11.1.06

Os olhos

[Klee - 1914]

Não sei quando foi. Eu teria uns 4 anos, ou até menos. É a primeira recordação mais ou menos coerente que tenho. Tinha sido posto a dormir a sesta num cubículo da nossa antiga casa. Não tinha porta, pois a sua função primeira era a de ser uma despensa, ou uma arrecadação, como de facto veio a ser, anos mais tarde. Era mínima, quase totalmente preenchida pela pequena cama onde dormia as minhas sestas. À laia de porta, tinha uma cortina de tecido grosseiro às riscas verticais, em diversos tons de laranja. Lembro-me perfeitamente. Nessa tarde eu estava deitado, naquela sonolência que não é ainda sono, mas também já não é vigília. Então vi dois círculos enormes, que avançaram contra a cortina. Devo ter gritado e chorado. Pareciam dois olhos gigantes do lado de fora, tentando entrar para o cubículo. Não sei o que seria. Podia ser qualquer coisa perfeitamente inócua e banal, transformada em monstro pela imaginação prodigiosa de uma criança de 3 ou 4 anos. A minha mãe veio imediatamente, confortando-me e dizendo que não era nada, que eu tinha sonhado. Se calhar sonhei mesmo. Hoje, trinta anos depois, consegui recuperar aquelas mesmas cortinas laranja, que agora estão na minha casa, na janela do escritório.

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