18.2.06

Paz

[Dürer - Auto-retrato com ligadura]

a P.

Como suspeitava, a alta médica não me trouxe a paz. Durante semanas, meses, sofri de dores de cabeça constantes e insanáveis, em princípio decorrentes do traumatismo craniano. Não havia medicamento que mas aliviasse. Havia certamente algo de psicossomático nisto. Ficava tomado de horror puro, quando pensava numa eventual recaída que me levasse de novo para o hospital. Passava os dias deitado, sem ordem para ler livros nem ver TV nem ouvir demasiado barulho. Achava que as dores estavam relacionadas com o contacto da minha cabeça com a almofada, tal era a paranóia. Pareciam aumentar, quando a mantinha demasiado tempo imóvel. Eram dias de pesadelo. A proibição de ler era o que mais me atormentava. O miúdo vinha visitar-me regularmente. Eu tinha 16 anos, ele 13 ou 14. Para mim era apenas um miúdo. São aquelas idades em que uma diferença tão pequena se torna tão grande. Tinha-o conhecido dias antes do acidente. Vinha da Holanda, filho de holandesa e de português. Da mãe herdara o físico nórdico, do pai o temperamento meridional. Entrava de rompante, lançava-se para cima da minha cama e falava ininterruptamente durante horas. Às vezes deitava-se ao meu lado, o que me causava bastante desconforto. Apesar de tudo fomos criando laços fortes. Durante algum tempo andou entre a Holanda e Portugal. Depois fixou-se definitivamente na Holanda. Há muito que não o vejo nem tenho notícias. Quanto a mim, aos poucos fui saindo de casa, regressando ao mundo. Mas não recuperei logo a paz. Durante anos baixei-me instintivamente ao passar por portas mais baixas, e empalideci de terror sempre que batia com a cabeça em algum lado, mesmo ao de leve.

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