4.8.07

Aquilo que não se pode contar . 14 . A escada

[Bosch - Carro de feno (painel direito)]

Vejo uma escada de bronze, de tamanho espantoso, chegando até ao céu, e estreita, a qual só podia subir um de cada vez, e dos lados da escada estava posta toda a sorte de ferros cortantes: ali havia espadas, lanças, ganchos, cutelos, dardos, de modo que se alguém subisse sem cuidado ou não olhando para cima, seria dilacerado, e as suas carnes ficariam agarradas aos ferros. E havia debaixo dessa escada uma serpente deitada, de tamanho espantoso, que armava ciladas aos que subiam, e os amedrontava, para não subirem.
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Paixão de Perpétua e Felicidade, IV, 4 (séc. III)

Se isto é estar morto. Mãos no ferro gelado. Queima. Tira tira. Esta cama abana tanto. Caio assim que puser um pé num degrau. Não sou capaz. Tenho medo. Mesmo estando morto. Não é medo de cair. Porque ainda que estivesse vivo. E eu estou morto. Se caísse caía de costas na cama. E isso nunca matou ninguém. Menos ainda um morto. Não. O meu medo não é esse. O meu medo é um medo maior. Este escadote gelado que me queima as mãos. E eu não devia sentir. Eu estou morto. O meu coração não bate. O meu peito não sobe nem desce. Os meus dedos têm a cor da cera. E onde o ferro tocou estão brancos da cor do gelo. Ainda há pouco tão forte. E agora não consigo pôr estas mãos mortas neste escadote de ferro gelado. E subir e abrir aquela moldura medonha. E ver o que é. Se é.

Força. Estou morto. Não dói. Não pode doer. Mão no ferro. Já está já já já. Queima tanto. Tira não tira. Deixa ficar. Porque está tudo na minha cabeça. Um ferro gelado não pode queimar a mão de um morto. E se dói é porque não estou morto. E se o coração está parado e o peito não sobe nem desce. É porque estou morto. E se estou morto nada de mal me pode acontecer. Porque o pior que me podia acontecer era morrer. E eu já morri. Mas isto não foi o pior que já me. Não. Isto é bom. Bonum est me hic esse. Eu não sabia latim quando. Não interessa. Então se isto não é o pior que me podia acontecer.

Queima mais queima tanto mais. Mas eu sou forte. E já estou a meio caminho entre a moldura medonha e a cama. A cama. Deito-lhe os olhos e morro outra vez. Porque na cama estou eu deitado de olhos abertos e boca torta e mão crispada no peito. Mas eu estou no escadote. E estou na cama. Então quem sou eu que subo o escadote. E quem sou eu deitado na cama. Tão pequeno tão fraco. Nunca me tinha visto. Porque num espelho não é a mesma coisa. E agora ali. Tão branco tão morto. Aqueles olhos baços pregados em mim. O que isto. Quem sou eu. Porque se eu estou a pensar e a ter medo. Então eu sou eu. Este que sobe o escadote. E aquele na cama sou eu morto. É que era eu que estava ali. Deitado olhos postos na moldura medonha a ouvir o zumbido rido. E depois levei a mão ao peito e não havia tum tum tum tum. Então eu aqui no escadote não sou eu. Eu sou aquele na cama. Então este que tem as mãos queimadas pelo ferro gelado. Que foi isto. toc toc toc. Voltou.

Deixei o morto deitado na cama e lancei os olhos à moldura medonha. Porque isto é mais forte.
E eu tenho de saber o que está ali em cima. Só mais dois degraus. Abana abana mas não cai. E quando chegar lanço um braço. Ou os dois. E toco na moldura. E faço faço força e empurro. Já está.

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(*) uideo scalam aeream mirae magnitudinis pertingentem usque ad caelum et angustam per quam nonnisi singuli ascendere possent et in lateribus scalae omne genus ferramentorum infixum erant ibi gladii lanceae hami machaerae ueruta ut si quis neglegenter aut non sursum adtendens ascenderet laniaretur et carnes eius inhaererent ferramentis et erat sub ipsa scala draco cubans mirae magnitudinis qui ascendentibus insidias praestabat et exterrebat ne ascenderent

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