5.2.06

O soldadinho

[Cézanne - Paysage à Auvers]

Sentava-me naquela saliência, um desnível entre o muro do quintal e a parede da casa do lado. Fazia como que um degrau, alto, muito mais alto do que eu. Trepava com a ajuda de caixotes empilhados uns em cima dos outros. Depois sentava-me ali durante horas. Esgravatava suavemente a parede, enquanto imaginava o que poderia estar do outro lado. Na minha cabeça de miúdo de 8 ou 9 anos aquela era uma casa misteriosa. Nunca vira ninguém sair nem entrar. Na verdade devia ser uma espécie de arrecadação, muito velha. Mas eu não pensava nisso. Intrigava-me aquela aparente ausência de vida. Não tinha janelas, na parede virada para o quintal. Apenas umas frestas. Às vezes via luz, lá dentro, o que só aumentava o mistério. Por isso entretinha-me, sentado naquela saliência, esgravatando suavemente a parede, imaginando o que poderia haver do outro lado. Coberta de musgo, desfazia-se facilmente a camada exterior, em mau estado. Era estranho. Nunca chegava ao tijolo. Parecia coberta de uma densa camada de areia fina. Um dia, em vez de uma pequena chuva de areia, caiu-me nas mãos um pedaço maior, um torrão. Na parede ficou um pequeno buraco. Lá dentro estava um soldadinho. Não me lembro se de chumbo. Mas era um soldadinho. Retirei-o, extasiado. Era como uma mensagem da casa misteriosa. Algum menino ali estivera, muitos anos antes, a esgravatar a parede, como eu. Apertei o soldadinho entre as mãos, saltei para o chão e corri para casa, com o coração a bater mais depressa.

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