21.5.06

Abençoado

[Hoffmann - Flores e escaravelhos]

a C.

Preparou com todo o cuidado o dia da Bênção das Fitas. Um puto. Vinte e um anos, curso acabado. Agora vinha o dia da Bênção. Era um dia importante. Fez a mala, despediu-se da mãe com um beijo. Ficaria de véspera em Lisboa. Invadia-o uma tremideira incómoda. Esperara tanto tempo por isto. Apressou-se, não fosse perder o comboio e ficar em terra. Não, isso nunca. Não podia ficar em terra. Afinal era um dia importante, o dia seguinte. Demasiado importante. A roupa fora escolhida com todo o cuidado. Água de Colónia do supermercado. Não havia dinheiro para mais. Nem gosto. Era um rapaz simples. Nem feio nem bonito. Tinha algum cuidado com a aparência, mas sem exageros. Gel no cabelo muito curto. Óculos redondos pequeninos. Não iam além disso as suas preocupações com acessórios estéticos. A roupa era fácil de comprar: preta, sempre. Se não houvesse preta, então satisfazia-se com negra. Por isso a mala foi fácil de arrumar. E sobretudo de carregar. Era um dia importante. Que achara que nunca iria acontecer. O coração batia-lhe frenético quando o comboio entrou no túnel do Rossio. Toque-toque das rodas a bater nas juntas de dilatação. Longos lhe pareceram aqueles cinco minutos. Demasiado. Tentava ver o negro húmido, uniforme, lá fora. Mas só via a sua própria imagem nervosa, reflectida na janela.

Encaminhou-se para a casa do seu amor. Parece piroso, dito assim. Não é. Era o seu amor. O seu mais que tudo. A luz da sua vida. Todos os lugares-comuns. Era a primeira vez que achava que amava. Era um rapaz simples. Rude, crescido e reprimido em cidade de província. Ingénuo. Muito. Era o amor da sua vida, e com ele passaria aquela noite. Véspera de tão importante dia. Bairro Alto. Frágil. Nova. Os sítios de sempre. Noite longa. Bem regada. Bem fumada. Bem beijada. Foram para casa tarde. Cheiro a álcool e tabaco. Deitaram-se enrolados um no outro. A ouvir música. MC Solaar. Lopes Graça. Beijos longos. Como se pareciam amar. Dormiam no chão. A cama revelara-se demasiado frágil para aguentar os dois. Não é amanhã a bênção das fitas da tua universidade? É. Adormeciam entre palavras sussurradas. Sem nexo. Quase de madrugada. Talvez tivesse sido melhor deitar-me mais cedo, pensou antes de adormecer. Afinal amanhã é um dia importante.

Acordou cedo. Quase não dormiu. Vestiu a roupa que tão cuidadosamente escolhera para a ocasião. T-shirt preta. Calças de ganga pretas. Botas DocMartens. Não, isso foi depois. Antes de as calçar deitou-se ao lado do seu amor, da luz da sua vida. Acordou-o com beijos suaves. Já te vais embora? Não, claro que não. Enrolaram-se, abraçados. Toda a manhã. Sussurrando palavras tolas. Trocando beijos preguiçosos. Chovia. Então riu-se sem motivo aparente. De que te ris? Dos parvos vestidos de Drácula, ali a abanarem as fitas, debaixo de chuva. E eu aqui, contigo. Amo-te tanto. Já imaginaste o cardeal, todo encharcado? E se vem uma rajada de vento e lhe leva o chapelinho? Riam, felizes, entre beijos. Assim se deixaram ficar até a fome os obrigar a levantar. Aproveitando a manhã cinzenta. Era um dia importante. Acordavam juntos. Pela primeira vez.

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