12.1.06

As velas

[Redon - Barque mystique]

À memória do Rui

Lembras-te, uma vez convidaste-me para passarmos uns dias na tua "roulotte" do Baleal. Era por alturas da Páscoa, eu estava de férias. Não pensei duas vezes, disse que sim. Eu adorava-te. Levámos velas, lembras-te? Era a nossa tara da altura. Passávamos horas a derreter a cera de velas antigas para criar novas formas de cera. Normalmente aproveitávamos castiçais sem graça, e reformulávamo-los completamente, dando-lhes um ar centenário, cobertos de grossas camadas de cera, cainda como longas lágrimas petrificadas. Uma vez trouxeste uma garrafa enorme, bojuda, e transformámo-la num castiçal magnífico. Éramos capazes de passar uma tarde inteira nisto, trocando poucas ou nenhumas palavras. E assim nos entretivemos durante grande parte do tempo em que estivemos no Baleal. O frio não convidava a passeios pela praia. Também jogávamos xadrez. Tu ganhavas sempre, eras exímio. Estes dias no Baleal foram dos mais agradáveis de que tenho memória. E no entanto não trocámos muitas palavras. Pouco tempo depois, num bar de Lisboa, entre música alta, risos e outros ruídos, disseste-me coisas muito bonitas sobre a nossa amizade e o tempo que estávamos a passar juntos. Eu fiquei com um nó na garganta, sem saber o que te responder. Foram tempos fantásticos. Tínhamos uma amizade estranha, intensa, bela.

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