Havia uma esplanada, em Torres Vedras, que se tornou o nosso ponto de encontro quase diário. Eu costumava chegar primeiro. Sentava-me e esperava ansioso que vocês chegassem. Tu costumavas trazer o maço de tabaco, surripiado do café da família. Ali nos sentávamos então os três, fumando cigarros à socapa, dizendo coisas sem sentido. Outras vezes apenas em silêncio, vendo o Sol pôr-se à nossa frente, num horizonte ainda em parte descoberto. Havia uma calma silenciosa. Apenas os tons laranja do fim da tarde. Ainda lá está, a nossa esplanada, quase vinte anos depois. Agora o seu único horizonte é uma fieira de prédios de muitos andares, do outro lado da rua movimentada. Agora o Sol só a ilumina a meio do dia, quando está bem alto. O resto do dia vive mergulhada na penumbra. E muito, muito barulho de carros e pessoas. Cheiro de escape. Gosto mais dela assim. Ainda que sinta a falta da vossa companhia.
31.1.06
A esplanada
Havia uma esplanada, em Torres Vedras, que se tornou o nosso ponto de encontro quase diário. Eu costumava chegar primeiro. Sentava-me e esperava ansioso que vocês chegassem. Tu costumavas trazer o maço de tabaco, surripiado do café da família. Ali nos sentávamos então os três, fumando cigarros à socapa, dizendo coisas sem sentido. Outras vezes apenas em silêncio, vendo o Sol pôr-se à nossa frente, num horizonte ainda em parte descoberto. Havia uma calma silenciosa. Apenas os tons laranja do fim da tarde. Ainda lá está, a nossa esplanada, quase vinte anos depois. Agora o seu único horizonte é uma fieira de prédios de muitos andares, do outro lado da rua movimentada. Agora o Sol só a ilumina a meio do dia, quando está bem alto. O resto do dia vive mergulhada na penumbra. E muito, muito barulho de carros e pessoas. Cheiro de escape. Gosto mais dela assim. Ainda que sinta a falta da vossa companhia.
The wind that shakes the barley
(Para ser ouvido cantado por Dead Can Dance, no album "Toward the within", onde a voz da Lisa Gerrard soa mais intensa do que na gravação em estúdio)
I sat within the valley green
I sat me with my true love
My sad heart strove the two between
The old love and the new love
The old for her, the new that made me
Think on Ireland dearly
While soft the wind blew down the glen
And shook the golden barley
Twas hard the woeful words to frame
To break the ties that bound us
But harder still to bear the shame
Of foreign chains around us
And so I said, "The mountain glen
I'll seek at morning early
And join the bold United Men"
While soft winds shook the barley
Sad I kissed away her tears
Her arms around me flinging
The foeman's shot burst on our ears
From out the wildwood ringing
The bullet pierced my true love's heart
In life's young spring so early
And there upon my breast she died
While soft winds shook the barley
I bore her to a mountain stream
And many's the summer blossom
I placed with branches soft and green
Around her gore-stained bosom
I wept and kissed her clay cold corpse
Then rushed o'er hill and valley
My vengeance on the foe to wreak
While soft winds shook the barley
It's blood for blood without remorse
I took at Oulart Hollow
And laid my true love's clay cold corpse
Where mine full soon may follow
Around her grave I wander drear
Noon, night and morning early
With breaking heart whene'er I hear
The wind that shakes the barley
Robert Dwyer Joyce
29.1.06
The carnival is over
"The Carnival is Over"
(Dead Can Dance)
Outside
The storm clouds gathering,
Moved silently along the dusty boulevard.
Where flowers turning crane their fragile necks
So they can in turn
Reach up and kiss the sky.
They are driven by a strange desire
Unseen by the human eye
Someone is calling.
I remember when you held my hand
In the park we would play when the circus came to town.
Look! Over here.
Outside
The circus gathering
Moved silently along the rainswept boulevard.
The procession moved on the shouting is over
The fabulous freaks are leaving town.
They are driven by a strange desire
Unseen by the human eye.
The carnival is over
We sat and watched
As the moon rose again
For the very first time.
No kissing
O desejo
Dormia muitas vezes em tua casa. Em camas separadas, evidentemente. Não voltámos a beijar-nos, depois aquela noite no Frágil, quando sob o pretexto de querermos chatear um amigo comum acabámos a fazer aquilo que havia tanto desejávamos. Depois disso regressámos à mais ortodoxa relação de colegas de faculdade que saíam juntos de vez em quando. Falávamos algumas vezes sobre aquela noite, porém como se tivesse acontecido a outras pessoas, não a nós. Mas havia entre nós uma cumplicidade que fazia prever novas experiências. Dormia muitas vezes em tua casa. Tratavas-me como um miúdo. Eu tinha 18 anos, era realmente um miúdo. Mas tu tinhas quê, 19? Quando me deitava, vinhas ajeitar-me os cobertores, certificavas-te de que estava bem resguardado, e davas-me um beijo na testa ou na cara. Ias-te então embora, e deixavas-me a arder de desejo.
27.1.06
Com que voz
(Para ser ouvido cantado por Rita Blanco no filme "Ganhar a vida", de João Canijo)
Com que voz chorarei meu triste fado,
que em tão dura paixão me sepultou,
que mor não seja a dor que me deixou
o tempo, de meu bem desenganado?
Mas chorar não se estima neste estado,
onde suspirar nunca aproveitou;
triste quero viver, pois se mudou
em tristeza a alegria do passado.
Assim a vida passo descontente,
ao som nesta prisão do grilhão duro
que lastima ao pé que o sofre e sente!
devido a quem de mim tenho ausente,
por quem a vida e bens dela aventuro.
Camões
Porfia
Harto de tanta porfía
sostengo bevir tan fuerte
qu'es triste el ánima mía
fasta que venga la muerte
En tus manos la mi vida
encomiendo condenado.
O piedad mereçida!
Por qué m'as desanparado?
Fin hará la profecía
dada por mi mala suerte
qu'es triste el ánima mía
fasta que venga la muerte
(anónimo espanhol, s. XV/XVI)
24.1.06
A indecisão
A máscara
A cisterna
Inclinava-me aterrorizado para o vazio. Era uma cisterna. Ou um poço. Tinha grampos metálicos cravados na parede, que permitiam descer até ao fundo. Mas eu apenas me inclinava aterrorizado. Não me passaria nunca pela cabeça descer. Atraía-me, apesar do terror. Era sempre para ali que me dirigia, quando subia ao castelo, ainda antes de subir ao torreão, e admirar a espantosa vista sobre a cidade velha. Nunca havia ninguém no castelo. Sozinho avançava rapidamente em direcção à cisterna. Ajoelhava-me, e inclinava-me aterrorizado para o vazio. Não sei o que receava ver. Não sabia para que tinha servido. Tinha 12 anos, e uma imaginação fértil. Via soldados franceses, dos tempos das Invasões, amarrados, lançados lá para dentro, deixados a apodrecer naquela escuridão húmida. Vinha, de facto, um bafo frio e molhado lá de dentro. Não sei o que esperava ver. Um esqueleto, ainda dentro da sua farda. Ou um fantasma. Uns olhos brilhantes surgindo da escuridão húmida. Não sei. Mas inclinava-me, aterrorizado, atraído pelo abismo. Até que um dia pareceu-me entrever uma bota, que atribuí imediatamente ao soldado francês morto de fome e sede. Arrastei-me rapidamente para longe da entrada da cisterna, tomado de terror intenso, ergui-me, e corri o mais depressa que pude para fora do castelo. Não voltei durante anos.
23.1.06
Sedução
21.1.06
A flor
Estavas sentado, em silêncio, como tantas vezes. Apreciávamos a companhia um do outro, sem necessidade de palavras. Bastava-nos a presença do outro. Tinhas pegado numa folha de papel, abandonada sobre a caótica mesa do meu quarto. Dedos ágeis. Minutos depois era uma flor, pequena. Estendeste-ma. Coloquei-a num copo de shot. Ali amareleceu com o tempo e o fumo dos nossos cigarros. Eram dias felizes.
A prenda
Uma garrafa de vinho. Sem rótulo. Nua. Escura. Parecia demasiado pesada nas tuas mãos fracas. Estendeste-ma com o teu sorriso ingénuo. Era a tua prenda de Natal. Tinhas sido tu a fazer aquele vinho, tinhas sido tu a engarrafá-lo, dizias com orgulho. Coloquei-a no armário da sala, na porta de vidro. Perguntaste-me várias vezes se o vinho era bom. Dizia-te sempre que só abriria a garrafa numa ocasião especial. Que a abriria quando estivesses bom, e então bebê-la-íamos juntos.
Ausência
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
Sophia de Mello Breyner
17.1.06
As rua das amendoeiras
15.1.06
O espelho
O castelo
O desespero
a E.
14.1.06
O conflito
A casa dos mistérios
Sentidos
13.1.06
A saudade
Nunca soube dizer "gosto de ti". Sempre guardei para mim os sentimentos que tinha para com os outros, mesmo quando eram óbvios, mesmo quando os outros eram pessoas que me eram demasiado queridas e mereciam ouvi-lo. Sempre tomei aquela atitude aparentemente despreocupada, talvez por defesa. Apenas em raras excepções de delírio sentimental deixei escapar algo. Mas em relação a ti não havia delírio sentimental desse género. Não era amor nem paixão o que eu sentia por ti. Era uma adoração imensa, intensa. Tínhamos quase nada em comum. Partilhávamos uma paixão clubística, era tudo. Tudo o resto nos separava. E no entanto, eu adorava-te. Pouco falávamos, de pouco podíamos falar, mas passávamos horas juntos, e tínhamos prazer nisso. Não tiveste nunca problemas em mostrar o que tu próprio sentias, em actos e em palavras, em momentos de maior emotividade - também os tivemos. Compreendeste-me sempre, aceitaste-me como eu era. E nunca tiveste pejo em mostrar e dizer que gostavas de mim, apesar disso. Eu ficava com um nó na garganta e não conseguia dizer tudo o que sentia. Nunca soube sequer dizer "gosto de ti". E se eu gostava de ti. Tanto que chegava a ser sufocante. Agora é tarde. Mas eu sei que tu sabias o quanto eu te adorava. Não era preciso dizê-lo por palavras. É que eu nunca soube dizer "gosto de ti". E tantas vezes to quis dizer.
Ausência
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
Sophia de Mello Breyner
12.1.06
A saudade
As velas
A amizade
11.1.06
Ausência
Rui Oliveira (1976.01.11 - 2003.02.08)
Ausência
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
Sophia de Mello Breyner
Os olhos
O medo
10.1.06
O pântano
Neste Verão regressei à antiga várzea. Já não é a nossa várzea. A cidade abraçou-a. De um lado uma imensa avenida com 4 faixas de rodagem. Do outro a circular da cidade. No meio, um gigantesco parque verde, separado da avenida por lombas relvadas, que o isolam do ruído da cidade. O parque é magnífico. Longas extensões relvadas. Verde a perder de vista, pontuado por árvores e cortado por sinuosos caminhos de terra batida. O canal ainda existe. Mas agora é cruzado por várias pontes de madeira, agora a água é limpa, agora há patos a nadar por entre os juncos, agora há peixes. Atravessando as pontes há um belo circuito de manutenção. Essa zona nós não conhecíamos, pois eram terrenos agrícolas. Agora é uma das zonas mais belas do novo parque, com suaves colinas relvadas e arborizadas. É tudo magnífico. Há bancos de madeira por todo o lado. Sentei-me e fiquei longos minutos naquela paz, vendo a cidade ao longe, silenciosa. É tudo magnífico. Mas eu não trocava as nossas tardes silenciosas por isto. Eram dias longos e intensos.
O nascer do Sol
9.1.06
A cheia
8.1.06
Na cratera
A arrecadação
A luz
O livro gigante
Lisbon revisited (1926)
Lisbon revisited (1926)
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.
Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.
Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...
Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me náufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.
Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?
Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.
Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver...
Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...
Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim -
Um bocado de ti e de mim!...
6.1.06
O táxi
5.1.06
A esfinge
4.1.06
A fuga
3.1.06
O sonho
a C.