[Kandinsky - Outono na Baviera]
Íamos regularmente à aldeia. Mas não era como os habitantes das grandes cidades, que nas férias vão para a terra, em longas, penosas horas de viagem. Não. Nós, habitantes de cidade pequena, fazíamos uma viagem curta. Não mais de dez minutos. Não havia tempo para o tradicional "falta muito?". A aldeia tinha uma entrada, uma rua estreita que partia da estrada principal. O carro entrava, devagarinho, porque as ruas eram apertadas e sinuosas. Depois, o momento mais desejado: corríamos, a minha irmã e eu, em direcção ao grande portão verde, e saltávamos a ver quem chegava à corda que fazia tocar a sineta. Ou se calhar não era assim, mas é esta a minha memória. Vinha então abrir-nos a dona da casa, que nos enchia daqueles beijos sonoros que só as tias velhotas sabem dar. O portão dava para um quintal sombrio, em parte coberto, que nos parecia enorme, cheio de plantas várias, plantas de sombra: apenas numa pequena parte o Sol batia directamente. Portanto havia sobretudo fetos e outras plantas dessas que se encontram à entrada de grutas ou debaixo de árvores frondosas. Havia também capoeiras suspensas no teco que cobria grande parte do quintal. Coisa estranha. Não nos detínhamos em grandes observações nesse quintal escuro. Corríamos para dentro da casa sombria, de janelas pequenas e sempre cobertas de cortinados grossos. Era fria, cheia de móveis antigos e "bibelots" estranhos. Havia um que me fascinava particularmente: um crocodilo engolindo um negro. O bicho era de um material branco, talvez marfim. Tinha a boca aberta, de onde saía a cabeça e parte do tronco do pobre negro. Não conseguia tirar os olhos dele - nem as mãos. Acabei por descobrir que o negro podia ser tirado da boca do corcodilo: a cabeça e o tronco estavam na ponta de um longo cilindro, que encaixava na boca do crocodilo e o penetrava profundamente. Mas a casa tinha outras coisas que me fascinavam mais ainda. Havia vários recantos estranhos e secretos. Eu gostava de me sentar nessa sala gelada, iluminada apenas pela porta envidraçada que dava acesso ao quintal sombrio. Era o ponto de partida para as minhas explorações, normalmente frustradas pela má vontade dos crescidos. Por exemplo, havia uma série de divisões onde raramente tínhamos ordem de entrar. A porta que lhes dava acesso, decorada com vitrais "art nouveau", era na cozinha. Nessa cozinha vivia uma tia ainda mais velhota, vestida de negro, curvada, pequenina, que nos beijocava impiedosamente sempre que nos deixávamos ficar ao seu alcance. Comia caracoletas assadas com ar guloso, e tinha um carrapito enorme no alto da cabeça, que me fascinava. Mas rapidamente o meu olhar se cravava na porta "art nouveau". Do outro lado eu sabia que havia uma belíssima sala de jantar, usada apenas em dias especiais. Tê-la-ei visto duas, três vezes. Outra coisa que me excitava na casa dos mistérios era a adega, espaço enorme, cheio de gigantescas pipas de vinho já sem préstimo. Pedia sempre para lá ir. De caminho passávamos por um corredo escuro, limitado de um dos lados por um imenso armário de aspecto centenário. Esse armário não estava encostado à parede, havia um espaço entre ele e as escadas que davam acesso ao primeiro andar. Não me lembro de alguma vez ter explorado esse espaço misterioso. Mas regressemos à adega. Nunca a explorei toda. Ficava sempre pela parte central, admirando embasbacado aquelas pipas enormes, cobertas de pó. Tudo cheirava a velho. A luz era escassa. Passando a adega, havia um outro quintal, este solarengo, e com uma torre-solário. Era magnífica. Poucas vezes me levaram lá. Acho que uma única vez. Subi as escadas da torre, e fiquei fascinado, a olhar a paisagem em redor. Não que fosse bela, tratava-se de campos agrícolas e casario. Mas era algo de completamente novo para mim, miúdo da cidade. Um dos meus sítios preferidos, porém, era o mais banal de todos. Era um terraço, a que se tinha acesso pelo primeiro andar. Ficava sobre parte do quintal da entrada, que por isso mesmo era sombrio. O terraço, pelo contrário, era espaçoso e ensolarado, cheio de canteiros de flores várias. Sobretudo amores-perfeitos. Deixavam-me ficar ali horas, a ler, ou simplesmente a sonhar acordado. Era sempre com alguma nostalgia que descia as escadas, para me meter no carro e regressar a casa.
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