18.2.06

A brincadeira

[Mengs - Auto-retrato]

a P.

Vamos fingir que damos um beijo. Tiravas o celofane que envolvia o maço de tabaco, colava-lo aos lábios e olhavas-me, expectante. Eu hesitava. Nunca te tinha visto como objecto de desejo, acho. Tinhas aquilo a que se convencionou chamar "cara de capa de revista". Uma beleza espantosa, pouco comum. Mas mesmo agora, quando te olhava, com os lábios forrados de celofame, os olhos verdes faiscantes, mesmo agora não te conseguia conceber como objecto de desejo, acho. Ou conseguia. Sim, conseguia. Claro que conseguia. Algo me bloqueava, porém. Mas afinal era só uma brincadeira, era só um fingimento. Havia a barreira de celofane. Aproximei os meus lábios desprotegidos dos teus, preparado para entrar no jogo. Mas vi a tempo que, num gesto rápido, tinhas tirado o celofane. Parei a meio caminho. Quase nos beijámos, a sério. Tu rias-te muito. Demasiado. Talvez para disfarçar o embaraço. Quiseste repetir a brincadeira. Mas eu não conseguia. Era beleza a mais, achava eu. Não. Para quê mentir. Eram sobretudo os meus bloqueios mentais. Achava-te extraordinariamente atraente - quem não acharia? Mas não me sentia capaz de dar este passo. Tu se calhar também não. Estava bloqueado. Que idade teríamos? Dezasseis? Dezassete? Éramos miúdos. Pedias-me frequentemente para ficar a dormir no sótão onde vivias, e onde a família não entrava sem autorização. Recusei sempre. Medo? Medo de mim. Sabia que era inevitável a quebra dos meus bloqueios, se aceitasse os teus insistentes convites. E por alguma razão não queria quebrá-los. Apesar de o desejar. E lá estavas tu de novo com o celofane colado aos lábios. Anda, vamos lá, desta vez eu não tiro. Confia em mim.

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