7.2.06

O fogo

[El Greco - São João Evangelista]

Não, não era a primeira vez. Mas agora era diferente. Radicalmente diferente. Até então eu sempre achara que não era normal, que não era como os outros. Já me apaixonara várias vezes, achava eu. Até amara. Mas nunca sentira aquele fogo a consumir-me as entranhas, aquele ardor de que tantos falavam. Achava que era por ter um carácter frio e reservado. Sentia-me até orgulhoso desta minha frieza. Mas agora sentia-me atropelado pelos sentimentos. Uma revolução interior. Avassaladora. Era como se sensações e desejos durante tantos anos reprimidos resolvessem manifestar-se, todos, de repente, ao mesmo tempo, de uma vez só. Emudecia. Cegava. Não. Basta. Para quê tentar descrever? Era uma revolução de sentidos, avassaladora. Chega. Não era correspondido, não poderia ser nunca, nem isso me preocupava. Bastava-me aquele êxtase. Não sofria, pois sabia que não alcançaria nunca o objecto da minha paixão. Sentia-me inundado de uma felicidade estúpida. E de uma enorme decepção: afinal eu era normal, afinal eu era como os outros.

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