27.5.06

A onda

[Leonardo da Vinci - São João Baptista]

a J.

Não desistia de te recuperar. Não podia viver sem ti. A tudo me sujeitei. Passei a ser o teu amante, já não o teu namorado. O outro. Com quem vinhas ter, às escondidas das tuas novas relações. Desci tão baixo. Encontros fortuitos. Amantes proibidos. Escondidos. De quem? Porquê? Se eu te amava tanto. Mas tu tinhas-me deixado. E no entanto voltavas. Sem compromisso. Traindo as tuas novas relações. E eu aceitei. Desci tão baixo. Por amor.

Houve aquela noite, pouco tempo depois de me deixares. Noite de Ano Novo. Chamaste-me e eu fui. Não desistia de te recuperar. De madrugada saímos da discoteca. Cambaleantes. Decidimos regressar a pé, pela praia. Negro absoluto. Noite sem estrelas. Como a minha alma. Gélida. Andávamos devagar, por entre as altas dunas, tentando alcançar a praia. Não víamos nada. Guiava-nos o fragor das ondas alterosas, ao longe. Agarravas-te a mim. Frio. Ou medo. Ou outra coisa. Depois paraste. Puxaste-me para ti e beijaste-me. Há muito que não trocávamos beijos tão apaixonados. Demasiado cansado para euforias. Demasiado ferido para acreditar. Lembro-me de que me vieram lágrimas aos olhos. Amava-te tanto. O meu mundo parecia recompor-se. Sabia que não ias voltar já. Mas aqueles beijos eram bálsamos. Esperanças. Não desistia de te recuperar. Não trocámos palavras. Abraçados na escuridão. Fustigados pelo vento gelado de Janeiro. Estávamos mais perto. Já nos atacavam os salpicos das ondas furiosas. O terreno descia suavemente. Praia. Finalmente. Ondas ensurdecedoras. Invisíveis. Apertaste-me com mais força. Invadiu-me uma sensação de pânico controlado. Tínhamos de avançar. Como único ponto de referência as luzes ao longe. E o oceano furioso, à nossa direita. Avançávamos agarrados sobre a areia molhada. Cabelos encharcados. Sem falar. Agarrados num abraço que parecia eterno. Ensurdecidos pelas ondas que imaginávamos enormes. Pus-me do lado do mar. Para te proteger. Avançávamos a custo no areal inclinado. Quilómetros. Já não podia mais. Fraquejavam-me as pernas. Então veio a onda. Rugindo, feroz. Senti a torrente salgada envolver-me as pernas. Violentamente. Força bruta que me empurrava e me submergia até à cintura. Água gelada. Puxava-me para dentro. Engolia-me. E eu resistia. Fui buscar forças que não tinha e soltei-me daquelas tenazes que me puxavam lá para dentro. Para o oceano. Para a morte. Pensei em ti. Não podia morrer agora. Não podia morrer sem te recuperar.

3 comentários:

***Gui*** disse...

André, não tenho nada de inteligente para te dizer... pensei em comentar o teu texto só com reticências mas achei que não tinha lógica...continuo a ler tudo o que escreves e não houve ainda um único conjunto de palavras tuas que me decepcionasse... no entanto os comentários que possa deixar são demasiado vazios para exprimir o quanto gosto de te ler... sem segundas intenções, sem nada de estereotipado... estamos em patamares completamente diferentes e tenho plena consciência disso e, no entanto, o que dizes exprime muito do que sinto ou senti...
...
Beijos ***

André . أندراوس البرجي disse...

Obrigado Bri, embora ache que exageras um pouco nos elogios. É sempre bom saber que há leitores fiéis deste espaço. Beijinhos!

***Gui*** disse...

O exagero é muito subjectivo...e acredita que não é exagero nenhum... quando gosto, gosto e é apenas isso!

Um abraço e fica bem...
Beijokitas ***