28.2.06

A luta

[Johann Tobias Sergel - Cena de desespero]

Cansado de lutar. Lutar contra fantasmas. Lutar contra os monstros da alma. Lutar contra inexistências. Anseio pelo fim deste pesadelo. Sei que só depende de mim. Afinal luto contra inexistências. Mas faltam as forças. Medo. Medo das inexistências. Medo de mim mesmo. Um dia este fantasma vai desaparecer. Dará lugar a outro, que considerarei então mais terrível do que este. E no entanto anseio por que venha esse novo fantasma e me liberte deste. Mesmo sabendo que, então, vou desejar o regresso deste que agora me atormenta. Para me libertar do novo e terrível fantasma por que agora tanto anseio. Estou cansado. Cansado de lutar.

27.2.06

A esplanada (III) - Epílogo

[Agnolo Bronzino - Retrato de jovem]

Das tardes passámos para as noites. Dava as minhas voltas costumeiras, mas terminava sempre a noite na esplanada, à espera de que fechasse, para trocarmos mais algumas palavras e sorrisos. Nunca se passou daí. Quero dizer, nunca saímos juntos, nunca fomos beber uns copos a seguir. Apenas trocas de palavras, banais, ali na esplanada. Mas havia ali, parecia-me, uma enorme empatia. Achei que era um potencial novo amigo. Tinha a certeza de que, tendo oportunidade para isso, seríamos grandes amigos. Porquê? Não sei. O facto de ter tornado interessantes aquelas férias era significativo. Mas parecia haver mais qualquer coisa. Entretanto o Verão acabou, e durante algumas semanas não nos voltámos a ver. Confesso que não senti muito a sua falta. Fora do ambiente estival, a minha mente parecia renovada, mais sensível a todos os estímulos. Já me preparava para o retomar das aulas, a minha altura do ano preferida. Até que nos encontrámos, por acaso, num café. Era a oportunidade ideal. Sorrisos, cumprimentos. Sentámo-nos na mesma mesa, um pouco embaraçados por este primeiro encontro fora da esplanada. Conversámos um pouco. Aquela conversa parva de quem não se conhece e não tem assunto. Lentamente a decepção foi-se apoderando de mim. Afinal era uma pessoa banal, desinteressante. Onde estava a empatia que sentira no Verão? Teria mesmo havido alguma empatia mútua? Séria? Afinal ter-me-ia a modorra estival pregado uma valente partida? Quem era este rapaz tão desinteressante que agora falava sem parar à minha frente? Aproveitei a primeira oportunidade para me ir embora. No Verão seguinte voltei à esplanada, como todos os anos, mas os empregados eram já outros.Não nos voltámos a encontrar.

26.2.06

A esplanada (II) - Rapaz sentado

[Georg Pencz - Rapaz sentado]

Sentava-me entediado, na esplanada de sempre. Preparava-me para mais uma indolente sucessão de tardes de Verão, folheando livros, beberricando cafés, fumando cigarros, olhando para nada tentando pensar em nada. Detestava a praia, a areia, o mar. A custo suportava aquele mês de férias, sempre ansioso pelo regresso rápido a casa. Sentado, conformadamente sentado, preparava-me para passar mais um insuportável Verão. Mas havia naquele primeiro dia de férias algo diferente. Alguém diferente. Não estou a falar de atracções eróticas, estava até numa das minhas frequentes fases de celibato militante. Estou a falar de alguém que realmente me pareceu diferente. Um empregado de mesa que, ao fim de uns poucos dias, passou a atender-me com um sorriso diferente. Não era aquele sorriso educado, profissional, de alguém que atende um cliente. Era um sorriso de interesse, um sorriso empático. Talvez achasse graça a este rapaz sentado, com ar de profundo tédio, rodeado de livros, mas que não correspondia à imagem tradicional do jovem aspirante a intelectual. Aos poucos fui abandonando a minha habitual reserva, e comecei a corresponder aos sorrisos. Em pouco tempo já nos cumprimentávamos. Trocávamos até palavras de circunstância. Um "está calor, hoje", banal, mas tão cheio de significado, neste contexto. Assim se tornaram menos aborrecidas aquelas tardes na esplanada. Parece pouco. Mas é difícil de descrever o quanto me eram penosas aquelas tardes de Verão. Qualquer coisa, pequena que fosse, servia para me animar.

A esplanada (I) - O tédio

[Klee - Peixe dourado]

O ar salgado. O céu azul forte. O Sol quente. A praia. Tudo isto me era odioso. Era um pesadelo, o aproximar do Verão, com a inevitável ida para o nosso pouso de férias. Longe das livrarias. Sem a necessária privacidade. E no entanto acabava por entrar naquele ritmo a um tempo indolente e boémio, conforme se tratasse do dia ou da noite. À tarde ia para a minha esplanada de eleição. Levava livros que ia lendo preguiçosamente. Romances, mas sobretudo ensaios e Histórias. Por isso podia levar mais do que um, debaixo do braço, e espalhá-los pela mesa. Lia um parágrafo de um, passava os olhos pelo capítulo de outro. Frequentemente parava alguns minutos, tentando pensar em nada, olhando para um qualquer ponto escolhido ao acaso. Assim se passavam aquelas tardes indolentes. Lendo, pensando, esperando pacientemente que o Verão acabasse. Sem grandes excitações, sem grandes aborrecimentos.

22.2.06

O segredo

[Agnolo Bronzino - Ugolino Martelli]

a P.

Não queria acreditar no que via, quando naquela noite abri a porta e me apareceste tu, enorme, com um sorriso largo e os braços abertos, pronto para te lançares sobre mim, para me envolveres num longo e emocionado abraço. Como de costume não consegui exprimir as emoções que me iam no coração. Era como um sonho. Eras uma pessoa muito especial para mim, e a distância não o tinha alterado, longe disso. Consegui abraçar-te, contrariando o meu carácter reservado. Eram muitas as saudades, de parte a parte. Tirando o extraordinário desenvolvimento físico, estavas na mesma. Expansivo, incapaz de te manteres calado por mais do que uns segundos. Continuavas a chamar a atenção pelo teu físico nórdico, pelo indisfarçável sotaque holandês, pela exuberância. Eu continuava na mesma, também. Não mudara muito. Apesar dos meus 24 anos mantinha a aparência de um adolescente. E continuava contido, silencioso, reservado. Em casa não se podiam matar saudades como deve ser. Fomos para um café calmo, para podermos conversar à vontade. Não nos víamos há anos. Desde aquela tua partida imprevista. Lembras-te? Tínhamos combinado que quando eu chegasse da faculdade ia ter a tua casa. Mas quando cheguei tinha um recado inesperado: tinhas sido forçado a regressar à Holanda. Num tempo sem telemóveis nem e-mails perdemos completamente o contacto. Partiras no início da adolescência. Voltavas agora um homem. Tinhas apenas 2 ou 3 anos a menos do que eu, e isso fazia toda a diferença, quando nos separámos. Agora não. Agora éramos da mesma idade. Falaste horas seguidas. Eu olhava-te, e sorria, feliz por reencontrar o amigo, ainda por cima em circunstâncias tão inesperadas. Depois a conversa foi esmorecendo. Percebia-se que querias dizer-me algo, mas não sabias como. Fazias cada vez mais pausas, e sorrias embaraçado. Os teus olhos verdes de que me lembrava sempre flamejantes agora pareciam mortiços. Naqueles momentos não te reconheci. De repente disseste-mo, em tom levemente desafiador, na defensiva. Receavas que eu reagisse mal, era evidente. Eu fiz uma pausa propositadamente dramática. E declarei solenemente "eu também". Depois lancei uma gargalhada. Tu hesitaste uns segundos e desataste a rir, aquele riso de tinha já tantas saudades. Era tarde, abandonámos e café. Decidi acompanhar-te a casa, para matar mais um pouco as saudades. Batias-me nas costas, dizendo, entre risos, "e eu com medo de te dizer... e afinal tu também!". Ríamos muito. Parecíamos os adolescentes de havia poucos anos atrás. Depois a conversa esmoreceu de novo. Fomos em silêncio mais alguns minutos. Tinhas mais alguma coisa para me dizer. E desta vez não houve risos.

21.2.06

Domingo à tarde

[Mondrian - Tableau nº 2 / Composition nº V]

Almoçava a correr. Enrolava ao pescoço um cachecol vermelho e azul de lã, feito pela minha mãe. Dirigia-me ao campo de futebol (chamar-lhe estádio seria um abuso, apesar das bancadas, uma delas coberta), comprava o bilhete e escolhia um bom sítio, no topo para onde atacava o Torreense. Na segunda parte normalmente trocava. Era o futebol de Domingo à tarde. Passava 15 dias inteiros a sonhar com aquelas 2 horas. Fizesse chuva ou Sol. Equipas com nomes desconhecidos e improváveis, outras nem tanto. Importava pouco o resultado. O que eu queria era passar aquelas 2 fantásticas horas, a ver futebol de má qualidade, por entre gritos e insultos. Depois veio a faculdade, Lisboa, e um crescente desinteresse pelos Domingos de futebol, culminando, paradoxalmente, com a subida do Torreense à então Primeira Divisão. Hoje tenho saudades do futebol das tardes de Domingo. Agora só tenho futebol de primeira, no Estádio de Alvalade. À noite, ao Sábado, à Sexta, mais raramente ao Domingo. Tardes a sério, tardes das antigas, essas acabaram há muito. E não me atrevo a regressar aos Domingos à tarde no campo do Torreense. Perderia todas estas recordações, no momento em que lá entrasse.

20.2.06

Salvação

[Rafael - Retrato de jovem]


à memória do Rui

Vivia uma das piores fases da minha vida. Depois apareceste, e curaste-me, com a tua amizade sem limites nem contrapartidas. Não sei se consegui alguma vez retribuir-te.

Os limites

[Rembrandt - Homem nu sentado no chão com perna estendida]


Afastámo-nos. Culpa minha, em grande parte. Achei que estávamos demasiado apegados um ao outro. Achei que era excessivo. Achei que nos estávamos a prejudicar um ao outro. Não tive a clarividência de perceber o óbvio. Tu não sei se o percebeste. Acho que sim. Compreendeste, pelo menos, que, naquela altura, o nosso afastamento era inevitável e imprescindível. Sem dramas, sem zangas, acabámos por nos ir apartando. O que vivíamos não era já saudável. Era excessivo. Era como um namoro não assumido. Um namoro sem consumação física. Mas não um namoro qualquer. Era quase uma obsessão. Vivíamos um para o outro. Havia até cenas de ciúmes, disfarçadas de brincadeira. E eu não tinha a clarividência de perceber o óbvio. Tu deves tê-lo percebido. Entre nós havia aquela amizade louca, excessiva, quase passional. Mas isso não te incomodava. As coisas tornaram-se claras para ti, muito mais cedo do que para mim. Sabias onde ficavam os teus limites, e sobretudo sabias onde ficavam os meus. Sabias que eu não os ultrapassaria nunca, pela amizade louca que te tinha. Portanto isto não te incomodava. Não te incomodava ir comigo a determinados sítios. Não te incomodava que passássemos por namorados, não o sendo. Não te incomodava simulares cenas de ciúmes diante de quem pensava que éramos namorados. Porque sabias que eu nunca passaria os limites que me tinha imposto a mim mesmo. Porque te respeitava, porque te tinha uma amizade desmesurada. Além de tudo o resto. E foi porque o percebeste, e foi porque a adoração que te tinha era de facto desmesurada, que conseguimos reatar a nossa amizade de modo tão natural, como se nada tivesse acontecido. Como se ainda na noite anterior tivéssemos feito mais uma das nossas loucas saídas. Hoje percebo-o, finalmente.

19.2.06

Histórias

[Lépicier - Jovem desenhador]

Conta-me uma história. Eu aconchegava-lhe os cobertores, e começava a contar a primeira coisa que me viesse à cabeça. Normalmente eram histórias de animais. Eram sempre imprevistas. Improvisava durante alguns minutos, deixava-me levar pela própria narrativa até chegar ao fim que ela me impunha. Ele ouvia atento, os olhos bem abertos. Depois sorria, fazia um ou outro comentário, e adormecia. Na noite seguinte, murmuraria de novo "conta-me uma história", e eu contaria uma nova. Não sei onde estão hoje todas essas histórias que inventava para o meu irmão. Não sei de onde as tirei. Gostava de ser de novo capaz de inventar uma história por noite.

Transgressão

[Winslow Homer - Sailing the catboat]

Faltávamos às aulas, corríamos para o lago do Campo Grande e íamos andar de barco. Não era aquilo a que hoje chamaria um programa interessante - ainda que adore remar. Hoje talvez preferisse sentar-me indolente num dos bares da faculdade, a beber chá e a discutir a última jornada da Liga de futebol em boa companhia. Mas naqueles tempos era uma transgressão. E eu não resistia a transgressões. Olhávamo-nos com ar desafiador mas receoso. Ponderávamos longamente, até tomarmos a decisão, que era sempre a mesma. Olhávamos para os colegas, ainda com alguns sentimentos de culpa, e íamos embora, rapidamente, não fosse a professora aparecer-nos ao caminho.

18.2.06

Partida

[Emil Nolde - Autumn sea VII]

a P.

Um dia cheguei a casa, da faculdade, e preparava-me para ir ter contigo. Mas tinha um recado teu. Tinham-te forçado a partir, de repente, sem pré-aviso. Não nos pudemos despedir, sequer. Não fiquei com qualquer contacto teu. E senti uma enorme angústia. Um imenso vazio. Durante anos não nos voltámos a ver.

A brincadeira

[Mengs - Auto-retrato]

a P.

Vamos fingir que damos um beijo. Tiravas o celofane que envolvia o maço de tabaco, colava-lo aos lábios e olhavas-me, expectante. Eu hesitava. Nunca te tinha visto como objecto de desejo, acho. Tinhas aquilo a que se convencionou chamar "cara de capa de revista". Uma beleza espantosa, pouco comum. Mas mesmo agora, quando te olhava, com os lábios forrados de celofame, os olhos verdes faiscantes, mesmo agora não te conseguia conceber como objecto de desejo, acho. Ou conseguia. Sim, conseguia. Claro que conseguia. Algo me bloqueava, porém. Mas afinal era só uma brincadeira, era só um fingimento. Havia a barreira de celofane. Aproximei os meus lábios desprotegidos dos teus, preparado para entrar no jogo. Mas vi a tempo que, num gesto rápido, tinhas tirado o celofane. Parei a meio caminho. Quase nos beijámos, a sério. Tu rias-te muito. Demasiado. Talvez para disfarçar o embaraço. Quiseste repetir a brincadeira. Mas eu não conseguia. Era beleza a mais, achava eu. Não. Para quê mentir. Eram sobretudo os meus bloqueios mentais. Achava-te extraordinariamente atraente - quem não acharia? Mas não me sentia capaz de dar este passo. Tu se calhar também não. Estava bloqueado. Que idade teríamos? Dezasseis? Dezassete? Éramos miúdos. Pedias-me frequentemente para ficar a dormir no sótão onde vivias, e onde a família não entrava sem autorização. Recusei sempre. Medo? Medo de mim. Sabia que era inevitável a quebra dos meus bloqueios, se aceitasse os teus insistentes convites. E por alguma razão não queria quebrá-los. Apesar de o desejar. E lá estavas tu de novo com o celofane colado aos lábios. Anda, vamos lá, desta vez eu não tiro. Confia em mim.

Paz

[Dürer - Auto-retrato com ligadura]

a P.

Como suspeitava, a alta médica não me trouxe a paz. Durante semanas, meses, sofri de dores de cabeça constantes e insanáveis, em princípio decorrentes do traumatismo craniano. Não havia medicamento que mas aliviasse. Havia certamente algo de psicossomático nisto. Ficava tomado de horror puro, quando pensava numa eventual recaída que me levasse de novo para o hospital. Passava os dias deitado, sem ordem para ler livros nem ver TV nem ouvir demasiado barulho. Achava que as dores estavam relacionadas com o contacto da minha cabeça com a almofada, tal era a paranóia. Pareciam aumentar, quando a mantinha demasiado tempo imóvel. Eram dias de pesadelo. A proibição de ler era o que mais me atormentava. O miúdo vinha visitar-me regularmente. Eu tinha 16 anos, ele 13 ou 14. Para mim era apenas um miúdo. São aquelas idades em que uma diferença tão pequena se torna tão grande. Tinha-o conhecido dias antes do acidente. Vinha da Holanda, filho de holandesa e de português. Da mãe herdara o físico nórdico, do pai o temperamento meridional. Entrava de rompante, lançava-se para cima da minha cama e falava ininterruptamente durante horas. Às vezes deitava-se ao meu lado, o que me causava bastante desconforto. Apesar de tudo fomos criando laços fortes. Durante algum tempo andou entre a Holanda e Portugal. Depois fixou-se definitivamente na Holanda. Há muito que não o vejo nem tenho notícias. Quanto a mim, aos poucos fui saindo de casa, regressando ao mundo. Mas não recuperei logo a paz. Durante anos baixei-me instintivamente ao passar por portas mais baixas, e empalideci de terror sempre que batia com a cabeça em algum lado, mesmo ao de leve.

Eternidade

[Max Ernst - Virgem sovando o menino Jesus perante três testemunhas: André Breton, Paul Éluard e o pintor]

Afirmam os ateus que o mundo sempre existiu, que o Universo é eterno e infinito, dizia-nos o padre. Obviamente ele tinha faltado a aulas de Física importantes. Mas nós éramos demasiado novos para nos apercebermos da assustadora ignorância científica do padre. A catequista olhava-o embevecida, e ia dizendo que sim com a cabeça. Ora, continuava o padre, como se pode conceber algo que sempre esteve ali, algo eterno e infinito? Não pode. Ora pensem lá. A solução é Deus. Ele sim, é eterno. Disse mais algumas banalidades. No fim, olhou-nos triunfante, apesar de tão pobre retórica. Fiquei profundamente afectado por aquele discurso, que de certa forma, na sua pobreza e incorrecção, mudou a minha vida. É que eu entrei na igreja, naquele dia, um miúdo crente, profundamente cristão. Mas quando saí já era ateu.

17.2.06

Os silêncios

Rui Oliveira (1976.01.11 - 2003.02.08)

À memória do Rui

Fazes-me tanta falta. Não nos víamos tanto como dantes. Na verdade quase deixáramos de nos ver. Não nos tínhamos zangado, longe disso. Mas havia razões para este afastamento que nos eram em parte alheias. Uma tolice, sobretudo da minha parte. Depois adoeceste. Retomámos então a amizade que estupidamente tínhamos deixado enfraquecer. Era diferente agora, como eram diferentes, infelizmente, as circunstâncias. Mas era mais intensa, da minha parte. Talvez não o tenha demonstrado como devia. Mas sabes que sempre fui incapaz de exprimir os meus mais íntimos sentimentos. Sinto remorsos por isso, mesmo sabendo que me conhecias como ninguém, que sabias o quanto te adorava. Se calhar pareci-te frio, em ocasiões em que, antes de adoeceres, me abriste o teu coração. Uma vez, muito antes de adoeceres, disseste-me coisas muito bonitas, num sítio e numa situação completamente inesperados, e eu só te consegui responder com um sorriso de felicidade incontida, e algumas palavras gaguejadas. Depois de adoeceres, veio o nosso reencontro, e o meu natural bloqueio emocional acentuou-se. Olhava-te, e não sabia o que te dizer. Nessa altura, mais do que nunca, vivemos de silêncios. Não de silêncios embaraçados, mas de silêncios cheios, como só contigo conseguia ter. Silêncios de olhares cúmplices e brincadeiras de miúdos. Batia-te ao de leve na cabeça e chamava-te careca. Tu rias-te e chamavas-me gordo. Nessas ocasiões voltava o teu sorriso trocista. Um dia, já perto do fim, ias ver o Sporting com o teu pai, e convidaste-me. Era um Sporting-Moreirense. Estava frio. Era Novembro, creio. Ou mesmo Dezembro. Tivemos de ficar em zonas separadas, pois não arranjámos bilhetes juntos. Enquanto o teu pai procurava lugar para estacionar, nós fomos andando para uma das portas do Estádio. Estavas muito fraco, já, embora mantivesses a esperança na recuperação total. Apoiaste-te em mim, e fomos abraçados até à porta. Brincámos, imaginando o que não estaria aquela gente toda a pensar de nós. Tanto nos fazia. Nunca nos preocupámos com o que os outros pensavam de nós. Ganhámos 3-0 e o Cristiano Ronaldo marcou um golo fabuloso. Pouco tempo depois pioraste de repente, numa altura em que todos os dias me davas conta de novas esperanças. O desenlace tornou-se evidente. Disseram-me que não querias ver ninguém. Quis respeitar esta tua vontade. Mas encontrei a tua mãe, à porta da tua casa, que me disse que não era bem assim, que apenas não conseguias suportar visitas prolongadas. Subi imediatamente para te ver, maldizendo os dias em que tanto te queria ver, mas aguentava em casa, respeitando uma tua vontade que afinal nunca tinha existido. Entrei no teu quarto. Não eras já tu que estavas naquela cama. Era uma sombra. Não é assim que te quero recordar. Depois, um dia tocou o telefone, com a notícia que não queria ouvir. Pensei que com o tempo passasse este sofrimento. Que com o volver dos anos ficasse apenas a doce memória do amigo, uma nostalgia. Mas a cada ano que passa a saudade é maior. Três anos se passaram, já. Fazes-me tanta falta.

O nó

Auto-Retrato
Rui Oliveira (1976.01.11 - 2003.02.08)

À memória do Rui

Apertava-se o nó na garganta. "Ele dizia que não tinha muitos amigos. Queria que se avisasse apenas os mais próximos. Eu sei... Das conversas que tivemos nos últimos tempos, eu sei que ele queria que nós o avisássemos, quando..." Não sei de onde tiraste essa ideia. Havia tanta gente que gostava de ti. Eu gostava de ti. Não. Eu adorava-te. Mas não era o único. Havia tanta gente. E se calhar não fui sempre o melhor dos amigos. Agora não conseguia responder, não conseguia dizer nada. Ouvia a voz do outro lado do telefone. "Acaba de falecer. Agora mesmo". Balbuciei alguma coisa, incompreensível para mim mesmo. Não podia ser verdade. Trocámos algumas palavras desconexas. Desliguei o telefone. Deitei-me de novo, a olhar para o tecto. Era mentira. Aquele telefonema não tinha acontecido. Tu não tinhas acabado de morrer. Não podia ser.

Desistência

[Van Gogh - Noite estrelada]

Às vezes faltam as forças. As físicas, mas sobretudo as mentais. Às vezes falta a coragem para continuar. Não há fim à vista. Às vezes falta um motivo para perseverar. Um motivo, insignificante que fosse. Às vezes faltam as forças para não desistir. Às vezes faltam as forças para lutar contra o desespero.

16.2.06

Gritos

[Bazille - Cena de Verão]

Durante anos fui incapaz de estar na presença dos pais dos meus amigos sem entrar num pânico quase indisfarçável. A sonoridade da voz masculina apunhalava-me a alma. Mesmo em casa daqueles amigos de infância, cujos pais me conheciam desde bebé. Tantas vezes tardes de brincadeira agradáveis em casa dos meus amigos foram interrompidas pela chegada dos seus pais. Ouvia aquelas vozes masculinas e começava a tremer, quase incontrolavelmente. Deixei de ir a casa dos meus amigos quando sabia que havia a possibilidade de os seus pais lá estarem, ou de chegarem entretanto.

Silêncio

[Fuseli - Silêncio]

Fugia para o quintal. Ali me entretinha a brincar, ruidosamente, para abafar os gritos que vinham de casa. De vez em quando o barulho acalmava. Ouvia apenas o choro da minha mãe, ou não ouvia nada. Aliviava-se-me então o aperto no estômago. Mas normalmente era apenas uma pausa, uma trégua breve. Logo recomeçavam os gritos. O estrondo de louça partida. O choro. E recomeçava também eu a brincar ruidosamente, para não ouvir o horror. E pensava. Pensava que tinha à minha frente uma vida de choro, gritos, estrondo de louça partida. Felizmente era apenas a inocência da infância, a incapacidade de ver o futuro a longo prazo. Um dia a minha mãe disse-nos, com ar solene, que o meu pai ia sair de casa, que se iam separar. Recordo esse dia como um dos mais felizes da minha vida. Não mais haveria nem choro, nem gritos, nem estrondo de louça partida.

O cavalinho de madeira

[Drölling - Esmola para os pobres]

Como podia deixá-las partir sem nada? A mãe estendia a mão, balbuciando uma lenga-lenga incompreensível. A filha, da minha idade, deitava-me olhares aflitivos. Havia um cavalinho de madeira com que eu gostava de brincar. Montava-o, e balançava durante horas. Era-me evidente que a menina queria brinquedos. Não me passava pela cabeça que tivesse fome, que passasse necessidades. Isso não passa pela cabeça de um miúdo de 4 ou 5 anos. Era óbvio que ela precisava de brinquedos, que era isso que a sua mãe estava a pedir, por meio daquela lenga-lenga. É nisso que pensa um miúdo de 4 ou 5 anos. Em brinquedos, em brincadeiras. Portanto fui buscar o cavalinho de madeira e dei-lho. Se era o meu brinquedo preferido, então haveria de ser também o brinquedo preferido daquela menina. Não creio que o tenha feito por altruísmo. Não tinha, com aquela idade, a noção de que estava a abdicar definitivamente do meu brinquedo preferido. Terei pensado que o estava a emprestar. Não sei. Mas tenho a certeza de que não entendi completamente o que estava a fazer. Depois chegou a minha mãe, vinda de dentro, querendo saber quem tinha tocado à campainha. Contei-lhe o que tinha acontecido, e ela saiu a correr, escadas abaixo, na esperança de ainda apanhar as pedintes. Recuperou o cavalinho e deu-lhes uma esmola. Eu continuei durante alguns anos mais a brincar com o meu cavalinho de madeira.

15.2.06

Eικών εικοσιτριετούς νέου καμωμένη από φίλον του ομήλικα, ερασιτέχνην

[El Greco - Retrato de dominicano]

Eικών εικοσιτριετούς νέου καμωμένη από φίλον του ομήλικα, ερασιτέχνην

Τελείωσε την εικόνα χθες μεσημέρι. Τώρα
λεπτομερώς την βλέπει. Τον έκαμε με γκρίζο
ρούχο ξεκουμπωμένο, γκρίζο βαθύ· χωρίς
γελέκι και κραβάτα. Μ’ ένα τριανταφυλλί
πουκάμισο· ανοιγμένο, για να φανεί και κάτι
από την εμορφιά του στήθους, του λαιμού.
Το μέτωπο δεξιά ολόκληρο σχεδόν
σκεπάζουν τα μαλλιά του, τα ωραία του μαλλιά
(ως είναι η χτενισιά που προτιμά εφέτος).
Υπάρχει ο τόνος πλήρως ο ηδονιστικός
που θέλησε να βάλει σαν έκανε τα μάτια,
σαν έκανε τα χείλη ... Το στόμα του, τα χείλη
που για εκπληρώσεις είναι ερωτισμού εκλεκτού.

Κωνσταντίνος Π. Καβάφης




Imagem de um jovem de vinte e três anos feita por amigo da mesma idade, amador

Acabou a imagem ontem a meio do dia. Agora
em detalhe a vê. Fê-lo com roupa
cinzenta desabotoada, cinzento escuro; sem
colete nem gravata. Com uma camisa
cor de rosa; aberta, para ver-se também algo
da beleza do peito, do pescoço.
O lado direito da testa quase por inteiro
cobrem-no os seus cabelos, os seus belos cabelos
(segundo o penteado que prefere este ano).
Existe o tom inteiramente hedonista
que ele quis dar quando fazia os olhos,
quando fazia os lábios... A sua boca, os lábios
que são para satisfazer apurado erotismo.

Konstandinos P. Kavafis

Tradução: Joaquim Magalhães e Nikos Pratsinis, in KONSTANDINOS KAVAFIS, 25 Poemas, Cotovia, Lisboa, 1988

Homines dum docent discunt

[Dürer - Auto-retrato com flor de cardo]

Aos 21 anos, quase a fazer 22, dirigi-me à secretaria da faculdade para pedir o certificado de conclusão de licenciatura. Não sentia qualquer emoção especial. Tinha acabado um curso que fizera sem grande empenho - mas com muito gozo. Sem cadernos, com meia dúzia de fotocópias, muitas faltas. Vivera a vida, talvez de forma excessiva. Descurei os estudos, mas aprendi outras coisas, nem todas positivas. Agora, apertando despreocupadamente na mão o recibo que me permitiria dentro de dias vir levantar o bendito certificado, agora, ainda atordoado com os 15 contos deixados na reitoria pelo diploma de requisição obrigatória, agora preparava-me despreocupadamente para mais umas férias de Verão. Acabara o curso na altura em que o devia ter começado. Era um miúdo, fisica e mentalmente. Não era imberbe, mas passava facilmente por menor de 18 anos. E era imaturo, profundamente imaturo. Não sei como consegui fazer o curso sem reprovar a qualquer cadeira. Estava diplomado em Línguas e Literaturas Clássicas, mas sentia-me profundamente ignorante. Haveria de recuperar muito do tempo perdido, nos anos que se seguiram, fruto de uma maior maturidade. Haveria de me sentir ainda mais ignorante, à medida que ia aprendendo mais, à medida que a minha biblioteca crescia além dos limites físicos do meu quarto. Mas não era nisso que pensava, quando saí da faculdade e olhei, entediado, uma vez mais para a alameda deserta.

14.2.06

Alta

[Goya - Prisão interior]

Alta, finalmente. Ainda me dói a cabeça. Doerá durante meses. Não há lesões graves, dizem-me. Tive sorte, um acidente daqueles e apenas um traumatismo craniano. Posso ir para casa. Quero ir para casa. A enfermaria é fria. Cheiro mal. Não tomo banho há 48 horas. Preciso de um duche. Mas já tenho alta, não vale a pena, tomo banho chegando a casa. Nunca mais chegam. Não devia ter deixado que me tivessem levado as roupas. Estou preso na enfermaria. Nu. Tenho alta mas estou preso. Não posso sair. Onde andam? Quero ir-me embora. Não posso sequer sair da cama, se não for enrolado no lençol. Afinal para que me deram alta? Podiam tê-la dado apenas quando chegassem para me vir buscar, com roupas. Assim não estava nesta angústia. Já não devia estar, mas ainda estou. Dói-me terrivelmente a cabeça. Estarei mesmo bem? Quero ir embora. E se chego a casa e pioro? Mas deram-me alta. E não posso sair daqui porque estou nu. Não tenho roupa. Quantas horas já se passaram? O que terá acontecido. Não chegam porquê. Tenho alta, mas estou preso. Não conseguirei aguentar mais. Quero ir para casa. Quero a minha cama. Onde não sei se vou ficar em segurança. Mas neste momento tudo se me afigura melhor do que esta enfermaria fria cheia de desconhecidos que me olham de lado, estranhando o meu penteado e os inúmeros brincos. Aperta-se-me o estômago. Saltam-me lágrimas dos olhos. Quero ir-me embora. Mas estou aqui preso. Interrogo os enfermeiros com o olhar desesperado. Respondem-me com um encolher de ombros. Chega então a minha mãe, ofegante. Traz-me roupas. Visto-me. Alívio. Vamos os dois no comboio. Ela vai feliz, aliviada por tudo ter acabado. Eu olho melancólico pela janela. Sei que não acabou tudo. O meu espírito não mo permitirá. Esperam-me semanas de repouso absoluto e dores de cabeça permanentes. Libertei-me da prisão da enfermaria. Falta-me libertar da prisão do espírito.

11.2.06

El árbol del olvido

[Cézanne - Casas na colina]


(para ser ouvido cantado por Lhasa de Sela, no album "La llorona")


En mi pago hay un árbol,
Que del olvido se llama,
Donde van a consolarse,
Vidalita,
Los moribundos del alma.
Para no pensar en vos,
En el árbol del olvido,
Me acosté una nochecita,
Vidalita,
Y me quedé bien dormida.
Y al despertar de aquel sueño,
Pensaba en vos otra vez,
Pues me olvidé de olvidarte,
Vidalita,
En cuantito me acosté..

De cara a la pared

[Mondrian - Árvore cinzenta]


(para ser ouvido cantado por Lhasa de Sela, no album "La llorona")


Llorando …
De cara a la pared,
Se para la ciudad.
Llorando …
Y no hay más,
Muero quizás.
Ha! Dónde estás ?
Soñando …
De cara a la pared,
Se quema la ciudad.
Soñando …
Sin respirar,
Te quiero amor.
Te quiero amor.
Rezando …
De cara a la pared,
Se hunde la ciudad.
Rezando …
Santa María,
Santa María,
Santa María.
Muriendo.

Memento

[Munch - Noite em St. Cloud]

Há um corredor escuro. Ou enevoado. Uma divisão escura. Ou enevoada. Choro de criança. O meu. É a minha primeira recordação. De ano para ano vai ficando mais esbatida. Registo-a, antes que desapareça.

A goela

[Weyden - Retrato de mulher]

Uma boca enorme aos gritos. Que eu era feio. Que nem que fosse o último homem à face da terra. Eu devia estar humilhado, mesmo ofendido. Não conseguia no entanto deixar de me sentir engolido por aquela goela hiante. Alguém lhe dissera que eu estava apaixonado por ela. Se calhar estava. Não me lembro. Os colegas riam. Eu devia estar humilhado, mesmo ofendido. Mas continuava fascinado pela goela agressiva. Que era gordo. Que as minhas borbulhas eram repugnantes. Eu devia estar humilhado, mesmo ofendido. Mas estava profundamente divertido. Era a primeira vez que via uma goela com braços e pernas. Não me lembro se alguma vez estivera realmente apaixonado por ela. É possível que sim. Coisas de adolescente. Mas a partir daquele dia sempre que a via lembrava-me da goela hiante, e tinha de conter o riso.

10.2.06

Momentos

[Caillebotte - O jardim em Petit Gennevilliers no Inverno]

à memória do Rui

São feitas também de momentos simples as memórias que tenho de ti. São elas que me fazem sentir-te vivo no meu coração. E lembrar-me de ti todos os dias. E todas as noites. Sobretudo todas as noites.

A briga

[Cézanne - Banhistas]

à memória do Rui

Uma briga, lembras-te. Uns tipos num bar, e tu tinhas-te metido no meio. Partiste o nariz a um deles. Tinhas a camisola branca suja de sangue. Mandámos parar um táxi. Tínhamos ambos um ar pouco amigável. Sangue por todo o lado, em ti. Por detrás da barba de três dias desta vez não trazias o teu eterno sorriso trocista. Eu erguia-me do alto de botas com palaformas de mais de dez centímetros, atingindo assim perto de dois metros de altura. Coberto de negro, cabelo rapado, rosto inexpressivo. A estúpida pose habitual. O taxista pareceu hesitar. Não éramos clientes que lhe inspirássemos muita confiança. Para o Príncipe Real. Trocámos entre nós as poucas palavras do costume. O taxista lançava olhares nervosos pelo retrovisor. Nessa noite estávamos especialmente rudes no discurso, ainda excitados da briga recente. Ias mandando uma ou outra boca às raparigas, na rua. Lembras-te, o táxi passou então perto do Trumps, e o taxista rosnou "olh'òs lolós...". Entreolhámo-nos. O teu sorriso trocista estava lá outra vez. Explodi. Pedimos para parar. Eu não aguentava mais. Pagámos. Ríamos como dois miúdos. Uma tolice. Mas ríamos, e não conseguíamos parar.

Sonho

[Kandinsky - Improvisação 7]

à memória do Rui


E houve aquela madrugada em que ficámos à espera do primeiro autocarro. Na altura saíam do Saldanha. Nascia o dia. Vencidos pelo sono. Sentados na paragem. Eu encostei-me ao vidro. Esforço para não fechar os olhos. Procurava sempre manter a pose, em quaisquer circunstâncias. Lutava contra o sono, para me manter direito, encostado ao vidro da paragem. Tu não estavas preocupado com poses. Muito menos com o que os outros pudessem pensar. Tinhas sono. Faltava muito tempo ainda para o autocarro. Deitaste-te sobre as minhas pernas e dormiste. Havia quem passasse e olhasse. Eu sorria-lhes com desprezo, quando conseguia vencer o sono. Deixavam-se levar pelas aparências. Não é nada disso que estão a pensar, idiotas. Eles não percebiam nada. Nunca ninguém percebeu. Nem eu.

Noites longas

[Oscar Bluemner - Paterson centre]

à memória do Rui

Havia aquelas noites longas, em Lisboa. Não importava o destino. A saída era apenas um pretexto. Os lugares mais improváveis, as companhias mais inverosímeis. Havia sempre um piscar de olho, um sorriso cúmplice. Não precisávamos de palavras. Gozávamos o ridículo, mesmo quando os ridículos éramos nós. O regresso era imprevisível. Uma boleia. O primeiro autocarro. Pouco importava. O dia a nascer. O silêncio da noite terminada. O eterno sorriso trocista.

8.2.06

O telefonema

Rui Oliveira (1976.01.11 - 2003.02.08)

O telefone tocou. Acordei, estremunhado. O visor do telefone dizia que eras tu. Não, não podias ser tu. Eu sabia que não podias ser tu. Soube logo o que significava aquele telefonema. Tinhas morrido. Era isso que me queriam dizer. Não quis atender. Não queria acreditar. Não. Atendi. Tinhas morrido. Eu adorava-te. E tu tinhas morrido.

Os dias e as noites

Auto-Retrato
Rui Oliveira (1976.01.11 - 2003.02.08)

Não consigo deixar de pensar em ti. Todos os dias. Todas as noites. Não te esqueço. Deito lágrimas. Não consigo esquecer-te. Todos os dias. Todas as noites.

A saudade

Auto-Retrato
Rui Oliveira (1976.01.11 - 2003.02.08)


Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua

Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.

Sophia de Mello Breyner

7.2.06

A deusa

[Klee - Abraço]

Achámos aquela parede demasiado nua. Pegámos em tintas e pincéis, e enchemo-la de desenhos, uns mais realistas do que outros. Aos poucos foi ganhando forma uma figura antropomórfica, rodeada de pinceladas menos precisas, no centro da parede. Tornou-se como uma deusa protectora da nossa arrecadação. Não tinha cara, apenas os contornos de uma cabeça com uns traços fazendo de olhos. Mas vigiava-nos. Não tirava de nós o seu olhar. Ainda lá está, quase invisível, desgastada pelo tempo e pela humidade. Lançando o seu olhar sobre quem entra e sabe que ela lá está.

O fogo

[El Greco - São João Evangelista]

Não, não era a primeira vez. Mas agora era diferente. Radicalmente diferente. Até então eu sempre achara que não era normal, que não era como os outros. Já me apaixonara várias vezes, achava eu. Até amara. Mas nunca sentira aquele fogo a consumir-me as entranhas, aquele ardor de que tantos falavam. Achava que era por ter um carácter frio e reservado. Sentia-me até orgulhoso desta minha frieza. Mas agora sentia-me atropelado pelos sentimentos. Uma revolução interior. Avassaladora. Era como se sensações e desejos durante tantos anos reprimidos resolvessem manifestar-se, todos, de repente, ao mesmo tempo, de uma vez só. Emudecia. Cegava. Não. Basta. Para quê tentar descrever? Era uma revolução de sentidos, avassaladora. Chega. Não era correspondido, não poderia ser nunca, nem isso me preocupava. Bastava-me aquele êxtase. Não sofria, pois sabia que não alcançaria nunca o objecto da minha paixão. Sentia-me inundado de uma felicidade estúpida. E de uma enorme decepção: afinal eu era normal, afinal eu era como os outros.

6.2.06

A luta

[Goya - El sueño de la razón produce monstruos]

Procuro viver governado pela razão. Procuro dominar as paixões da alma. As paixões são inimigos temíveis. Formidáveis. Cada dia soçobro um pouco mais. E vou lutando, cada vez mais desesperadamente, para me manter em vigília.

5.2.06

O soldadinho

[Cézanne - Paysage à Auvers]

Sentava-me naquela saliência, um desnível entre o muro do quintal e a parede da casa do lado. Fazia como que um degrau, alto, muito mais alto do que eu. Trepava com a ajuda de caixotes empilhados uns em cima dos outros. Depois sentava-me ali durante horas. Esgravatava suavemente a parede, enquanto imaginava o que poderia estar do outro lado. Na minha cabeça de miúdo de 8 ou 9 anos aquela era uma casa misteriosa. Nunca vira ninguém sair nem entrar. Na verdade devia ser uma espécie de arrecadação, muito velha. Mas eu não pensava nisso. Intrigava-me aquela aparente ausência de vida. Não tinha janelas, na parede virada para o quintal. Apenas umas frestas. Às vezes via luz, lá dentro, o que só aumentava o mistério. Por isso entretinha-me, sentado naquela saliência, esgravatando suavemente a parede, imaginando o que poderia haver do outro lado. Coberta de musgo, desfazia-se facilmente a camada exterior, em mau estado. Era estranho. Nunca chegava ao tijolo. Parecia coberta de uma densa camada de areia fina. Um dia, em vez de uma pequena chuva de areia, caiu-me nas mãos um pedaço maior, um torrão. Na parede ficou um pequeno buraco. Lá dentro estava um soldadinho. Não me lembro se de chumbo. Mas era um soldadinho. Retirei-o, extasiado. Era como uma mensagem da casa misteriosa. Algum menino ali estivera, muitos anos antes, a esgravatar a parede, como eu. Apertei o soldadinho entre as mãos, saltei para o chão e corri para casa, com o coração a bater mais depressa.

A sombra

[Picasso - Rapaz conduzindo cavalo]

À memória do Rui

Uma silhueta indefinida prostrada na cama. Os teus pais tentavam acordar-te, para me veres. Tu não reagias. Eu estava mudo, um nó na garganta. Eu só queria ver-te outra vez. Tentar acreditar no inacreditável. Olhava para aquilo que tinha sido o teu corpo. Despedi-me atabalhoadamente, com as lágrimas a quererem saltar dos olhos. A garganta apertada. O estômago estrangulado. Foi a última vez que te vi vivo. Se era estar vivo, aquilo.

2.2.06

Oblívio

[Mondrian - Composition nº II: composition in line and color]

Bebemos umas cervejas. Depois trocámos uns beijos. Vagueámos pelo castelo. Mais um arraial académico. Não tinha grande importância. Não deixaríamos de ser amigos por isso. Eram tempos despreocupados e inconsequentes. Éramos miúdos. Trocámos mais uns beijos. Bebemos mais umas cervejas. E no dia seguinte tudo não passou de uma recordação vaga e ressacada.

1.2.06

O mel

[Leonardo da Vinci - Dama do arminho]

Eu ardia de desejo por ti. Andávamos lado a lado, sem dizer palavra. Não sei para onde íamos nem porquê. Mas eu ardia de desejo por ti. Não eras bonita. A tua androginia afastava-te dos padrões de beleza. Mas eu ardia de desejo por ti. O resto do grupo seguia à nossa frente. Tínhamo-nos deixado ficar para trás. De vez em quando entreabria a boca para dizer algo, mas logo emudecia, quando te olhava. Tu parecias ignorar-me, como sempre, entregue ao teus pensamentos. Já não sei para onde íamos. Era o dia dos meus anos. Talvez fôssemos lanchar. Tinha 16 anos, e ardia de desejo por ti. Praguejaste por algum motivo, se calhar tinhas ficado sem tabaco. Paraste e eu parei, a olhar para ti, como fazem os cachorrinhos quando os donos param no meio da rua, a ver uma montra. Olhavas através de mim, como se eu não estivesse ali. De repente pareceste descer à terra, e reparar que eu estava ali, a olhar embasbacado para ti. Dá-me um mel, disseste. Dou-te o quê? Um mel, estúpido. Abraçaste-me e deste-me um longo beijo. Era um sonho. Um sonho de que depressa fui acordado. Anda que já lá vão à frente, ainda nos perdemos deles, dizias. Eu ardia de desejo por ti, cada vez mais, até à loucura.

Golias



[Beckmann - Jogadores de rugby]


Mais tarde ela disse que tinha aceitado o meu pedido de namoro por piedade. Talvez tenha sido realmente por isso que namorámos durante aquela meia dúzia de semanas. Embora na verdade tenha sido ela que me pediu em namoro. Ou melhor, foi ela quem me atacou, num momento de distracção, beijando-me furiosamente. Eu cedi. Tinha 16 anos, muitas borbulhas e um ego ferido por anos de rejeição feminina. Gostava dela, mas sem paixão. Não pude, porém, resistir ao seu assalto. Nem podia recusar o seu pedido de namoro. A perspectiva não me desagradava. Podia, finalmente, exibir uma namorada. Até aí, eu era sempre o único do grupo sem histórias de raparigas para contar. Todos tinham namoradas, mais ou menos regulares. Menos eu. O meu papel era sobretudo o de conselheiro amoroso das suas namoradas. Achavam-me inofensivo, debaixo daquela grossa camada de acne e gordura. Naquele dia tudo mudou. Não era a primeira vez que beijava uma rapariga. Não tinha uma vida sentimental assim tão pobre. Era já a terceira vez. Mas as anteriores experiências tinham sido esporádicas. Esta era a primeira relação a sério. Inundava-me uma felicidade sem descrição possível. Não por ela, mas pela situação em si. Eu tinha uma namorada. Podia passeá-la, mostrá-la aos amigos, exibi-la na escola. Mas foi alegria que durou pouco. Logo no dia seguinte soube que a minha felicidade era motivo de infelicidade furiosa de outra pessoa. Um pretendente, um rapaz de outra escola que cortejava a minha namorada há algum tempo. Não fiquei demasiado preocupado, de início. Eu era grande. Aos 16 anos teria já perto de 1,80 de altura e uns quilos a mais. Desde miúdo sempre fora o mais alto da turma. Ao contrário do que seria normal num rapaz com quilos a mais, nunca fui abertamente gozado. Nunca me chamaram nomes. Não. Houve um que uma vez me chamou "gordo". Não precisei de lhe bater. Um empurrão, e foi projectado a vários metros de distância. A minha presença impunha respeito. Portanto não fiquei demasiado preocupado. Tive algum receio apenas quando me vieram dizer que o pretendente pretendia espancar-me assim que me apanhasse a jeito. Ainda assim, continuei mais ou menos tranquilo. Sabia que o meu porte físico me defenderia com maior ou menor deificuldade. Apenas receava a violência em si. Sempre evitei e abominei a violência. Por isso o idílio que prometia ser este meu primeiro namoro depressa se transformou em felicidade moderada. Cada vez mais moderada, à medida que me iam chegando os recados do pretendente, que ameaçava não me deixar osso nenhum intacto. Um dia fartei-me. Quis saber quem era esse que me ameaçava, que me impedia de gozar convenientemente esta minha nova condição de namorado. Levaram-me a vê-lo, ao café que frequentava. Fiquei estarrecido. Era um ciclope. Gigantesco, a ponto de, se me aproximasse, ter de inclinar a cabeça para trás para poder encará-lo. Era enorme. Esmagar-me-ia, se me apanhasse a jeito. Felizmente não me viu. Voltei aterrorizado para casa. De repente este namoro deixara de ter graça.