21.8.07

Epistolário XXVII

[Memling - Vir dolorum]
I am stretched on your grave
And I'll lie here forever
If your hands were in mine
I'd be sure they would not sever
My apple tree, my brightness
It's time we were together
For I smell of the earth
And am worn by the weather


(anónimo irlandês do século XVII traduzido por Philip King)

André ao seu Ρ.Α.

Volto sempre a ti. Ou talvez não. Porque eu nunca te deixo. E se nunca te deixo. Então não volto. Porque para voltar. E eu não te deixo. Nunca. Nem nos momentos de maior felicidade. Quando seria fácil arrumar-te num canto esquecido. Mas não. A tua memória não me abandona. E tu sabes que não é fácil. Para os outros. Porque o que para mim é memória. Doce. Sempre presente. Para eles é fantasma incómodo. Quando começo as minhas frases por o Ρ. um dia. Ou o Ρ. uma vez. Ou o Ρ. dizia. Tantas. Demasiadas vezes. E eu não sei se.

Perguntas porque escrevo cartas falsas em nome de um morto que nunca em vida me escreveu uma linha sequer. Eu escrevo memórias. Tu és uma. Das mais queridas. E nos momentos mais negros aninho-me nos braços que amei. Onde está o calor que não encontro cá fora. E à medida que se vai estreitando o meu mundo. E caindo uma a uma as âncoras que me sustêm. A saudade. E a tristeza. E o vazio. Porque é isso que me mata. Olhar em volta e não ver. Então volto sempre a ti. Mesmo não sendo um retorno. Porque na verdade nunca te deixei. A ti vejo-te sempre. Em todo o lado.

E se eu acreditasse que. Seria tão mais fácil. Porque teria aquela esperança. Eu sei. Vã. De um dia voltar a ver-te. Dar-te o beijo que nunca demos. Mas eu não acredito. E nunca mais nos veremos. Nem aqui. Nem em lado nenhum. Não te terei de novo nos braços. E o beijo que nunca demos. Queria poder dizer-te até breve.

Fazes-me tanta falta.

P.S.
Anteontem passei por ti. Era de noite. Estava com ele. Por quem me chora o coração.
Não pararam os meus pés. Parei eu. Deixei de ouvir de sentir de viver. Um momento. Deitei-te os olhos e disse-te olá. Não sei se me viste.

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