[Jacques Louis David, 1780 - Pátroclo]
Há cerca de vinte anos aproveitávamos todos os tempos livres para passear. Um dos nossos trajectos preferidos consistia em ir aos Cucos. Mas não íamos pelo caminho mais ortodoxo. Preferíamos acompanhar a linha do comboio quase até ao primeiro túnel. Depois, tomávamos um estreito caminho de terra batida, por entre árvores e arbustos, à beira do rio. Nenhum de nós era muito falador. Fazíamos grande parte do caminho em silêncio, ouvindo os pássaros e os insectos, se era o tempo deles. Havia uma ponte metálica sobre o rio, que dava acesso ao recinto termal, e que marcava o final da primeira etapa da nossa viagem. Tu gostavas de saltar, para fazer a ponte abanar. Avançávamos depois por entre os gigantescos plátanos, entrevendo os edifícios termais, neo-góticos, com aspecto abandonado. Sempre achei que era o cenário ideal para um Drácula português. Às vezes parávamos um pouco naquele extraordinário jardinzinho, com aquela bizarra fonte no meio do laguinho, deformada por décadas de acumulação de detritos calcários, coberta de avencas. Mas na maior parte das vezes iniciávamos imediatamente a segunda etapa do nosso passeio. Abandonávamos o parque termal, e começávamos a subir o monte no sopé do qual se situa. É um monte impressionante, com uma forma tal que corre a lenda de que é um vulcão extinto. Coberto de árvores e arbustos, não parece ser de escalada fácil. Mas nós tínhamos descoberto um caminho de terra batida. Durante algumas dezenas de metros a caminhada era fácil. Até que, de repente, o caminho pára. É como um beco sem saída, em que no lugar das paredes temos arbustos altos e espessos. Acabámos também por descobrir que, embrenhando-nos nos arbustos durante alguns metros, havia um novo caminho, mais largo, que levava ao cume do monte, por entre floresta densa. De vez em quando surgiam caminhos secundários, mais estreitos, que se embrenhavam no meio da floresta. Nunca os tomámos, seguíamos sempre a direito, o nosso objectivo era subir até ao cume. A caminhada terminava naquilo a que chamávamos "a cratera", o cume do monte: uma clareira plana, de forma vagamente circular. Dali a vista era espantosa e estranha, para rapazes da cidade como nós. Mato a perder de vista, numa sucessão de montes e colinas que nos parecia infinita. Não víamos nem casas, nem pessoas, nem estradas. Apenas mato. Um silêncio cheio de ruídos de animais e de plantas agitadas pelo vento. Ali nos deixávamos ficar, a olhar aves de rapina voando em círculo, a ouvir o sussurro das folhas e as ervas. Um dia fizeste-me o pedido mais inesperado. Olhei-te longamente, a tentar perceber se estavas a falar a sério. Mas tu mantinhas a impassibilidade que te é tão característica, mesmo quando brincas. Que hipóteses tinha eu? Podias estar a brincar, e eu corria o risco de cair no ridículo para o resto da vida, até de perder a tua amizade. Mas podia ser a sério, e, se eu achasse que era a brincar e o ignorasse, podia estar a perder a oportunidade única de obter algo que desejava havia muito. Ou arriscava, ou jogava pelo seguro. Ri-me, abanei a cabeça como quem diz "quase me enganavas". Tu também te riste. Voltei a olhar-te longamente, tentando perceber que tipo de riso tinha sido o teu. Mas já só via a habitual impassibilidade da tua expressão. Alguns minutos depois fomos embora, e nunca mais falámos daquilo.
1 comentário:
Este post é terrivelmente angustiante.
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