Tenho de levar algo para ler. Κατέβην χθὲς εἰς Πειραιᾶ μετὰ Γλαύκωνος τοῦ Ἀρίστωνος ... A caminho de Coimbra. Inspecção. Somos muitos. Só rapazes. Enchemos o comboio. Não conheço ninguém. Mau feitio. Misantropo. Não é de agora. Agora apenas sofro as consequências. Há algumas caras que me são familiares. Mas nem um amigo, nem um conhecido. Sou o único sozinho. Todos os outros rapazes se juntam em grupos mais ou menos pequenos. Mas eu não conheço ninguém. Não me posso juntar a ninguém. Sinto-me perdido. Um antigo colega de escola. Mas já não nos falamos. Tanto melhor. Farei a viagem sozinho, a ler. Ainda não lamento a solidão.
*
Há dois grandes grupos. Há os que têm 12º ano ou mais. Há os que não. A fronteira é muito nítida. Nós vamos sentados, em silêncio. Ou conversando em voz baixa. Eles gritam. Riem alto. Passeiam-se pelas carruagens, destilando excesso de hormonas. A maneira de vestir. Mesmo as caras. Inconfundíveis. É chocante. Odi profanum vulgus et arceo. A fazer apreciações elitistas. Eu. Um homem de esquerda. Detesto-me. Racionalizo. Não tiveram condições para estudar. Não têm culpa. Muitos deles parecem ser bastante pobres. Odi me et arceo. Não consigo ler em paz. O dia desponta, quente. Chegaremos pela hora de almoço. Até lá tenho de aturar isto. Grotesco.
A ansiedade da véspera foi-se. Agora nervoso miudinho. Que será que me vão fazer? Já tirei os brincos? Já. Se calhar devia pô-los de novo. Não é normal um homem com tantos brincos nas duas orelhas, no início desta última década do século. Não queremos cá bichas. Paneleiros rua. Pode ser que... Se calhar devia pô-los. Não. É melhor não. Dizem que alegando homossexualidade eles dão-nos como inaptos. Ineptos, é assim que se deve dizer. Não sabem latim. Mas é melhor não. Mariquinhas. Aquele ali, de riso alvar, a olhar para mim com ar de gozo. É disto que tenho medo. E se gozam comigo, no quartel. Notam-se os buracos nas orelhas. Tentarei parecer o mais másculo possível. Que estupidez. Eu sei parecer másculo. Mas para quê. Que tolice. Chamavam-me mariquinhas, na escola, quando era miúdo. A minha melancolia. Os óculos. Sempre agarrado aos livros. Mariquinhas. E gordo. Também me chamavam gordo. Mariquinhas gordo. Mariquinhas gordinho. Gordinho mariquinhas. Não gostava de jogar à bola, como os outros miúdos. No recreio ficava isolado. Alegremente isolado. Misantropo de nascença? Depois cresci e tornei-me grande. Muito grande. Agora pensam duas vezes antes de me chamarem mariquinhas. Mas aquele está com os amigos. Não tem medo de mim. Cruzo as pernas. Exibo as minhas DocMartens. Sola ameaçadora voltada para ele. Baixo o livro e olho-o nos olhos. Não acredito que estou a fazer isto. Nunca me meti em brigas. Não sou capaz. Estou aterrorizado. A Cristiana tinha medo de mim. Achava que eu era um "skinhead". Não a censuro. Cabelo quase rapado. DocMartens. Calças de ganga rotas. Óculos pequeninos redondos. Apenas os brincos destoam. Pareço um oficial nazi saído de um filme de época. Eu. Homem de esquerda. Anti-nazi. O outro desvia os olhos. Retomo a leitura, triunfante. Aliviado. A minha presença é notada. Os grupos mais próximos olham-me com curiosidade. Aquele grupinho ali. Olhares gozões. Desconfortável. Era disto que eu tinha medo. Não arrisco novo desafio. Ainda estou a tremer. Levantar-me e espreguiçar-me. Sou o mais alto da carruagem. Não sou gordo, agora. Sou bastante encorpado. Pé em cima do banco. Ostensivamente desatar e tornar a atar os atacadores das DocMartens. Resultou. O grupinho parece ter desistido de me provocar. Demonstração de força estúpida. Fiz isto para quê? Idiota. Para me proteger. Criar a imagem do que não sou. Lanço olhares ameaçadores em volta, e volto a enterrar a cabeça no livro. Tenho medo. Agarro com força o livro para não perceberem as tremuras das minhas mãos. Sinto-me a sufocar. Como será no quartel? Vão-me chamar mariquinhas. Vão-me humilhar.
Há um que me olha de maneira diferente dos outros. Ruivo. Este não me mete medo. Desvia o olhar, embaraçado, quando o tento surpreender. É divertido. Este não diz mariquinhas com os olhos. Mas também não consigo decifrar o que diz. Bifurcação de Lares. Mudança de comboio. Isolado, no recreio. Às vezes brincava com as meninas. Mariquinhas. Estúpidos. Não sabiam que eu também brincava aos médicos, com elas. Aqui não há meninas. A estação é uma ilha cercada de arrozais a perder de vista. Isolamento absoluto. Temos de esperar. Uma hora. Ou mais. Não conheço ninguém. Caras familiares, apenas. Refugio-me no livro. Mariquinhas. O ruivo olha-me insistentemente. O que é que ele quer. Incómodo. Deixou de ter graça.
Comboio suburbano. Estamos a chegar, parece-me. Vamos em pé, apertados. O ruivo está mesmo à minha frente, quase lhe sinto o hálito. Os outros parecem ter-se habituado a mim, ignoram-me. O ruivo insiste. Não percebo aquele olhar. Não é de gozo. Não é de curiosidade. Não, não é de engate. Olha-me como se eu não estivesse ali. Acorda quando cruzo o meu olhar com o dele. Então baixa a cabeça e cora. Andamos neste jogo desde a Bifurcação de Lares. O que queres de mim?
À porta do quartel. Pânico. Calor ardente. Tenho medo. O que me farão? Vão-me obrigar a despir em público. A andar nu entre nus. E vão ver os furos nas minhas orelhas. Vão-me humilhar. Abro o livro mas não vejo as letras, só borrões. O estômago não existe. Estou banhado em suor. Calor. Que abram depressa a porta. Que isto acabe rapidamente. Sinto que posso começar a chorar a qualquer momento. Vão-me humilhar. Vão gozar comigo. Mariquinhas. Pé de salsa.
*
*
A ansiedade da véspera foi-se. Agora nervoso miudinho. Que será que me vão fazer? Já tirei os brincos? Já. Se calhar devia pô-los de novo. Não é normal um homem com tantos brincos nas duas orelhas, no início desta última década do século. Não queremos cá bichas. Paneleiros rua. Pode ser que... Se calhar devia pô-los. Não. É melhor não. Dizem que alegando homossexualidade eles dão-nos como inaptos. Ineptos, é assim que se deve dizer. Não sabem latim. Mas é melhor não. Mariquinhas. Aquele ali, de riso alvar, a olhar para mim com ar de gozo. É disto que tenho medo. E se gozam comigo, no quartel. Notam-se os buracos nas orelhas. Tentarei parecer o mais másculo possível. Que estupidez. Eu sei parecer másculo. Mas para quê. Que tolice. Chamavam-me mariquinhas, na escola, quando era miúdo. A minha melancolia. Os óculos. Sempre agarrado aos livros. Mariquinhas. E gordo. Também me chamavam gordo. Mariquinhas gordo. Mariquinhas gordinho. Gordinho mariquinhas. Não gostava de jogar à bola, como os outros miúdos. No recreio ficava isolado. Alegremente isolado. Misantropo de nascença? Depois cresci e tornei-me grande. Muito grande. Agora pensam duas vezes antes de me chamarem mariquinhas. Mas aquele está com os amigos. Não tem medo de mim. Cruzo as pernas. Exibo as minhas DocMartens. Sola ameaçadora voltada para ele. Baixo o livro e olho-o nos olhos. Não acredito que estou a fazer isto. Nunca me meti em brigas. Não sou capaz. Estou aterrorizado. A Cristiana tinha medo de mim. Achava que eu era um "skinhead". Não a censuro. Cabelo quase rapado. DocMartens. Calças de ganga rotas. Óculos pequeninos redondos. Apenas os brincos destoam. Pareço um oficial nazi saído de um filme de época. Eu. Homem de esquerda. Anti-nazi. O outro desvia os olhos. Retomo a leitura, triunfante. Aliviado. A minha presença é notada. Os grupos mais próximos olham-me com curiosidade. Aquele grupinho ali. Olhares gozões. Desconfortável. Era disto que eu tinha medo. Não arrisco novo desafio. Ainda estou a tremer. Levantar-me e espreguiçar-me. Sou o mais alto da carruagem. Não sou gordo, agora. Sou bastante encorpado. Pé em cima do banco. Ostensivamente desatar e tornar a atar os atacadores das DocMartens. Resultou. O grupinho parece ter desistido de me provocar. Demonstração de força estúpida. Fiz isto para quê? Idiota. Para me proteger. Criar a imagem do que não sou. Lanço olhares ameaçadores em volta, e volto a enterrar a cabeça no livro. Tenho medo. Agarro com força o livro para não perceberem as tremuras das minhas mãos. Sinto-me a sufocar. Como será no quartel? Vão-me chamar mariquinhas. Vão-me humilhar.
*
Há um que me olha de maneira diferente dos outros. Ruivo. Este não me mete medo. Desvia o olhar, embaraçado, quando o tento surpreender. É divertido. Este não diz mariquinhas com os olhos. Mas também não consigo decifrar o que diz. Bifurcação de Lares. Mudança de comboio. Isolado, no recreio. Às vezes brincava com as meninas. Mariquinhas. Estúpidos. Não sabiam que eu também brincava aos médicos, com elas. Aqui não há meninas. A estação é uma ilha cercada de arrozais a perder de vista. Isolamento absoluto. Temos de esperar. Uma hora. Ou mais. Não conheço ninguém. Caras familiares, apenas. Refugio-me no livro. Mariquinhas. O ruivo olha-me insistentemente. O que é que ele quer. Incómodo. Deixou de ter graça.
*
Comboio suburbano. Estamos a chegar, parece-me. Vamos em pé, apertados. O ruivo está mesmo à minha frente, quase lhe sinto o hálito. Os outros parecem ter-se habituado a mim, ignoram-me. O ruivo insiste. Não percebo aquele olhar. Não é de gozo. Não é de curiosidade. Não, não é de engate. Olha-me como se eu não estivesse ali. Acorda quando cruzo o meu olhar com o dele. Então baixa a cabeça e cora. Andamos neste jogo desde a Bifurcação de Lares. O que queres de mim?
*
À porta do quartel. Pânico. Calor ardente. Tenho medo. O que me farão? Vão-me obrigar a despir em público. A andar nu entre nus. E vão ver os furos nas minhas orelhas. Vão-me humilhar. Abro o livro mas não vejo as letras, só borrões. O estômago não existe. Estou banhado em suor. Calor. Que abram depressa a porta. Que isto acabe rapidamente. Sinto que posso começar a chorar a qualquer momento. Vão-me humilhar. Vão gozar comigo. Mariquinhas. Pé de salsa.
Sem comentários:
Enviar um comentário