha frente levanto-me e peço o primeiro tijolo. Se eu conseguisse ver alguma coisa. E quando os trinta e cinco tijolos. Sem luz sem ar sem dor sem. Agora ainda posso apalpar a parede achar a porta. Sair. Como se tudo não tivesse passado de um engano. Com licença eu estava enganado agora com licença sim sim vou-me embora espero que não lhe faça diferença com licença. Podia levantar-me. Sim. Ir embora. Esquecer esta loucura. Porque é verdade que dói dói tanto. E vem-me à boca o sabor a sangue. É o peito que me apertam e me esmagam. Alguma coisa se abriu lá dentro. E dói tanto dói tanto. E não vai parar não vai morrer. Já não é tempo. Já não é tempo de esperança. Nunc est tempus moriendi. O que é que me aconteceu. É que eu dantes acreditava. E nunca me passaria pela cabeça. Achava sempre que um dia passava. E sustinha-me. Que não havia coisa nenhuma definitiva. Que agora doía mas amanhã já não. Que cedo ou tarde alguma coisa. Mas esta dor é tanta e é tão grande.

Ontem tive um sonho. Foi o meu primeiro sonho desde que aqui cheguei. As noites têm sido brancas. Ou negras. Porque adormeço e não vejo. E acordo e está tudo negro. Às vezes penso se me terão cegado. Porque não vejo nada. Nem se estreitar os olhos e fizer força força. Vai ser assim quando puserem o último dos trinta e cinco tijolos. Será a fome. Ou a sede. Ou tudo. Porque agora ainda vou comendo e bebendo. Deve ser enquanto durmo que eles. Talvez abram a porta devagarinho. Assim. Para eu não ouvir nada. Depois acordo e ponho o nariz no ar e fungo como um rato. Chego-lhe pelo cheiro. Pão. Leite. E água. A água também cheira. A rã e a lodo. Quando eu chegava a casa cheio de lama. E a mãe gritava onde é que tu andaste. Num charco a apanhar rãs. Água grossa enjoativa. Depois nem isto. Deve ser a sede. Porque sem comer aguenta-se tanto tempo. Sem beber não. Talvez devesse repensar. Ou. Porque vejamos. A dor da sede e da fome. Alguns dias. Não mais. Posso aguentar. Sim. Pior do que a outra dor não será. E depois acabou tudo. Acabam-se as dores. Kaputt. Mas e se. Porque nada me garante. E talvez um dia. Aquilo que tanto me dói hoje. E que sempre doeu. Trinta e seis. Não. Já chega.

Foi um sonho bonito. Se foi um sonho. Porque às vezes já não sei onde estou. Nem quando. Nem se ainda. Mas agora estou tão cansado. Depois conto. Conto a quem. Com quem estou a falar. Louco. Só me faltava. Não. Primeiro a dor. Agora isto.

14.9.07

وَإِذَا الْقُبُورُ بُعْثَرَتْ

[Salma Arastu - Allah VI]

إِذَا السَّمَآءُ انفَطَرَتْ
وَإِذَا الكَْوَاكِبُ انتَثَرَتْ
وَإِذَا الْبِحَارُ فُجِّرَتْ
وَإِذَا الْقُبُورُ بُعْثَرَتْ
عَلِمَتْ نَفْسٌ مَّا قَدَّمَتْ وَأَخَرَت
Alcorão 82:1-5


'ida s-sm'â'u anfaTarat
wa-
'ida l-kwâkitu antatharat
wa-'ida l-bihâru fujjirat
wa-'ida l-qubûru buºtharat
ºalimat nafsun mma qaddamat wa-'ahrat

Quando o céu se estilhaçar,
e quando os planetas se espalharem,
e quando os mares se misturarem,
e quando as tumbas se abrirem
- toda a alma conhecerá o que avançou e o que atrasou.

13.9.07

Epitaphius quartus

P9120109
[Painel de azulejos do século XVIII - Convento da Graça (Torres Vedras)]

اضحك يضحك العالم معك وابك تبك وحدك
ri, e o mundo ri contigo; chora, e chorarás sozinho

Depois entornem-me vinho. Branco. Última bebedeira. Solitária. Debaixo da terra dura. Quae non leuis mihi erit. E não pensem mais em mim. Eu não estou. Nunca estive. Esqueçam-me. Enquanto baixo a cabeça. E espero o golpe. Porque eu também vos tenho esquecido. Ibo nunc in malam rem. Que a vida vos seja leve. Valete.

11.9.07

Francamente no recuerdo si esa noche nos suicidamos

«A. — Distraídos en razonar la inmortalidad, habíamos dejado que anocheciera sin encender la lámpara. No nos veíamos las caras. Con una indiferencia y una dulzura más convincentes que el fervor, la voz de Macedonio Fernández repetía que el alma es inmortal. Me aseguraba que la muerte del cuerpo es del todo insignificante y que morirse tiene que ser el hecho más nulo que puede sucederle a un hombre. Yo jugaba con la navaja de Macedonio; la abría y la cerraba. Un acordeón vecino despachaba infinitamente la Cumparsita, esa pamplina consternada que les gusta a muchas personas, porque les mintieron que es vieja... Yo le propuse a Macedonio que nos suicidáramos, para discutir sin estorbo.

Z (burlón). — Pero sospecho que al final no se resolvieron.

A (ya en plena mística). — Francamente no recuerdo si esa noche nos suicidamos.»

Jorge Luis Borges, Diálogo sobre un diálogo

10.9.07

All I loved I loved alone

[Caspar David Friedrich - Monge junto ao mar]

From childhood's hour I have not been
As others were — I have not seen
As others saw — I could not bring
My passions from a common spring —
From the same source I have not taken
My sorrow — I could not awaken
My heart to joy at the same tone —
And all I loved — I loved alone —
Then — in my childhood, in the dawn
Of a most stormy life — was drawn
From every depth of good and ill
The mystery which binds me still —
From the torrent, or the fountain —
From the red cliff of the mountain —
From the sun that round me rolled
In its autumn tint of gold —
From the lightning in the sky
As it pass'd me flying by —
From the thunder and the storm —
And the cloud that took the form
(When the rest of Heaven was blue)

Of a demon in my view. —

Edgar Allan Poe, Alone

Kill the pain . V . Syllables

[Caravaggio - Salomé com a cabeça de São João Baptista]
you blind me with flash bulbs
and puzzle me with syllables
(cantado por Massive Attack)

Fechar os olhos. Já estava. Foi-se. A dor. Seria tão fácil. Mas não. Há sempre uma escolha. E o homúnculo não me largou os olhos enquanto eu não. Escolhi a parede. Porque veneno não. Muito rápido. E eu quero gozar cada momento. Sentir-me ir. Suportar a dor. Finalmente. Desprezá-la. Porque vai acabar. Tudo. E agora já nada tem importância. Sofrerei. Paciência. Não mais do que me tenho doído. Uma última fome. Assim seja. Não me importo. Porque só dói quando não se vê fim.

'Os tijolos serão colocados à razão de um por hora. A cada badalada. Trinta e cinco. Porque se o senhor se arrependesse. Não não. Eu sei que não. Mas é um pro forma. Sabe? Sabe. Eu sei que sabe latim. Já não há muitos. Período irreal. Se se arrependesse. Não. Não se arrependerá. Porque se puxou a corrente e fez soar a sineta. Se entrou. Se me seguiu até aqui. Tão decidido. Não se vai arrepender. Mas suponhamos. Se se arrependesse. Está a ver. Teria trinta e cinco horas para se arrepender. Mas não tem. Porque não se vai arrepender. Sabe? Quando colocarem o trigésimo quinto tijolo. Acabou-se. Até ao trigésimo quarto ainda poderia. Sabe? Dizer qualquer coisa. Que já não queria. Que tinha sido um engano. Que queria voltar àquela dor que lhe esmigalha o peito. Mas não quer. Sabe? Porque lá fora está frio. Tanto frio. E aqui não. Aqui não terá frio. Nem fome. Nem sede. Nem dor. Aqui encontrará o repouso que tanto procura. Requies aeterna. Sabe latim não sabe? Sabe. Requiem aeternam dona eis Domine.'

Depois calou-se e enfiou a cabeça numa manga imunda. Como se procurasse. Não sei. Qualquer coisa. Não me interessa já. Tirou a cabeça para fora e voltou a fungar à maneira dos ratos. Voltou-se para sair. Virou a cabeça uma última vez. E agora vejo-lhe os dentes brancos ardendo no escuro. Já não abafa o escárnio. E se eu me. Porque.

'Já viu o seu tubarão? Sabe que em francês se diz requin? Si vous voyez un requin faites votre requiem. Avez-vous vu votre requin? Pas encore? Chame quando o vir. Eu virei.'