19.5.06

Povo que lavas no rio

[Bassetti - São Sebastião e Santa Irene]
a R2

Era escuro. Quente. Despojado. Atraía-me irresistivelmente. Ali começava e terminava a noite. Quase sempre sozinho. Esperava que o bar fechasse, e aproveitava a tua boleia. Oferecias-me cervejas. Sem a patroa ver. Se ela sabe ainda me lixa. Toma lá. Sentava-me ao balcão a fumar cigarros e a beberricar cerveja. Não me lembro se gostava da música. Não era isso que me levava lá. Gostava da tua companhia. Dos teus humores inconstantes. Olhos melancólicos. Rosto fechado que se desfazia em gargalhadas incontroláveis sem razão aparente. Silêncios prolongados a que se sucediam torrentes de palavras. E cantavas, atrás do balcão. Uma noite cantaste Amália, depois de um longo silêncio. Baixinho. Ausente. Pareceu-me ver-te lágrimas. Estás bem? Não. Depois rias-te. Toma lá mais uma cerveja. Eu não gostava de cerveja. Mas não recusava. Não recusava nada de ti. Gostas de Amália? Não, não gosto de fado, mas este é diferente. É bonito. Caiu-te da cara o sorriso. Tu também és diferente. Diferente de todos os que por aí andam. Não soube o que responder. Não percebi se era um elogio. "E talhas com o teu machado as tábuas do meu caixão". A voz mal se ouvia já. O que tens? Voltaste-te lentamente. Via-te agora o perfil angustiado. O que tens? Sabes que sou teu amigo. Demoraste algum tempo a responder. Não te preocupes. O que tenho não tem solução. Ninguém me pode ajudar. Só a morte. Olhaste-me de frente. Gargalhada. Desconcertante. Vamos embora rapaz, que já se faz tarde.

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