15.1.06

O desespero


[Monet - Bateau atelier]


a E.

Passara os dias anteriores numa expectativa insuportável. Eu sabia que iria acontecer naquela noite. Não era a primeira vez, mas seria a mais especial. Tinha acontecido pouco tempo antes, mas tinha sido um capricho, um acto de rebeldia de um adolescente que queria chocar. Agora não. Agora eu era um quase adulto tremendamente apaixonado. E sabia que iria acontecer naquela noite. Era a noite do Arraial Académico, no Castelo de São Jorge. Passáramos o dia juntos, o que tinha sido uma péssima ideia. A tensão própria dos apaixonados com medo de dizer ou fazer algo que possa estragar tudo. Medíamos cada palavra, cada acto. Apenas o vinho do jantar nos conseguiu libertar. Havia um problema, porém, que ameaçava estragar o momento tão ansiado. Alguns amigos, que não tinham percebido ainda que havia qualquer coisa ainda não confessada entre nós, tinham insistido em se encontrar connosco. Felizmente eram os anos sem telemóvel. Era fácil esquivarmo-nos a encontros indesejados. Pelo menos durante algum tempo. Vagueámos pelo Bairro Alto, entrando e sainda dos bares. Era mais fácil assim, pois não tínhamos de estar a dar atenção exclusiva um ao outro. O ambiente suavizava. Já falávamos sem receios, já não mediamos os actos. Ríamos muito, imaginando os nossos amigos à nossa procura, e nós a fugir deles. Amigos que inevitavelmente acabaram por nos encontrar, num qualquer bar do Bairro Alto, onde nos atestávamos de álcool, na esperança de ultrapassarmos aquela hesitação persistente que nos separava da felicidade. Eu começava a ficar descrente, no entanto. Tal como eu, mantinhas em permanência uma pose esfíngica. Parecias não ter qualquer interesse em mim. É natural que eu me comportasse da mesma forma. Eu era assim. Desprendido, desligado, indiferente, esfíngico. Quando pediam a alguém que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça sobre mim, essa palavra era invariavelmente "enigmático". E eu cultivava essa pose, e não conseguia desfazer-me dela, mesmo quando tinha a perfeita consciência de que isso me prejudicava. Tal como acontecia nessa noite. Via-te fugir. Afinal o álcool parecia alienar-te de mim, em vez de te libertar e de te lançar nos meus braços. A chegada dos nossos amigos marcou um ponto de viragem. A partir de certa altura passaste a ignorar-me. Davas atenção a todos menos a mim. Parecias mesmo fazer alguns avanços amorosos a um ou outro dos nossos amigos. Afinal não passara tudo de uma ilusão. Eu fizeram todo aquele filme. Tu não tinhas qualquer interesse em mim. Fui tomado de desespero profundo. Fiquei apático, deixei de reagir as solicitações do grupo. Queria ir para casa o mais depressa possível. Sabia que tinha de esperar pelo comboio da manhã. Estava desesperado, queria esconder-me num canto e chorar. Ainda tentei, pateticamente, chamar a tua a atenção sobre mim. Mas tu parecias nem sequer dar pela minha presença. Eu era um idiota. Tinha imaginado todo um romance que só existia na minha cabeça. Era tão óbvio, agora, que nunca teria qualquer hipótese contigo. Por fim alguém gritou "vamos para o castelo!", e fomos para a praça de táxis. Eu já não via nada. Já não queria nada. Queria ir para casa, não queria voltar a ver-te. Deixei-me ficar para trás, e apanhei o último táxi. Entraste no mesmo táxi, sentaste-te ao meu lado, e renasceu-me então uma ténue esperança. Mas tu parecias completamente alienado, não me dirigias sequer palavra. Era-me óbvio que eu tinha dito ou feito algo que te desagradara. Talvez até tivesses algum interesse em mim, no início, mas era óbvio que o tinhas perdido. Sentia um aperto no estômago, estava pronto a desfazer-me em lágrimas. Não teria vergonha, poderia sempre dizer que era da bebedeira. Olhei para ti, estavas perdido de bêbedo. Encostavas-te a mim, com os olhos a fechar. Então abriste-os de repente, fixaste-me e sussurraste "beija-me". O que eu fiz, desesperadamente, quase em lágrimas, para consternação do taxista.

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