30.5.06

Asas

[Bestiário de Aberdeen, fólio 51v]

Sonhava tanto. Tomava formas estranhas. Não queria ser igual aos outros. Imaginava-me um ser sobrenatural. Largas asas de morcego que se desdobram silenciosamente. Não por qualquer tendência vampiresca. Nunca as tive. Há tanto tempo que não vejo um morcego. Gostava de animais da noite. Mochos. Corujas. Morcegos. O coaxar nocturno das rãs no tempo quente. Os silvos das corujas. Poderia ter-me dado para me imaginar coberto de penas. Mas não. Asas de morcego. Longas. Negras. Imaginário gótico. Pálido. Vestido de negro contra a lua cheia. Tinha de ser. Fazia parte do roteiro. Abrindo as asas e levantando voo. Para longe de todos. Para o mundo dos meus sonhos. Onde eu era diferente dos outros. Onde ninguém se metia comigo. Onde não ouvia os gritos. Assim me encontraram tantas vezes. Olhar perdido. Sorriso nos lábios. Podia ter um brinquedo na mão. Imóvel. Ou um livro fechado. Não vais brincar com os outros meninos? Regressava então do mundo dos sonhos. Por pouco tempo. Não aguentava muito tempo cá em baixo. De novo me vestia de negro e abria as minhas asas de morcego e levantava voo. Sonhava tanto.

Sem comentários: