E vi um jardim imenso, e no meio um homem sentado, de cabelos brancos, vestido à maneira dos pastores, grande, mungindo ovelhas. E à volta, em pé, muitos milhares vestidos de branco. E ergueu a cabeça e olhou-me e disse-me: "Bem-vinda, filha". E chamou-me e do queijo que mungia deu-me um bocadinho. E eu aceitei-o, com as mãos juntas, e comi. E todos os que estavam à volta disseram: "Amen". E ao som de uma voz acordei, mastigando ainda qualquer coisa doce. E contei logo tudo ao meu irmão. E percebemos que sofreríamos paixão, e começámos a não ter já nenhuma esperança neste mundo.
Paixão de Perpétua e Felicidade, IV, 8-10 (séc. III)
Depois abri os olhos e vi a mãe inclinada sobre mim. "O que foi, querido". Faltava-me o ar. Não do pó. O pó nunca me incomodou. Era do meu choro convulsivo. E eu não conseguia falar. Mudo de terror. "Já passou já passou". Não passou. Não passará. Nunca. Mas eu acreditei. Porque eu queria acreditar que. Olhei para cima e vi a moldura. Fechada. Cheia de pó. Como se sempre tivesse estado assim. Como se alguém. Ou alguma coisa. "Foi um sonho mau". E eu olhei para ela e suspirei de alívio. A voz e os olhos de uma mãe. Limpei a cara às mangas do pijama e deitei-me outra vez enrolado no cobertor. Mãe fica aqui ao pé de mim. Mãe conta-me uma história. Levei a mão ao peito e senti tum tum tum tum. E um ardor nas costas. Nada. Mãe dorme aqui comigo. Porque eu tenho medo.
Depois abri os olhos e a mãe já não estava ali. Mas eu ouvia-a na cozinha. Os tachos toc toc toc. Agora eram os tachos. Não era aquilo. Porque agora eu achava que aquilo nunca tinha existido. Mãe. "O que foi querido". Nada. E senti-me mergulhado num calor tão bom. O Sol do fim da tarde. Através da cortina listada. Laranja. Ou vermelho. Porque eu achava que tinha sido um sonho mau e feio. Porque eu estava vivo. Deitado na cama de onde nunca tinha saído. E a moldura lá em cima. Fechada. Empoeirada. Mas ela antes nunca. Nada. Chega. E dormi. Tanto.
Depois abri os olhos e era noite. Tentei levantar-me. Colado à cama. As costas. Dor dor dor. Em cima. Na omoplata. Na esquerda. Com cuidado descolei as costas da cama. Levei a mão devagar. Devagarinho. Sobre o ombro esquerdo. Depois fui descendo os dedos. Percorrendo a omoplata. Em círculos. Até encontrar. Eu já sabia. Porque já tinha sentido a cama húmida. E já tinha passado a mão. E era viscoso. Mas se tinha sido um sonho. O sangue dos sonhos não é a sério. Mas. E agora isto. Este buraco. Na omoplata. Na esquerda. Um prego dobrado. E lancei os olhos ao tecto. E percebi porque é que no meu sonho não tinha conseguido entrar à primeira. Preso. Mas se tinha sido um sonho. E depois foi como se me arrancassem o estômago. E abri a boca para gritar mãe. Mas não saiu nada.
Uns pontos brilhantes no ar. Ali. Do outro lado da cortina que servia de porta. E duas bolas grandes grandes como faróis. Empurrando devagarinho a cortina. E eu abri a boca e não saiu grito nenhum.
E agora eu já não abro a boca. Quando vejo os pontos brilhantes aos pés da minha cama. Porque eu já sei. Não vai sair nada. Porque emudeço de terror. Não por causa daquilo. Por aquilo que aquilo me lembra. A minha morte. E de como eu via tudo. E de como a minha morte não era um fim. E de como vai ser. E de como vou ficar agarrado à visão do meu corpo. E de como não vou ter paz. E de como não vale a pena viver. Mas morrer também não. E de como.
Depois abri os olhos e vi a mãe inclinada sobre mim. "O que foi, querido". Faltava-me o ar. Não do pó. O pó nunca me incomodou. Era do meu choro convulsivo. E eu não conseguia falar. Mudo de terror. "Já passou já passou". Não passou. Não passará. Nunca. Mas eu acreditei. Porque eu queria acreditar que. Olhei para cima e vi a moldura. Fechada. Cheia de pó. Como se sempre tivesse estado assim. Como se alguém. Ou alguma coisa. "Foi um sonho mau". E eu olhei para ela e suspirei de alívio. A voz e os olhos de uma mãe. Limpei a cara às mangas do pijama e deitei-me outra vez enrolado no cobertor. Mãe fica aqui ao pé de mim. Mãe conta-me uma história. Levei a mão ao peito e senti tum tum tum tum. E um ardor nas costas. Nada. Mãe dorme aqui comigo. Porque eu tenho medo.
Depois abri os olhos e a mãe já não estava ali. Mas eu ouvia-a na cozinha. Os tachos toc toc toc. Agora eram os tachos. Não era aquilo. Porque agora eu achava que aquilo nunca tinha existido. Mãe. "O que foi querido". Nada. E senti-me mergulhado num calor tão bom. O Sol do fim da tarde. Através da cortina listada. Laranja. Ou vermelho. Porque eu achava que tinha sido um sonho mau e feio. Porque eu estava vivo. Deitado na cama de onde nunca tinha saído. E a moldura lá em cima. Fechada. Empoeirada. Mas ela antes nunca. Nada. Chega. E dormi. Tanto.
Depois abri os olhos e era noite. Tentei levantar-me. Colado à cama. As costas. Dor dor dor. Em cima. Na omoplata. Na esquerda. Com cuidado descolei as costas da cama. Levei a mão devagar. Devagarinho. Sobre o ombro esquerdo. Depois fui descendo os dedos. Percorrendo a omoplata. Em círculos. Até encontrar. Eu já sabia. Porque já tinha sentido a cama húmida. E já tinha passado a mão. E era viscoso. Mas se tinha sido um sonho. O sangue dos sonhos não é a sério. Mas. E agora isto. Este buraco. Na omoplata. Na esquerda. Um prego dobrado. E lancei os olhos ao tecto. E percebi porque é que no meu sonho não tinha conseguido entrar à primeira. Preso. Mas se tinha sido um sonho. E depois foi como se me arrancassem o estômago. E abri a boca para gritar mãe. Mas não saiu nada.
Uns pontos brilhantes no ar. Ali. Do outro lado da cortina que servia de porta. E duas bolas grandes grandes como faróis. Empurrando devagarinho a cortina. E eu abri a boca e não saiu grito nenhum.
E agora eu já não abro a boca. Quando vejo os pontos brilhantes aos pés da minha cama. Porque eu já sei. Não vai sair nada. Porque emudeço de terror. Não por causa daquilo. Por aquilo que aquilo me lembra. A minha morte. E de como eu via tudo. E de como a minha morte não era um fim. E de como vai ser. E de como vou ficar agarrado à visão do meu corpo. E de como não vou ter paz. E de como não vale a pena viver. Mas morrer também não. E de como.
Explicit.
Vellem.
Vellem.
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et uidi spatium immensum horti et in medio sedentem hominem canum in habitu pastoris grandem oues mulgentem et circumstantes candidati milia multa et leuauit caput et aspexit me et dixit mihi bene uenisti tegnon et clamauit me et de caseo quod mulgebat dedit mihi quasi buccellam et ego accepi iunctis manibus et manducaui et uniuersi circumstantes dixerunt amen et ad sonum uocis experrecta sum conmanducans adhuc dulce nescio quid et retuli statim fratri meo et intelleximus passionem esse futuram et coepimus nullam iam spem in saeculo habere
et uidi spatium immensum horti et in medio sedentem hominem canum in habitu pastoris grandem oues mulgentem et circumstantes candidati milia multa et leuauit caput et aspexit me et dixit mihi bene uenisti tegnon et clamauit me et de caseo quod mulgebat dedit mihi quasi buccellam et ego accepi iunctis manibus et manducaui et uniuersi circumstantes dixerunt amen et ad sonum uocis experrecta sum conmanducans adhuc dulce nescio quid et retuli statim fratri meo et intelleximus passionem esse futuram et coepimus nullam iam spem in saeculo habere
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