6.8.07

Aquilo que não se pode contar . 15 . Pregado

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel central)]

Still round the corner there may wait

A new road or a secret gate;
And though I oft have passed them by,
A day will come at last when I
Shall take the hidden paths that run
West of the Moon, East of the Sun.
J. R. R. Tolkien, The Lord of the Rings. The Return of the King

O mais difícil foi passar o corpo pela moldura. É o que isto é. Um corpo. Morto e frio. Preso. No entanto havia um espaço tão grande entre o peito e o lado oposto da moldura. E eu não passava. Como se uma força estranha me impedisse de. Só a cabeça. E os braços. Apoiados no chão do sotão. Fazendo força força força. E nada. Corpo preso terror crescente. E o cric cric das tábuas estalando debaixo dos braços. Mais nada. Nem zumbido rido. Silêncio quente. E eu um corpo sem cabeça. Porque a tinha mergulhada naquelas trevas pegajosas e era como se não a tivesse. Uma cabeça que não vê. Achei-me cego. Meio cego. Porque eu olhava para baixo e via-me morto em cima da cama. Mas em cima. Assim que deitava os olhos na escuridão cegava. Como se tivesse mergulhado a cabeça em nada. Como se aquilo não quisesse que.

E então achei que era o medo que não me deixava passar o corpo pela moldura. O meu. E devagar devagarinho tirei a cabeça de dentro do sótão e voltei a ver. A despensa poeirenta. E a luz laranja serpenteante. Ou vermelha. As lombadas rasgadas. Eu ali em baixo deitado na cama. E aqui em cima. Quase todo no meu confortável mundo pequenino. Não fossem as mãos lá dentro do nada. E não as sentia. Como se não as tivesse.

Pendurado na moldura sem medo de cair. Porque se caísse caía em cima de mim e não morria mais. É que eu já estava morto. O eu que jazia na cama de olhos baços abertos boca torta mão crispada no peito. E o eu pendurado na moldura medonha pernas dançando no ar poeirento. E um rio de sangue negro escorrendo nas costas pingava sobre o morto deitado na cama. De onde vinha. Depois viria a saber. Agora não quero. Porque quando me lembro (*) falta-me a coragem para continuar a lembrar.

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(*) "...me acosa una picazón en la mano derecha, aguda en el dedo mayor, y una suerte de entumecimiento, como si un agente sobrenatural me estorbara, para no dejarme escribir." Adolfo Bioy Casares. Escreveu esta frase enquanto se lembrava do que me iria acontecer.

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