13.5.06

Domi militiaeque IV

[Piranesi - O poço]

Silêncio. Como se o pressentíssemos. O portão move-se. Primeiro com vagar. Depois com violência, de par em par. Silêncio. Só os insectos fazem ressoar o ar abafado. E os passos. Bélicos. São dois. Jovens. Começou. Aquilo que receava desde a infância. O pesadelo. Lançam sobre nós olhares gelados. Parece-me que se detêm em mim mais do que nos outros. Paranóia. Nem devem ter reparado em mim. Gritam duas ou três ordens. Alinhados, em silêncio, ouvimos a palestra improvisada. Há uma agressividade estudada, falsa. O militar esforça-se por não sorrir. Leve descompressão. Se calhar não é tão mau. Este é simpático. Somos separados em dois grupos. Os que têm 12º ano ou mais seguem com um dos militares. Os restantes com o outro. Passo o portão. Começou. Já lá estou dentro. Agora estou às ordens deles. Podem fazer de mim o que quiserem. Já não me importo. Já não posso sair daqui. Portão fechado.

*

Tratam-nos com deferência e simpatia. Descompressão. A agressividade ficou do lado de fora do quartel. Convento. É um convento transformado em quartel. Todos em fila. Fazem favor de urinar no copo e depois trazê-lo à enfermeira. Humilhação primeira. Há quem não consiga, com os nervos. Passo com distinção esta primeira prova. Ainda me esperam outros exames. Aos olhos. Aos ouvidos. Vejo mal, mas não suficientemente mal para não passar na prova. Aos dentes. Tudo no sítio. Sangue. Pulmões. Exaustivo. Se tiver alguma doença, detectá-la-ão. Isto devia aliviar-me. Angústia. Terei alguma doença? Fumo muito. Pulmões negros. Algo pior? Suo descontroladamente. Sempre tive cuidado. Sempre sexo seguro. Mas e se. Não se pega com beijos. Mas e se. Não era este o pesadelo da minha infância. Estou no meio dele. E afinal não custa nada. Eclipsado por pesadelo maior.

*

Mais força! Não me diga que só consegue dar isso! Não consigo. Humilhação segunda. Não faço desporto, lamento. Uso as mãos para escrever, as pernas para andar. Não corro. Sou grande, encorpado. Mas não tenho força. Lamento. Primeira prova física em que tenho resultados negativos. Não tenho força. Nunca exercitei os músculos poderosos que um pediatra um dia profetizou serem os de um futuro atleta de alta competição. Quem sabe. Já não vou a tempo. Vinte e um anos. Joguei à bola uma única vez na vida. Não faço uso desta impressionante musculatura. Músculos para quê. Só os dos olhos. A ler. E os das mãos e braços. A segurar os livros. A escrever. Olhares de piedade e gozo. Não me importa. Não tenho vergonha disto. Quem são vocês para se rirem da minha falta de força? É ridículo um matulão de um e oitenta e cinco não ter força. Quero lá saber. Força para quê. Não me faz falta. E vocês, conseguem ler Séneca no original?

*

Última prova do dia. Psicotécnicos. Olá. Está alguém a falar comigo. Há um rapaz moreno a sorrir. Mete conversa. Está sozinho, como eu. Mas conhece gente ali. Queres vir jantar connosco, dar uma volta por aí? Claro. No quartel, para poupar dinheiro. Conversamos com alguns oficiais. Gente boa. Aquele que nos recebeu em tom agressivo. Prestável. Acessível. Começo a ganhar afeição a este antigo convento e aos seus habitantes. Fim de tarde. Passamos os portões. Levamos braçadeiras que não podemos perder. A vista sobre Coimbra, lá em baixo, é espantosa. Não tinha dado por ela, quando cheguei. Nem eu. Velhos amigos feitos em uma ou duas horas. Lá em baixo espera-nos um grupo. Temos hora de chegada ao quartel, não podemos exagerar. Há ali muitas caras conhecidas. Gente que me habituei a ver nos corredores da escola mas a quem nunca tinha falado. Absinto com pimenta, já provaste? Corta o sabor a álcool. Regresso em braços ao quartel. Lanço-me sobre a cama. Não me lembro de mais nada.

*

Acordar pá! Acordar caralho! Têm 15 minutos para se despacharem. Não consigo tomar duche, não há tempo. Lavo-me como posso. Mal. Desconfortável. Não consigo não tomar banho. Sinto-me viscoso. Cheiro mal. Dói-me a cabeça. Absinto com pimenta. Mais exames médicos. Faça favor de abrir os braços. Cheiro mal, não me deixaram tomar duche. O médico faz um gesto de repulsa. Eu sei que cheiro mal. Se me deixarem eu vou tomar um duche. Assim não lhe ofendo o nariz. Não o digo. Agora têm de esperar até serem chamados. Fome. Não me lembro de ter comido. A espera arrasta-se. O dia está cinzento. Convento gelado. Costas nuas contra as pedras frias da parede. O militar responsável pelo nosso grupo está preocupado connosco. Têm de almoçar. Vou ver o que posso fazer por vocês. Afinal é tudo boa gente, aqui. Salsichas e arroz. Sopa não identificável. Lugar livre ali ao canto. Onde está o meu amigo moreno? Lugar livre. Como sozinho. Tanto melhor. Não conheço os vizinhos de mesa. Será que me enganei. Arroto violento. Risos bestiais. Enganei-me. Mesa dos que não têm 12º. Levanto-me, despedido por um coro de arrotos, e avanço para a sala seguinte. Lá está ele! Tinha-me enganado no refeitório, desculpa.

*

Alívio. Paz. Porquê tantos anos de terror? Tenho horror à autoridade discricionária. Mas não é isso que se vê neste quartel. Há autoridade. Há regras. Estritas. E há bom-senso. Respeito. Não é suficiente para me fazer desejar a vida militar. Mas basta para terminar um pesadelo que vinha desde a infância.

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