27.12.08

Ninguém

[Honoré Daumier - Carruagem de 3ª classe]

Talvez nos tenham visto e por isso olham e riem. Riem de mim. Estás a ver. Quando me deixaste diante do prédio. Lembras-te. E eu deitei a mão à porta do carro. Não tenhas medo. Ninguém nos vê. A noite é funda e é nossa. Puxar a tranca arrojar-me escarrar-me no meio da rua. E é já ali. Sair do carro e atravessar sem olhar para um lado e para o outro porque a esta hora. Só os cães a rosnar e eu vou subir as escadas oito andares para não acordar ninguém porque o elevador. O barulho. E parar em cada patamar e tapar os pulmões e entornar os ouvidos escadas abaixo a ver se alguém. Porque se alguém me vir se alguém nos vê. Não não não não. Depois pegaste-me na mão. Devagarinho. Tiraste-ma do puxador e o teu corpo enorme esmagando-me o peito e o pescoço. Ninguém nos vê.

26.12.08

Amentia

[Ilustração do livro de J. Cazotte Le Diable Amoureux. Paris, 1845. pág. 3]

Se eu pudesse entornar-me em cima de mim e lançar-me as mãos ao pescoço e apertar com muita força assim assim assim até me.

21.12.08

Gothica

[Honoré Daumier - Saltimbancos]

Enterraram-na no dia de anos. Domingo.

Levantaram-lhe a tampa do caixão e puxaram-lhe os panos e não havia gritos. A cara velha e os cabelos amarelos dos anos. Não brancos. Amarelos. Sempre lhos vi amarelos. E a chuva cuspindo-lhe as rugas e os lábios secos. Disseram-lhe adeus e o vento e a chuva babando-nos as caras dormentes. Há sempre o vento e a chuva. E o frio tu lembras-te do frio. Não. Eu sim. Do céu azul de chumbo e de frio. E dos gritos que me arrancavam as tripas e do rapaz que passou por mim e me deitou os olhos vermelhos de tanto chorar e a boca torcida numa dor que eu sei. Fecharam-lhe a tampa do caixão e a chuva abrandou.

A tua não ta vi fechar. Nem abrir. Só os gritos.

10.12.08

Aflição

[Aachen - Casal rindo]
e se assim fosse, estando ele morto sem regresso, a sua vida seria uma lenta aflição por esperar quem nunca poderia voltar.
valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores

Deixa-me dizer-te que não estou louco. Eu sei que não podia ser. Que tu não estás cá. Que tu não. Mas ainda assim. Ainda assim entornei-me os olhos nos dele. Deixei-lhos ficar uns momentos. Pequeninos. E abri um sorriso. Ele também. Pensou que era alguém conhecido. Vagamente. Um conhecido destes. Dos que nos aparecem de vez em quando na rua e não sabemos quem são. Mas não. Depois caí em mim. E tirei os olhos dos dele. Era igual a ti. Mas não eras tu.

3.12.08

Retorno

[Abraham van Beyeren - Paisagem fluvial]

Se é o cheiro do mar. Se o da porcaria da merda que se acumula no porto. Que queres que te diga. Não sei. Há um cheiro forte. E eu não sei do que é. Pode ser do barco. Aquilo é um barco. Saberei mais tarde que aquilo é um barco. Agora é uma montanha se eu soubesse o que é uma montanha. E as mãos são as mãos da minha mãe que me apertam o choro. Tenho fome ou estou farto de estar aqui. Ou tenho medo. Olha a montanha olha o barco. Ou uma vaca. É uma vaca gigante que muge aflita. E lá dentro da vaca vêm pessoas de África e cheiram a leão. E ela tem medo. E há caixas muito grandes. Que queres que te diga. Não me lembro de mais nada. Só do colo da minha mãe e do mugido do barco.

2.12.08

Cuspir

[Alenza y Nieto - Retrato de um arquitecto]
Eis um homem perdido, aqui está um homem que se perde a si mesmo e não consegue deter-se a si próprio.
Dostoiévski, O duplo

Pôr a cabeça de fora. E cuspir os olhos para o chão. Que porcaria. Cuspir para o chão. E os olhos. Cuspir os olhos para o chão. Não se faz. Eu sei. E eu fiz. Depois fechei a janela. Despejei-me no sofá. Sem apagar a luz. Agora não vejo. E se não vejo.

25.11.08

O encoberto

cartaz

«Morto buscava a Madalena a Cristo na sepultura, e a perseverança e amor com que insistiu em o buscar morto, foi causa de que o Senhor lhe enxugasse as lágrimas e se lhe mostrasse vivo. Grande exemplar temos entre mãos! Assim como a Madalena, cega de amor, chorava às portas da sepultura de Cristo, assim Portugal, sempre amante de seus reis, insistia ao sepulcro de el-rei D. Sebastião, chorando e suspirando por ele; e assim como a Madalena no mesmo tempo tinha a Cristo presente e vivo, e o via com seus olhos e lhe falava e não o conhecia, porque estava encoberto e disfarçado, assim Portugal tinha presente e vivo a el-rei nosso senhor, e o via e lhe falava e não conhecia. Porquê? - Não só porque estava, senão porque ele era o encoberto
Sermão dos Bons Anos, IV

18.11.08

Esponja

[Caspar David Friedrich - Paisagem de Inverno]

Quando estas manhãs pastosas. Sabes. Estas manhãs que me enfiam os dedos mortos na boca e sabem a peixe cru. E me lavam os olhos e me lambem a cara. Porque é como se tivessem uma grande língua de esponja nojenta. De esponja cinzenta. Porque não há luz não há Sol. Só esta pasta cinzenta. E depois há a tua mão que me afaga há a tua mão que limpa e me diz rise and shine. Shine. Lembras-te. Era assim que. E depois veio aquilo.

11.11.08

África 2

[Francisco de Zurbarán - São Francisco]

Talvez não não sei espera se alguém nos aqui aqui está bem aqui ninguém nos vê e o escuro tão escuro vês não te e se e se sim e se não me vês então ninguém nos vê. xxx xxx xxx. Silêncio. Respira. Assim. Isso. Sossega. Só eu e tu. Ninguém nos vê. Só eu e tu. Ninguém te faz mal. Anda. A tua mão. Dá cá. Anda. na minha. Devagarinho. Anda. És tão bonito. Calado x x x x x calado. A tua mão. Na minha. Anda. Mais. Vá. Não tenhas medo. Anda. x x x x.
X.

8.11.08

Kill the pain . XLII . Explicit



Cortizona. Se lhe pudesse matar a dor com. Mas não. Tenha calma. Não há tubarões. Aqui. Aqui não. Mas no mar. No mar há. No mar há tantos. São bichos espantosos. Sabe. Não podem parar. Se param morrem. O ar não lhes passa pelas. E morrem. Tenha calma. Isso. Isso. Vamos. Quer um copo de água. Então. Juro-lhe que não há tubarões. Já imaginou. Um tubarão num copo. Não pode ser. Vamos. Para a semana. Quero vê-lo para a semana. Sem tubarões. Nem tijolos. Que ideia. Tijolos e tubarões. Quer ajuda. Mais um bocadinho. Deixe-se estar. Se lhe pudesse matar a dor. Se lhe. Venha cá. Não. A sério. Venha cá.

explicit
deo gratias
والحمد لله

31.10.08

Kill the pain . XLI . Requiem Aeternam

[Adriaenssen - Natureza morta com peixes]

Para lhe dizer que já vi que j'ai vu mon requin. Je l'ai vu dans votre nez de rat. Ou então não. Ou então era o anel de fogo. O anel de fogo que me rasgava os olhos se acordava demasiado cedo. Se acordava e a manhã ainda babava as janelas de uma gosma azul negra. E as costelas me diziam força força mais uma vez. Já chega. Venha cá. Eu já vi. Je l'ai vu. Os dentes. Um anel de dentes. Como nos filmes. Documentários. Vindos do abismo. Um anel de fogo. Venha cá. Não tenha medo. Je l'ai vu. Mon requin.

30.10.08

Arabiya

Os poemas traduzidos do Árabe passam a ser publicados num novo blogue: Pausa sobre as ruínas - الوقوف على الأطلال

26.10.08

Sombra

[Bosch - Alegoria da Gula e da Luxúria]
الخان

في الخان المُجاور ـ
رأيت ظِلّي يشرب كأس نبيذ
..........
وأنا هنا ـ
يُداهِمُني السُكْر
تترنح كلماتي

a taberna

na taberna aqui ao lado
vi a minha sombra a beber um copo de vinho
..........
e eu aqui:
agarra-me a bebedeira
tremem-me as palavras

Hassan Najmi
(tradução minha a partir do original árabe)

23.10.08

África 1

[Ippolito Caffi - Neve e nevoeiro no Canal Grande]

Subir as escadas nhec nhec porque a madeira está seca ou está podre e há cogumelos pendurados na parede. Anda dá-me a mão e não não digas. Não vá alguém ouvir-nos e subir as escadas atrás de nós. Cuidado porque o chão está podre ou está seco não sei. Segura-te a mim. Assim. E os teus lábios não sabem a África que nunca viste.

19.10.08

Brecha

[Khaled as-Saa'i - Sem título]

ثغرة
تحفر إلى الأبد
لا أحد يملأ
لا أحد
كلما حاولت
أخفقت
أسقطت
دمعة

فاتحة مرشيد

uma brecha
abrindo-se para sempre
ninguém a enche
ninguém
e sempre que ela tenta
falha
deixa cair
uma lágrima
Fatiha Morchid
(tradução minha a partir do original árabe)
Obrigado à Nádia pela ajuda
nas dificuldades surgidas.

18.10.08

Kill the pain . XL . Rato

[Goya -Pátio do manicómio]

Já chega sabe já chega. Já lhe contei tanta coi já lhe contei mais do que devia. E o senhor levanta o nariz como um rato. Como um rato. O senhor é um rato. E eu sou um rato. Pequenino. Muito pequenino. Já chega. Venha cá.

9.10.08

Amor marinho

[Avercamp - Pescadores ao luar]

في الحُبّ البحريّْ

أنا بَحْرُكِ، يا سَيِّدتي
فلا تسألين عن تفاصيل الرحلةْ
ووقْتِ الإقْلاع والوُصُولْ.
كلُّ ما هو مطلوبٌ منكِ
أن تنسَيْ غرائزَكِ البَرِيَّةْ
وتُطيعني قوانينَ البحرْ...
وتَخْترقيني كسمكةٍ مَجْنُونَةْ
تَشْطُرُ السفينةَ إلى نِصْفَينْ..
والأُفُقَ إلى نِصْفَيْنْ..
وحياتي إلى نِصْفيْنْ..

sobre o amor marinho

sou o teu mar, senhora minha,
e não me perguntes da viagem
nem do tempo da partida e da chegada:
só tens de
esquecer os impulsos da terra
e obedecer às leis do mar
e entrar-me como peixe enfurecido;
racha o navio em dois pedaços
e o horizonte em dois pedaços
e a minha vida em dois pedaços

Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)


fī l-ḥubbi l-baḥrīy

'anā baḥruki, yā sayyadatī
fa-lā tas'alīna ʿan tafāṣīli r-riḥla
wa-waqti l-'iqlāʿi wa-l-wuṣūl.
kulla mā huwa maṭlūbun minki
'an tansay ġarā'izaki l-barīya
wa-tuṭīʿnī qawānīna l-baḥr...
wa-taḫtariqīnī ka-samakatin majnūna
tašṭuru s-safīnata 'ilā niṣfain..
wa-l-'ufuqa 'ilā niṣfain..
wa-ḥayātī 'ilā niṣfain..

8.10.08

Epistolário XXXI

[Goya - Quien lo puede pensar]


André ao seu P. A.

Há aquele momento que me assalta todos os dias. Quando podia ter-te dito. E pegado na tua mão. Nos ossos da tua mão que já não era mão. Eram ossos. Como os de agora. Enterrados. E ficar assim quieto. A tua mão morta quase morta enterrada na minha. E dizer-te. Dizer-te com muita força. Tu sabes. Aquela noite. Quando deixámos de ouvir a música e as pessoas à volta. E tu disseste-me. E eu não. E eu não fui capaz. Eu não sou capaz. Ouve. Não sou capaz. Eu não sou capaz. E todas as noites quando me deito e tu me visitas o sono. Todas as noites. Vejo-te todas as noites. Com cabelo. E o cigarro maroto e os olhos pequeninos. E os rebentos de barba rufia. E depois o murro nas tripas daquele momento. Quando podia ter-te dito que. E apertado com força a tua mão quase morta na minha. E em vez disso fiquei de mãos esmagadas, as unhas cravadas nas palmas, e as tripas puxadas rasgadas com força força tanta força, a ver-te morrer. E cada dia se torna mais difícil.

Até já. Vou-me deitar.

4.10.08

Mãos

[Largillière - Estudo de mãos]
حَديثُ يَدَيْها

قليلاً من الصَمْتِ ..
يا جَاهِلَةْ ..
فأجملُ من كُلِّ هذا الحديثْ
حَديثُ يَدَيْكِ
على الطَاوِلَةْ ..نزار قباني
a fala das mãos dela

um pouco de silêncio,
impetuosa,
que a mais bela fala
é a fala das tuas mãos
sobre a mesa

Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)

ḥadīṯu yadayhā
qalīlan mina ṣ-ṣamti
yā jāhila
fa-'ajmalu min kulli hāḏā l-ḥadīṯ
ḥadīṯu yadayki
ʿalā ṭ-ṭāwila

2.10.08

Kill the pain . XXXIX . Tempo

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor)]

Do medo. Da dor. Do sofrer. Mas agora. Agora não. Porque agora. Quando o senhor me. Quando a sede e o desespero me arrancarem as tripas. Eu vou urrar e chorar e bater com a cabeça nos tijolos e. Sem muita força. Porque a fome e a sede. E eu vou saber que depois não me vou lembrar. Que quando adormecer acabou. E o sangue não me voltará a encher de memórias. Nem de dor. Porque vai ser o sono final. E eu não vou acordar. Um saco de pele e carne e ossos e gosmas. Sem memória. Sem dor. Podre. Outra mancha no chão desta cela. Mas quantos. Diga-me. Quantos. E fica a ouvir-lhes os gritos. E ouve-lhes a morte. Diga-me. Ouve-lhes a morte chegar. E quantos. Quantos. Quanto tempo.

27.9.08

Kill the pain . XXXVIII . Memória

[Fra Angelico - Decapitação dos santos Cosme e Damião]

"e ela já sabia que não penaria ali nunca mais, não penaria viva, esfregando o coração no chão, limpando cada nódoa que, mesmo depois de tirada, continuaria escurecendo o seu interior. ela não ficaria mais tempo na praça, não ela, uma mulher que fazia o seu próprio juízo e queria morrer de amor."

valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores



Já lhe disse que. Mas não. Não se levante. Não se vá embora. Não me deixe aqui sozinho. Porque tenho de lhe perguntar. Se depois. Quando estiver posto ali o trigésimo quinto tijolo. São trinta e cinco não são. Ou trinta e seis. Sete. Como eu. Trinta e sete. Mas não se zangue. Tenho de lhe perguntar. Como vai ser. Sem pão sem água. Quanto tempo. O senhor deve saber. Porque eu não sou o primeiro. Há aqui um cheiro a morto. Sabe. Uma cócega no nariz. Bem lavado. Sem manchas no. Não. Uma duas três. Umas quantas. Pequeninas sombras. Ali e aqui. Tripas podres. E sangue e gosma. Lixívia escova escova escova mas fica sempre um bocadinho. Uma mancha uma sombra. Um cheiro a. O senhor sabe. Quanto tempo. Horas dias. Dias. Dois três quatro. Quantos. Sem água. Porque sem pão seriam mais. Mas sem água. E vai doer. Vai vai. Mais do que agora mais do que nunca. A sede a fome. A sede. Não me diga. Porque se eu souber. Não interessa. Diga diga. Não ligue. Já está. Não volto atrás. Mesmo sendo pior. Mesmo sendo pior do que quando. Tanto faz. Porque depois eu já não estou cá. Sabe. Não é do sofrer que tenho medo. Nunca tive. É da memória. Do saber que me vou lembrar. Que amanhã quando acordar. E quando o sangue me trouxer de novo a maré das memórias ao cérebro. Sabe. Quando acordamos e ainda não abrimos os olhos e está tudo bem. E depois aos poucos. Os dedos metidos nos miolos. À procura. Porque eu sei que há qualquer coisa. Eu sei. Que quando me deitei. Dizia que quando dormia não tinha dores. Ele. Eu sei. Que quando adormeci e me esqueci de tudo. Havia ali uma dor uma dor baixinha. Assim. Está lá. Está lá sempre. É só procurar com paciência. E depois. E depois de repente. Uma onda de memória. Já está. E as tripas apertadas. E os cobertores queimam a pele.

25.9.08

Peixe

[Jean-Jacques Grandville - Peixes pescando pessoas]

كَمْ تُشْبهِنَ السَمَكةْ
سريعِةٌ في الحُبِّ.. مثلَ السَمَكَةْ
جَبَانَةٌ في الحبِّ.. مثلَ السَمَكَةْ
قَتَلتِ ألفَ امْرَأةٍ في داخلي
وصِرْتِ أنتِ المَلِكَةْ
نزار قباني

como pareces um peixe
veloz no amor como um peixe
cobarde no amor como um peixe
mataste-me mil mulheres dentro de mim
e tornaste-te tu rainha
Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)

23.9.08

Kill the pain . XXXVII . Tranca

[Fragonard - A tranca]

Passou. Já passou. Podia ter sido pior. Podia ter sido. Sabes que me disseram que morreste. A sério. Sabe aquelas notícias que nos arrancam as tripas. E afinal não era verdade. Ou. Não sei. Não interessa. Nem a mim. Nem a si. Já passou. Há muitos anos. Quase vinte. Imagine. Quase vinte. E ainda não lhe contei. Ainda não. Amanhã. Talvez.

22.9.08

Coelho


[Trabalho sobre caligrafia árabe, de Samîr Malik]
آهِ.. لو تتحرَّينَ يوما
من غَريزة الأَرَانِبْ..
وتَعْرِفينْ،
أننّي لستُ صيَّادَكِ..
لَكنَّني حبيبُكِ...
نزار قباني

ai se um dia te libertasses
da natureza medrosa dos coelhos
e soubesses
que eu não sou o teu caçador
que eu sou o teu amor
Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)


Obrigado à Nádia pela ajuda
nas dificuldades surgidas.



ʼāhi.. law tatḥarrīna yawman
min ġarīzati l-ʼarānib...
wa-taʿrifīn,
ʼnannī lastu ṣayyādaki..
lakinannī ḥabībuki...

21.9.08

Issa

[Fragonard - Mulher brincando com cão]

Issa é mais malandra que o pardal do Catulo.
Issa é mais pura que o beijinho de uma pomba.
Issa é mais fofinha que todas as miúdas.
Issa é mais preciosa que as gemas da Índia.
Issa é a cadelinha mais-que-tudo do Públio.
Se geme, cuidarias que fala.
Sente a tristeza e a alegria.
Deita-se tombada no seu pescoço e adormece,
de tal maneira que nem um suspiro lhe ouves.
E, obrigada pelas exigências do ventre,
gota nenhuma ofende os lençóis,
mas com branda patinha o acorda e lhe recomenda
que a tire da cama e pede que a levante.
Tanto pudor se acha na casta cadelinha!
Ignora Vénus, e não achamos
digno marido de tão terna menina.
Não lha leve por completo a morte derradeira,
pinta-a Públio numa quadro,
no qual verás tão parecida Issa
que nem ela é tão parecida consigo mesma!
Põe, pois, Issa ao lado do quadro:
ou ambas julgarás verdadeiras,
ou ambas julgarás pintadas!

Marcial, I. 109

Issa est passere nequior Catulli,
Issa est purior osculo columbae
Issa est blandior omnibus puellis
Issa est carior Indicis lapillis
Issa est deliciae catella Publi
hanc tu, si queritur loqui putabis
sentit tristitiamque gaudiumque
collo nixa cubat capitque somnos
ut suspiria nulla sentiantur
et desiderio coacta uentris
gutta pallia non fefellit ulla
sed blando pede suscitat toroque
deponi monet et rogat leuari
castae tantus inest pudor catellae,
ignorat Venerem nec inuenimus
dignum tam tenera uirum puella
hanc ne lux rapiat suprema totam
picta Publius exprimit tabella
in qua tam similem uidebis Issam
ut sit tam similis sibi nec ipsa
Issam denique pone cum tabella
aut utramque putabis esse ueram,
aut utramque putabis esse pictam

Kill the pain . XXXVI . إرتباك


دَعْ ما يُريبُكَ إلى ما لا يُريبُكَ
recusa o que te inquieta em favor do que não te inquieta
(ditos de Maomé)

Depois descia as escadas ou apanhava o elevador. A verdade é que já não me lembro e não sei se. Porque o que vinha depois sim o que vinha depois. Assim que fechava a porta. Ele. Ou eu. Tanto faz. O medo era sempre o mesmo. Bicho medonho acordado pelo bater da porta. Ali deitado escondido à minha espera. As patas frias molhadas arranhando-me as pernas. Trepando puxando-me os testículos com força e doía. Doía tanto. Sabe. Sabe. Claro que sabe. E as unhas subindo passando ignorando-me o sexo ridículo cravadas na pele. Se ele me deixa o que é que eu faço. E eu sei que ele porque ele mal me olha de dia e de noite vira-me as costas na cama depois de. E não me telefona. E os telemóveis ainda vão ser inventados e só nos vemos nos corredores nas salas nos bares. E se ele foge de mim e eu sei que ele foge de mim. Se hoje não o vir nem amanhã. Cravadas em fúria acima do umbigo. Rasgando-me as carnes e a barriga aberta escancarada vomita-me tripas e sangue e o bicho o medo abrindo caminho dentro de mim comendo roendo-me os ossos cuspindo as gosmas e eu fico ali despejado despejando-me pelos degraus a pensar e se ele hoje à tarde e se ele amanhã. E ainda não lhe contei o que aconteceu mesmo. Não o que aconteceu antes. Porque isso eu conto muitas vezes.

19.9.08

Ainda

[Trabalho sobre caligrafia árabe, de Samîr Malik]

مازلْتِ يا مُسَافِرَةْ
مازلْتِ بعدَ السَنَةِ العَاشِرَةْ
مَزْرُوعةً.. كالرُمْح في الخَاصِرَةْ
نزار قباني
ainda, viajante,
ainda, dez anos depois,
és dardo cravado no meu flanco
Nizâr Qabbânî
(tradução minha a partir do original árabe)

mazlati yâ musâfira
mazlati s-sanati l-ʿâšira
mazrûʿatan ka-r-rumh fî l-ḫâṣira

Maldito

[Bruegel o Velho - A morte da Virgem]

«há uma maturidade muito grande na morte, pensava a maria da graça. uma sabedoria qualquer que nos acode. sentiu-se muito calma tão rente à felicidade e compreendeu que era só o que queria. nem lhe importava absolutamente que existisse deus e ele a julgasse também para uma vida além do corpo. era só importante que pusesse um fim ao quotidiano cansativo que vivia e a morte estava diante de si como um passo apenas em determinada direcção. depois disto, pensava também, não estarei em lugar nenhum. e até o querer que exista o maldito, em alguma nuvem à minha espera, vai deixar de fazer sentido no momento em que eu própria desapareça de todo e não puder pensar nisso nem no contrário.»
valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores

18.9.08

Respirar

[Gian Lorenzo Bernini - Auto-retrato em jovem]

«Não sei porquê - noto-o subitamente - estou sozinho no escritório. Já, indefinidamente, o pressentira. Havia em qualquer aspecto da minha consciência de mim uma amplitude de alívio, um respirar mais fundo de pulmões diversos.»
Bernardo Soares, Livro do Desassossego.

17.9.08

Kill the pain . XXXV . Aflição

[José Antolínez - Morte da Madalena]

e se assim fosse, estando ele morto sem regresso, a sua vida seria uma lenta aflição por esperar quem nunca poderia voltar.
(valter hugo mãe, o apocalipse dos trabalhadores)


Não sei se lhe contei. Eu conto sempre isto. Quer dizer. Eu conto sempre o que aconteceu antes. Nunca o que aconteceu. Mas a si. O senhor é diferente. É o senhor que me vai arrancar a esta merda. Esta merda. Era assim que ele dizia. Esta merda. Aquela merda. Já não tenho aquela merda. Já me passou aquela merda. Lembras-te daquela merda. Conseguiram tirar tudo. E depois morreu. Com aquela merda. Mas não. Não é dele que lhe quero falar. Um dia إن شاء الله um dia falarei dele. Sabe que não há um dia uma noite em que não me afague a memória. Há sempre uma cara na rua. Um olhar um rir. Um gingar. E o peito deixa de me subir e descer e os olhos e a boca. Seco tudo seco. Como se eu morresse ali. Às vezes passa-me pela cabeça. Sabe. Se calhar não é por causa do olhar e do rir e do. Se calhar não é isso. Se calhar é ao contrário. Se calhar fui eu que morri um bocadinho. Assim uns segundos. E por isso consigo vê-lo outra vez. Os dois memória sem corpo. Juntos. Como antes. Antes daquela merda. Se calhar. Já tem tem passado pela cabeça. Se calhar quando o senhor me. Sabe. Porque eu estou farto desta merda. E afinal não lhe contei o que aconteceu. Quer dizer. O que aconteceu mesmo. Não aquilo que eu conto sempre. E que também aconteceu. Mas foi antes.

15.9.08

Kill the pain . XXXIV . Janela

[Caravaggio - Madonna del Rosario (pormenor)]

irrumabo uos ego et pedicabo
Catulo


Metia a chave na porta e olhava para trás e punha o dedo nos lábios e dizia xiu. Xiu para quê. Não havia velha nenhuma. Só tu e eu e a cama não rangia. Como se eu não existisse. Se eu não estivesse ali. Despido e humilhado. Rasgando as entranhas de medo. Deitando-lhe mãos invejosas. E a cama nada. Como se eu nem. E eu não. Em silêncio. Puta. A cama. Conspirava com ele. Para me humilharem. Os dois. Os três. Ele e a cama e a velha que não existia. Não faças barulho. E eu não fazia e mordia os lábios e a língua enquanto os dele os lábios e a dele a língua. Sabe. Não sabe. Como pode saber. Não fosse eu rosnar ou gemer. Mas eu nunca. Sempre calado. Para quê para quê mentir para quê a velha. Sempre em silêncio. Mesmo quando. Devagar pára. Já está.

vergonha

Não tive a culpa. Os teus lábios e a língua e as. Chega. Não aguentei. O senhor sabe. Tem de saber. Uma toalha. Se eu queria uma toalha. Para me limpar. Ou talvez fosse para me tapar. Para não me ver. Era isso. Tinha nojo de mim. Porque depois virava-se de costas e até amanhã. E o que eu queria era uma janela. Abrir a janela. Vomitar vomitar-me lá para baixo. Fugir do calor e do meu embaraço. O meu pequeno embaraço. Molhado lambido e a barriga peganhenta. E as mãos. Uma toalha. Não. O que eu quero é que. Quê. Um décimo ou décimo primeiro andar. Não sei. Não me lembro. Não interessa. Já passou.

14.9.08

Kill the pain . XXXIII . Toalha

[G. Macchietti - Banhos em Pozzuoli]


quae si scribantur per singula nec ipsum arbitror mundum capere eos qui scribendi sunt libros

Io. 21:25

Se eu queria uma toalha. E eu não não queria. O que eu queria era abrir a porta. A janela. Abrir a janela. Porque estava tanto calor. E a porta não se podia abrir por causa da velha. Não nos podia ouvir. Não me podia ver. E eu nunca a vi. Podia nem. Já me passou pela cabeça. Sabe. Podia ser mais uma humilhação. Eu ser a puta. Que entra em segredo em silêncio xiu. Clandestino. Trancado naquele quarto quente tão. E se calhar nem havia velha nenhuma. Se calhar era só mais uma humilhação. Sabe. Na faculdade fugia-me. Sim sim. Ele mesmo mo disse. Fugia de mim. Via se eu estava no bar. E se estivesse. Não se ria. Mas ele. O que ele se deve ter rido. Sim. Ele sim. Trepando escadas ridículas. Cuspindo olhares de desprezo por cima do ombro. Imaginar-me despido na sua cama. Eu. A sua puta. A quem telefonava quando mais ninguém estava. E eu dizia sempre que sim. Odiando-me a cada novo sim. Porque eu sabia. Porque eu gostava tanto dele. Sabe. Não sabe. Quando os dias são feitos a olhar para o telefone. E cada minuto é uma mão que nos abre a barriga e nos arranca as tripas. Devagarinho. Quando cuspimos a última vírgula de dignidade e dizemos sim outra vez sim sim. Subir as escadas e cheirar-lhe a indiferença no hálito azedo. Ler-lhe nos olhos a mole maçada de ter de me abrir a porta e a cama e. E ainda assim. Porque eu achava que. Sabe. A esperança parva dos apaixonados. Não. Não sabe. Como poderia saber. E esmagar na boca um riso medonho. O gozo. E eu o gozado. E eu sabia. E ainda assim.

13.9.08

As moscas

[Trabalho sobre caligrafia árabe, de Samîr Malik]

(Um poema de Mahmûd Darwîsh traduzido do árabe por mim. Não é o meu preferido. É o que consigo traduzir.)


salmo 3

no dia em que as minhas palavras foram
terra
fui amigo de espigas de trigo

no dia em que as minhas palavras foram
fúria
fui amigo de grilhões

no dia em que as minhas palavras foram
pedra
fui amigo de arroios

no dia em que as minhas palavras foram
revolta
fui amigo de terramotos

no dia em que as minhas palavras foram
cabaças azedas
fui amigo do optimisma

quando as minhas palavras se tornaram
mel
as moscas cobriram-me
os lábios

Mahmûd Darwîsh

12.9.08

Kill the pain . XXXII . Quid est ueritas

[Daniele Crespi - Pietà]

للحقيقة وجوه كثيرة
(provérbio árabe)

Mais uma ginja e vamos. E íamos e voltávamos. Não sei para onde. Não interessa. A noite media-se pelo tempo que faltava para. Tu sabes. Por isso íamos e voltávamos. E se nem fôssemos. Se só voltássemos. Voltar a beber-te a boca morna e enterrar-me as mãos no ninho dos teus cabelos. Escalar as escadas. A avenida dos. Lembras-te. Unidos num abraço medonho. Medo. O medo. De que fosse a última noite. Sabe. Eu achava que aquela era sempre a última noite. Que amanhã a noite morria e eu com ela Não se ria. Se me visse na minha ridícula nudez. Os olhos esmagados e a boca seca. Sabe. Não sabe. Se soubesse. Se o senhor me visse. Depois enrolava-me no lençol suado. Sudário. Era um sudário. Onde apodrecia. Devagarinho. Todas as noites. Em silêncio. Sem saber quem és tu. E ainda assim eu dizia-te sempre que sim. A tua puta. Não faça essa cara. Sem uma vírgula de dignidade. Porque eu só queria trepar as escadas e abrir a porta devagarinho e entrar e entornar-me na tua cama em silêncio. E depois sentir-te a pele na minha e as mãos e. A noite media-se assim. O tempo que faltava até me amarrotar e me deitar fora até outro dia outra noite.

Transe

6.9.08

Misalignments

[William Blake - Songs of Innocense]
and look at this prepronominal funferal, engraved and retouched and edgewiped and puddenpadded, very like a whale's egg farced with pemmican, as were it sentenced to be nuzzled over a full trillion times for ever and a night till his noddle sink or swim by that ideal reader suffering from an ideal insomnia: all those red raddled obeli cayennepeppercast over the text, calling unnecessary attention to errors, omissions, repetitions and misalignments
James Joyce, Finnegans Wake

Kill the pain . XXXI . Humiliate uos

[Giotto - Lamentação sobre Cristo morto]
humiliate uos ad benedictionem
(do rito moçárabe)


Lembras-te. A mão descia e. Sempre a mão. Até ao fim até ao. E eu já não sabia se o suor era teu se era meu. Mas agora não era para me fazer mal. A mão. A minha. Ou talvez. Talvez sim. A verdade é que. Lembras-te. Foi mau. Muito mau. E nunca mais passava. Primeira vez. A minha. A tua não. Tu avisaste-me entre risos envergonhados. Mas nada do que viesse de ti era mau. Ou era. Era. Foi. Tanto faz. Já passou. Mas naqueles dias. Naquelas noites. Nada que viesse de ti. Mesmo quando não me vias nem me telefonavas. E depois veja lá. Aparecia-me. Assim. Como se ontem e anteontem e na semana passada. Percebe. Como se nos víssemos todos os dias. Como se fosse uma rotina. Uma rotina boa. De namorados. Mas dois que se viam de vez em quando. Quanto tu querias. Porque eu. Eu queria-te todas as noites. Beber beber-te os lábios e a língua agarrar-te morder-te o pescoço insultar-te as nádegas beijar-te entornar-me dentro de ti. Percebe. Era a primeira vez que eu. Até então a mentira. Há tantos que. A vida toda. Mentindo-se a si e aos seus. Mas eu. Eu não. Quer dizer. Ainda me minto. Mas não nisso. Ou. E ele aparecia. Como se. E dizia-me. Então hoje à noite às tantas horas no tal sítio. O tal sítio era um bar ou uma tasca daquelas. Sabe. Ginginha com elas. O chão tem cola e os sapatos fazem nhac nhac. E eu ia. Sicut ouis ad occisionem. Sem um protesto sem um tive saudades sem uma vírgula de dignidade. Ontem não me quiseste nem anteontem nem na semana passada. Hoje aqui me tens. Até ao fim.

31.8.08

O monstro . 7 . Pitão

[Delacroix - Apolo matando a Pitão]

Impresso de 1726, achado na Biblioteca Nacional, com a quota H.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia e pontuação. Em episódios.
---

«Esta me obrigou a acharme em varias montarias, que se fizeraõ no termo desta Cidade, para evitar o damno, que todos os dias padeciaõ os Camponezes; mas naõ tiveraõ o effeito, que se esperava estas diligencias, porque apenas o poderaõ affugentar para a parte de Jerusalem, onde emboscado nos matos circunvisinhos, sahia a fazer os mesmos insultos nas estradas, e nos campos. Só a figura deste animal impunha medo aos que a viaõ: a violencia com que acometia, desanimava o valor dos que o buscavaõ; e como todos na sua visinhança tinhaõ o perigo por certo, todos procuravaõ vello, mas de longe; e assim se naõ podia reconhecer a sua especie.

Entendia-se ao principio, que era algum Leaõ, que tinha sahido das terras da Hircania, obrigado pela indigencia do sustento: a outros lhes parecia ser Urso; porem a grandeza do seu corpo desmentia estas opinioens; porque era mayor, que nenhuma destas feras. Depois de morto nos confins de Jerusalem, se me mandou o seu retrato, de que vos envio a copia. Por ella vereis, que naõ tem semelhança com algum dos animaes, que nos descreve Plinio, e retrataõ Gesnero, e Aldrovando. Naõ faltou quem quizesse persuardirme, que era Grifo; animaes, que ainda que façaõ grande figura nos brazoens, tenho por taõ fabulosos, como a Ave Fenix. Tambem houve quem dissesse, que era Serpente, ao que eu me inclinava mais, porque como estas naõ multiplicaõ a sua especie, cada uma póde ter differente fórma; mas he necessario capacitarme primeiro, que ha Serpentes. Bem me lembro de haver lido, que produzio a terra huma, depois do diluvio de Deucalion, a que se deu o nome de Pithon, cuja prodigiosa grandeza, e deploraveis estragos referem os Poetas antigos, decantando o triunfo de Apollo, e a origem dos jogos Pithios; mas tambem sey, que os Naturalistas, comprovando a sua thesi com a significaçaõ da palavra Pithon, que na lingua Grega significa podridaõ, dizem, que a origem desta fabula foraõ os grossos vapores, e densas exalaçoens, que sahiraõ da terra depois daquele diluvio, e faziaõ morrer infinito numero de Povo; com que ja la vay esta Serpente, e este exemplo.»

[continua]

30.8.08

O monstro . 6 . Autor de tanto estrago

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor)]

Impresso de 1726, achado na Biblioteca Nacional, com a quota
H.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia e pontuação. Em episódios.
---

«Traducção de huma carta escrita da Cidade de Alepo em 10. de janeiro de 1726.

Ha muito tempo, que desejava merecervos o gosto de me dar novas vossas, por meyo da diligencia de volas pedir; mas os embaraços, em que me tem posto os meus negocios, obrigandome a fazer hum giro por varias escalas da Asia, me impossibilitaraõ o procurar satisfaçaõ deste desejo. Naõ duvido, que esta carta depois de hum silencio taõ profundo, em que havemos estado, e de hum intervallo taõ grande, que tem tido a nossa correspondencia, vos parecerá, que vay do outro mundo; principalmente se por essas partes tem soado os estragos, que por estas tem feito taõ repetidas vezes o contagio; levando hum infinito numero de gente; mas para que vejaes, que ainda estou vivo, e que naõ quero estar morto na vossa memoria, me quero aproveitar da via do Capitaõ Justiniano, que aqui chegou de Alexandreta, onde se acha o seu navio de partida para esse porto; e dizervos, que depois de vos haver escrito de Astrakan os prodigiosos progressos de Mohaidin, me foy preciso atravessar a Georgia, ir a Asia Menor, e passar à Syria, e ao Egypto, donde voltey de Alexandria a esta Cidade, que he a mais populosa, e mais mercantil de toda a Syria; onde me parece, que farey huma residencia dilatada, por haver feito sociedade com huns negociantes Armenios, de cabedaes grossissimos, e vastissimas correspondencias; e assim espero nella largas noticias vossas, e de todos os amigos.

Naõ faltaõ desta banda algumas, que poderaõ ser do vosso agrado; mas darvos-hey huma ao meu parecer muy rara; que he o haverse visto nesta Provincia hum animal monstruoso, que dos montes da Cilicia passou aos deste Paiz, e assim nas estradas, como nas Povoaçoens devorava todo o animal vivente, que encontrava, enchendo de consternaçaõ a todos estes moradores. O que se referia da ferocidade deste Bicho, a quantidade de gado, que despedaçava, o numero de pessoas, a que tirava a vida; ao mesmo tempo, que influia espanto, e causava terror, punha em mais alto grao a curiosidade de reconhecer o author de tanto estrago.»

[continua]

28.8.08

[Piotr Sokolov - Tchítchikov e Koróbotchka]

«- A sério, paizinho, nunca na vida me calhou ainda vender mortos. Vivos, isso sim, já tenho cedido alguns; ainda há dois anos vendi ao arcipreste duas raparigas, por cem rublos cada uma, e ele agradeceu-me muito, são boas trabalhadeiras, tecem-lhe as toalhas.
- Olhe, não se trata de vivos, os vivos que vivam com Deus. Estou a pedir-lhe mortos.
- A sério, como é a primeira vez, tenho medo de ser prejudicada. Tu, paizinho, às tantas estás a enganar-me, e o preço deles... de qualquer maneira... é superior.
- Oiça, mãezinha... irra, como a senhora é! O que podem eles valer? São simplesmente pó. Pegue numa coisa qualquer, um simples farrapo, e o farrapo tem o seu preço: ainda pode ao menos ser comprado por uma fábrica de papel, mas aquilo é perfeitamente inútil. Diga-me lá a senhora, que utilidade pode ter aquilo?
- É verdade, é mesmo isso. Não têm utilidade nenhuma, a minha dúvida, precisamente, é estarem mortos.»
Nikolai Gógol, Almas Mortas
Trad. Nina Guerra e Filipe Guerra
Assírio e Alvim, 2002

27.8.08

Kill the pain . XXX . Sombra

[W. Blake - A descida da cruz]

Depois houve aquela vez. Aquelas vezes. Aquelas noites na avenida dos. E a cama era tão grande e fazia uma cova no meio onde nos entornávamos em poças de suor e saliva fermentada. Em silêncio xiu que se ela nos ouve. Ela era a velhota. A velhota que lhe alugava o quarto. Nunca a vi. Eu não via nada. Entrava de coração esmagado e lábios latejantes. Sentava-me na beira da cama e bebia-lhe o perfil. Sombra raiada pintada da luz que empurrava a persiana para dentro do quarto da cama. E ali eu já não sabia se eras homem se mulher. Os cabelos crescidos dançando danças de ventre de pêlos nas tuas costas pequeninas. Todo tu pequenino. Depois rastejavas para dentro dos lençóis. Arfando a cerveja azeda da noite. Não. Espere. Eu sei. Já contei. Repetir. A minha vida. A minha vida é um repetir de coisinhas pequeninas. Mas espere.

12.8.08

Kill the pain . XXIX . Mão

[Barent Fabritius - Circuncisão]

I remember you well in the Chelsea Hotel,
you were talking so brave and so sweet,
giving me head on the unmade bed,
while the limousines wait in the street.
(Leonard Cohen)
Moía-me uma dor pequenina e eu cruzava as pernas sem conforto. Mas com força. Para a esganar. Assim. Como se faz aos tordos. Depois mordia. Mordia-me. Primeiro devagarinho. Como quando as bolhas no fundo da cafeteira. Crescendo. E já não era aquele desconforto. Era assim como disse. Dentadinhas. De periquito. Assustam mais do que doem. E às vezes já não mordia. E eu descruzava as pernas e depois zás. Trinca. Afinal. Com mais força. Como. Ah. Lembras-te. Fugiam e depois eram horas. Aprenderam a abrir a porta da gaiola. Com os focinhos. Força força força já está. A mãe não gostava e dizia malditos ratos. Não eram ratos. Sem cauda. Lembras-te. Não eram ratos. Duas faquinhas com bigodes por cima. E doía. Sabe. Um dia sangrou. E nunca mais lhes peguei. E agora era assim. Só que não sangrava. Ainda. Apertar as pernas com força. O sangue zum zum nos ouvidos. Quando a noite me esmaga de silêncio. Só que agora. Autocarro. Não é noite. E há esta gente que me cospe os olhos no colo aflito. Sabem não sabem. Não podem saber. Impossível. Não se vê. Debaixo da roupa. Não se vê. A minha vida tem sido feita disto. De pequenas coisas pequeninas. E o calor senhor. O calor na cara e na testa. E esta dentada que já não é dentada. Porque agora era uma garra que me agarrasse e arrancasse a pele. Sem parar. Sem relaxar. Sempre a crescer. Torcendo-me no banco. A senhora do lado roncando suspiros obesos. Tocar. Ferrão. Verificar. Ajuda. Por favor. Pôr lá a mão. Sempre a mão. Morta. Maldita. Maldita mão.

20.7.08

Kill the pain . XXVIII . Cal

[Rembrandt - Circuncisão]
O que aqui pondera e sente muito a piedade dos santos, principalmente S. Bernardo, é que, nascido de oito dias, sujeitasse o Senhor aquele corpozinho tenro ao duro golpe da circuncisão. Tão depressa? Aos oito dias já derramando sangue? Desta pressa se espantam os Doutores; mas eu não me espanto senão deste vagar. Que venha Cristo a remir – e que espere dias? E que espere horas? E que espere instantes? Quem cuida que é pouco tempo oito dias, mal sabe o que é esperar pela Redenção.
Padre António Vieira, Sermão dos Bons Anos

Depois abriu a porta e eu saí e estrangulava a receita na mão humilhada. Esta pomada. De manhã e ao. Deitou-me os olhos caiados de. Não. Caiados não. Caiados seriam brancos. E estes eram roxos. Pintados de roxo. Senhor. Passou já passou. Isto dizia-me eu. Enquanto saía. E abria passagem por entre corpos naufragados em cadeiras agoirentas. E ela descolou as pálpebras das minhas e rosnou o nome a idade ao senhor de bengala e cheiro a cão. A cão. Ou talvez fosse a gato. Não sei. De animal. Ou talvez fosse ele. Dele. Há pessoas que cheiram a bicho. A cão ou a gato. Eu tinha cobras. Já lhe contei. Sim sim. Eu lembro-me. De água. Inofensivas. Deitam um cheiro. Nem queira saber. Quando se assustam. E não sai. Um dia saí com uma no bolso da camisa. Para meter medo às pessoas sabe. As coisas que eu fazia. Quinze anos. Mas quem teve medo foi ela. E a camisa nunca mais a pude vestir. Não saía. O cheiro. A farmácia. Não sei. Não cheira. Ou cheira. Cheia de gente abatida. Velhos de morte nos olhos e crianças caladas ao colo de mães de olhares vazios. Bocas afundadas num medo de morte. E no ar o cheiro a remédio. Xarope شراب xarâb. Bebida. Fermentada não bebem. Mas chá. Um dia vou ao deserto. E café. De camelo e turbante. E talvez um dia. Talvez. Já fui cristão. Mas sabe o que me assusta. Cortar o prepúcio. Boa noite é esta receita. Boa noite.

18.7.08

O monstro . 5 . Ânsias da morte

[Bosch - O Dia do Juízo (pormenor)]

Impresso de 1726, achado na Biblioteca Nacional, com a quota H.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia e pontuação. Em episódios.
---

«Os que se tinhaõ retirado no principio da batalha para o bosque, tornáraõ a entrar em novo perigo, porque o Monstro, accrescentando à sua braveza natural, o furor, que lhe causou o medo, a tudo quanto encontrava, fazia em pedaços. Entre estes refugiados havia hum soldado, que vendo encaminharse o Monstro contra o seu cavallo, se lançou delle em terra; e vendose em termos de perder a vida, tirando dos desalentos forças, empunhou huma lança, com que se achava, e com taõ opportuno sucesso lha empregou na garganta, que logo subitamente desanimado o Monstro cahio por terra. À vista de taõ feliz accidente, começaraõ a animarse os que já se tinhaõ por mortos, e concorreraõ todo a empregar as suas armas na moribunda Fera; porém nem todos a feriraõ a seu salvo, porque com o mesmo movimento a que as ancias da morte a obrigavaõ, prostrou a alguns por terra, e naõ só com as unhas, mas com a cauda ferio, e matou outros, porque parecia hum tiro de bésta cada movimento da cauda.

Inexplicavel foy a alegria, que receberaõ todos os Povos circunvisinhos, com a noticia da morte de animal taõ cruel. O damno, que fez naquelles contornos he muito mayor, que o que se refere; porque só dentro de hum mez, naõ fallando em gados, faltaraõ de pessoas conhecidas quarenta e nove. Concorreraõ todos à montanha para o verem morto; e como em triunfo dos aventureiros, o trouxeraõ sobre hum carro a Jerusalem, onde se tiraraõ varios retratos, que se mandaraõ a differentes partes do mundo. Naõ falta quem ainda tenha o receyo, de que haja macho da mesma especie, e que tenha filhos, de que se possaõ receber semelhantes insultos.»

[continua]

16.7.08

O monstro . 4 . Porco Espin

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor)]

Impresso de 1726, achado na Biblioteca Nacional, com a quota H.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia e pontuação. Em episódios.
---

«Se a vista de hum monstro semelhante intimidou os animos dos aventureiros, a sua primeira acçaõ os desanimou de todo; porque lançandose sobre a gente com tanta velocidade, como hum Falcaõ sobre qualquer ave, do primeiro assalto deixou dezassete homens mortos; porque só com huma unhada, que dava em algum, o despedaçava logo. As balas naõ tiveraõ effeito, porque tocandolhe nas conchas, deixando só o sinal do toque em alguma escara, salatavaõ fóra. Muitos dias se gastáraõ em dar caça a este animal, sem lhe fazer damno. O receyo de perderem os gados, e talvez as vidas, os fazia naõ largar a empreza; o temor de serem victimas da ferocidade do Monstro, os fazia entrar nesta diligencia com mais desordem, que acordo. Deuse parte de todo o succedido ao Baxá, o qual mandou a esta expediçaõ dous Regimentos, hum de Infanteria, outro de Cavallaria. Estes se formaraõ no sitio, onde se tinha visto apparecer mais vezes o Monstro; e huma tarde do dia 15. de Novembro do anno passado de 1725. pelas tres horas, sahio do bosque em que habitava, e vendo os cavallos, se lançou furiosamente sobre elles. Estes animaes intimidados de vista taõ horrivel, se espantáraõ de maneira, que sem obedecer ao freyo, nem temer a espora, lançaraõ por terra a mayor parte dos soldados, que os montavaõ. Destes acabaraõ muitos nas garras do Monstro, outros com mais fortuna poderaõ escapar nos bosques, onde mais mortos de temor, que vivos, eraõ testemunha do estrago, que padeciaõ os companheiros. A Infanteria formada em huma figura, que os Militares chamaõ Porco Espin, procurou a pé quedo salvar as vidas, naõ só oppondese ao impeto do Bicho, mas marchando muy unida, e cerrada contra elle. Este movimento, que lhe pareceo estranho, o fez tambem entrar em temor, e pouco a pouco começou a retirarse, fugindo para os bosques. Com o seu retiro tornaraõ a reanimarse os soldados; e começando a seguillo, o fizeraõ pôr em huma fugida taõ precipitada, que procurando intrincarse no intimo da floresta, rompia tudo o que encontrava, quebrando ramos de arvores taõ grossas como braços, e lançando urros taõ horriveis, que podiaõ causar temor aos coraçoens mais animosos.»

[continua]

O monstro . 3 . Grifo

[Bernardino Parenzano - As tentações de Santo Antão]

Impresso de 1726, achado na Biblioteca Nacional, com a quota H.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia e pontuação. Em episódios.

---

«Convindo todos na proposta, se ajuntou hum grande numero de gente, provida de toda a sorte de armas, levando por guia o passageiro, de quem haviaõ recebido esta noticia; chegaraõ até ao sitio, onde elle vio despedaçar o caminhante, de cujo truncado cadaver acharaõ ainda os vestigios; e occupando algũs postos na circunferencia da montanha, dentro de poucas horas viraõ apparecer o horrendo Bicho, que buscavaõ.

Era este monstruoso animal, na grandeza como hum Cavallo, mas com a cabeça de Leaõ, e nella duas pontas de hum palmo de comprimento como de Boy; na extremidade do nariz lhe sahia hum bico como de Aguia; os dentes eraõ de Leaõ, mas as prezas como de Javali, com meyo palmo de comprido; as orelhas cahidas como de Elefante, e de dous palmos cada huma; quatro tetas como de Vaca de hum palmo de comprimento; o peito povoado de pello muy denso, e forte como de Leaõ, mas muito mais comprido, os pés com garras muy longas, e fortes como Grifo; a cauda como Basalisco, do tamanho de seis pamos, repartida em nós, e farpada na ponta; do espinhaço lhe saiaõ seis esporoens como de Gallo, porém mayores, os quaes continuavaõ por toda a anca até aos pés; duas azas nervosas, como de Serpente; e todo o corpo cuberto de conchas do mesmo feitio, que as que chamamos commummente de madre perola; mas taõ juntas, e dobradas humas sobre as outras, que se fazia impenetravel aos tiros.»

[continua]

15.7.08

Kill the pain . XXVII . Erde from erde

[Francisco de Zurbarán - Virgem com o Menino e João Baptista]
Quero acabar com minha vida porque tenho a ideia, porque não quero ter medo da morte, porque... porque neste assunto o senhor não tem nada que saber... O quê? Quer chá? Está frio. Trago outro copo.
Dostoiévski, Demónios
trad. Nina Guerra e Filipe Guerra


Abrir a porta e afogar-me até ao fundo do corredor. Depois há uma porta. Outra. Que vomita línguas de luz. Pente. Pelas frinchas pegajosas. É o medo sabe. Nas costas. É como se lá estivesse outra vez. É o medo sim. E o embaraço. É. É sobretudo o embaraço. A minha vida amigo. Senhor. Meu senhor. Perdão. É feita de coisinhas pequeninas e sem importância. E eu de olhos enrolados nas mãos escondidas. Bêbedo da luz crepuscular. Morna. Que lambe o consultório. E o embaraço escorria-me pelas bochechas escaldadas. Mal lhe via a careca inquisitiva. Como foi. Estava sozinho ou acompanhado. Sozinho. A caneta escarrando desprezo na folha na ficha de doente. Goza. Dói-lhe. Não. Mas doía. Cá dentro. E essa dor não ma pode ver. Lembras-te. Bairro Alto. Entre cervejas maçadas. Os olhos pretos de dor. Que tens tu. Sempre tão triste. Nada. Não te preocupes. Depois abria muito os olhos e dizia que só a morte o. Houve aquela madrugada gelada. Na Estrela. Lembras-te. Estás aí. Diz qualquer coisa. Sentados no chão. E os teus braços mornos e o teu hálito. E dizias tu não és como os outros. Não sou. Por isso estou aqui. À espera da. E tu já estarás livre. Eu em breve.
إن شاء الله

O monstro . 2 . Fera

[Pieter Bruegel o Velho - A queda dos anjos rebeldes (pormenor)]

Impresso de 1726, achado na Biblioteca Nacional, com a quotaH.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia e pontuação. Em episódios.

---

«No territorio de Jerusalem, quatorze milhas desta antiquissima, e famosa Cidade, para a parte do monte Foresta, se havia notado por muitos dias hum notavel estrago de homens despedaçados, boys, gado miudo, cavallos, e outros animaes, dos que pastavaõ naquelles contornos, meyos comidos, sem nunca se poder averiguar, qual fosse a causa de taõ grande damno; porém caminhando hum passageiro por huma estrada, pouco distante da montanha vio, que outro, que hia mais adiante, fora assaltado por hum animal monstruoso, o qual com as suas garras o dividira em dous; e cheyo de hum temor igual a perigo tamanho, retrocedeo o caminho, fugindo para uma Povoaçaõ visinha, onde contado o successo, encheo de medo a todos os ouvintes, que reconheceraõ o ignorado motivo de tantos estragos; e considerando o modo, com que podiaõ livrarse dos insultos desta Fera, deraõ parte aos Povos circunvisinhos, pedindolhes que, como interessados no beneficio de extinguir hum inimigo taõ formidavel, e commum, quizessem concorrer com elles a fazer huma grande montaria, com que podessem, cercando a montanha, e batendo os matos, darlhe caça, e tirarlhe a vida.»

[continua]

O monstro . 1 . Bicho

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor)]

Impresso achado na Biblioteca Nacional, com a quota
H.G. 23767//7 P, encadernado entre outras coisas bem menos interessantes, posto que mais importantes. Transcreve-se respeitando ortografia, pontuação e disposição gráfica. Em episódios.

---

RELAÇAM

DE HUM FORMIDAVEL,
e horrendo

MONSTRO SILVESTRE,

QUE FOY VISTO, E MORTO
nas vizinhanças de Jerusalem,

TRADUZIDO FIELMENTE DE HUMA, QUE
se imprimiu em Palermo no Reyno de Sicilia, e se reim-
primio em Genova, e em Turim; a que se accrescen-
ta huma carta, escrita de Alepo sobre esta
mesma materia.

Com o retrato verdadeiro do dito Bicho.

LISBOA OCCIDENTAL
Na Officina de JOSEPH ANTONIO DA SYLVA

M. DCC. XXVI

Com todas as licenças necessarias, e Privilegio Real.

12.7.08

Kill the pain . XXVI . Isges to isges

[Andrea del Sarto - Madona com o menino e João Baptista]
Countlessness of livestories have netherfallen by this plage, flick as flowflakes, litters from aloft, like a waast wizzard all of whirlworlds. Now are all tombed to the mound, isges to isges, erde from erde
James Joyce, Finnegans Wake


Esperar olhar deixar as mãos pousar respirar devagar. Há quanto tempo. Que importa. Que será. O sangue. Ela sabe. Sorri escarninha e rosna a ficha de outra pessoa. Nome idade. A doença não pede. Mal seria. Em voz alta. Doente. Que lhe dói. Dormente. Se ele se rir. Ao ver. Sabe. A minha vida feita de coisinhas pequeninas. Por isso estou aqui. À espera. De si. Dos seus tijolos. Trinta e cinco. Não se ria. Mas então dizia eu. Revista na mão puxando páginas lambidas. Passar o tempo. Os olhos nas letras e o estômago a crepitar. Sabe. Quando se lê e não se entende. E se volta atrás. Uma duas três vezes quatro ou mais. Ler reler a mesma frase e perder-se a meio e sentir-se que se está a perder e não conseguir parar voltar à superfície. Quia animus alias res agit. Sabe latim. Sim. Já mo disse. Desculpe. E depois desistir. Viras as páginas em ritmo constante. Sem ler sem ver. Passar o tempo. Depois ouvir o meu nome escandido ao longe e uma mão que me arranca as tripas. Já está. Agora eu. Apanhar os olhos de dentro da revista.

Kill the pain . XXV . My killer

[El Greco - A virgem e o menino com as santas Martina e Inês]

and what can I tell you my brother, my killer
what can I possibly say?

(Leonard Cohen)

Da tosse e dos pulmões e de todas as maleitas que me esmagavam as manhãs. E olhe. Que lhe interessa. Que me interessa isto. Coisinhas pequeninas. Que importância. Uns pulmões e uma tosse. Se calhar esperava. O senhor. Não eu. Que eu viesse para aqui falar de coisas elevadas. Sobre a morte e a vida. Afinal se quero morrer às suas mãos. Repare que pouco falei ainda da morte. E o senhor se calhar gostava que lhe citasse Joyce e Borges. Uns romanos ou uns gregos. Um Séneca. Em vez disso uns pulmões e uma tosse. Porque é isto que me consome. Estas coisinhas. Ridículas. Tenho vergonha. Se o senhor soubesse. Às vezes as manhãs são terra que me entra pelo nariz pela boca pela pele. Como se o caixão tivesse cedido. E depois abro os olhos e penso o que é isto. E não é nada. Uns pulmões e uma tosse. E um dia por encher. Com coisinhas pequeninas. Muitas. E depois amanhã. E às vezes não tenho vontade. Não. Às vezes não. Isso era dantes. Agora não. Porque a tosse já se foi e os pulmões estão como novos. Sabe que me sinto tão forte. E por isso agora não tenho vontade nunca. Porque dantes havia a tosse e os pulmões rasgados. Agora nem isso. Um dia tossi e saiu sangue. Sabe. Não sei de onde. Se da garganta se dos pulmões. Talvez tivesse ferido uma gengiva. E ficou ali o sangue a escorrer na banheira. Umas gotinhas. Pequeninas. Se calhar a garganta. De tanto tossir. Tinha a tosse e tinha os pulmões rasgados. Agora não tenho nada. Só coisinhas. Desembrulhar o dia e não ter nada para pôr lá dentro. Por isso chega. Nem fui ao médico. Dessa vez. Nem pensei mais nisso. Descia-se uma escada interior e havia uma secretária com uma senhora velhota que rosnava e preenchia a ficha de doente. Depois esperar. Chegar depressa a minha vez e acabar-me o pesadelo. Sabe. Não. Não sabe. Se soubesse não estava aqui. A olhar para mim como se eu já estivesse morto. Não não se zangue.

To do all the diddies in one dedal

[Leonardo da Vinci - Dama com arminho]

«The answer, to do all the diddies in one dedal, would sound: from pulling himself on his most flavoured canal the huge chesthouse of his elders (the Popapreta, and some navico, navvies!) he had flickered up and flinnered down into a drug and drunkery addict, growing megalomane of a loose past. This explains the litany of septuncial lettertrumpets honorific, highpitched, erudite, neoclassical, which he so loved as patricianly to manuscribe after his name. It would have diverted, if ever seen, the shuddersome spectacle of this semidemented zany amid the inspissated grime of his glaucous den making believe to read his usylessly unreadable Blue Book of Eccles, édition de ténèbres, (even yet sighs the Most Different, Dr. Poindejenk, authorised bowdler and censor, it can't be repeated!) turning over three sheets at a wind, telling himself delightedly, no espellor mor so, that every splurge on the vellum he blundered over was an aisling vision more gorgeous than the one before t.i.t.s., a roseschelle cottage by the sea for nothing for ever, a ladies tryon hosiery raffle at liberty, a sewerful of guineagold wine with brancomongepadenopie and sickcylinder oysters worth a billion a bite, an entire operahouse.»

James Joyce, Finnegans Wake

4.7.08

And no more turn aside and brood

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor)]
«Touch me. Soft eyes. Soft soft soft hand. I am lonely here. O, touch me soon, now. What is that word known to all men? I am quiet here alone. Sad too. Touch, touch me.

He lay back at full stretch over the sharp rocks, cramming the scribbled note and pencil into a pocket, his hat tilted down on his eyes. That is Kevin Egan's movement I made nodding for his nap, sabbath sleep. Et vidit Deus. Et erant valde bona. Alo! Bonjour, welcome as the flowers in May. Under its leaf he watched through peacocktwittering lashes the southing sun. I am caught in this burning scene. Pan's hour, the faunal noon. Among gumheavy serpentplants, milkoozing fruits, where on the tawny waters leaves lie wide. Pain is far.

And no more turn aside and brood.

His gaze brooded on his broadtoed boots, a buck's castoffs nebeneinander: He counted the creases of rucked leather wherein another's foot had nested warm. The foot that beat the ground in tripudium, foot I dislove. But you were delighted when Esther Osvalt's shoe went on you: girl I knew in Paris. Tiens, quel petit pied! Staunch friend, a brother soul: Wilde's love that dare not speak its name. He now will leave me. And the blame? As I am. As I am. All or not at all.»
James Joyce, Ulysses