12.5.06

Domi militiaeque I

[Guercino - Estudo de rapaz sentado]

Amanhã vou para a tropa. Vou à inspecção. Enganei-me. Que importância tem. É a mesma coisa. Quartel. Tropas. Ordens. É a mesma coisa. Tropa. Inspecção. Vai ser um ponto de viragem na minha vida. Vou à inspecção. 1,85m. Robusto, mas não gordo. Serei dado como apto, com toda a certeza. E começará a contagem decrescente para a incorporação. O pesadelo que me persegue há tanto tempo. Desde a infância. Amanhã começa. Vou-me despedir da vida tranquila, esta noite. Tenho de me levantar muito cedo, para apanhar o primeiro comboio da manhã. Que importância tem. Nunc est uiuendum. Até logo, não venho tarde. Como será amanhã. Há um bar novo, talvez lá vá. Com recantos. Pouco iluminado. Uma casa antiga transformada em bar. Anos seguidos a pedir adiamentos. Mas agora estou a acabar o curso. Não há mais adiamento possível. Andamos pelos corredores sombrios do bar e escolhemos o compartimento que mais nos agrada. É um conceito interessante, Quem me dera viajar dois dias no tempo, não ter de passar por isto. Que sorte. Dois amigos neste compartimento. Vão estar lá centenas de rapazes. Não me sinto à vontade. Sabem que amanhã vou à inspecção? Nunc est bibendum. Tomamos uns copos. Vinho do Porto. Ou cerveja. Que importância tem. É a mesma coisa. Ouvi dizer que temos de nos despir em grupo. Não quero. Aproveito esta minha última noite de tranquilidade. Amanhã começa a contagem decrescente. Não são dois amigos, são dois conhecidos. Um deles acho que o vi apenas duas ou três vezes. Que importância tem. Preciso de beber. De conversar. Com amigos, com conhecidos. É a mesma coisa.Vai-se-me apertando o estômago. Amanhã a esta hora como estarei. Onde estarei. Tenho medo. Vou andando, amanhã tenho de me levantar cedo. Boa sorte. Obrigado. E se me obrigam a despir em frente dos outros todos. Não me apetece ir já para casa. Mas devia. Mas tenho de. Não me sinto confortável no meio de grupos exclusivamente masculinos. Como será, se me incorporarem. Não quero pensar nisso, agora. Limpo a mente. O que tiver de ser, será. Preocupo-me com a incorporação quando ela chegar. Que importância tem. É melhor ir dormir, amanhã tenho de me levantar cedo. Cada degrau é uma martelada na cabeça, que ameaça rebentar. As chaves. Não trouxe as chaves. Campainha. Alguém há-de abrir. É normal, a mãe demora sempre um bocadinho a vir abrir, tem de percorrer o corredor. É melhor tirar os brincos, ainda me arranjam problemas por causa disso. Não me abrem a porta. Campainha. Que livro levar. Sim, tenho de levar um livro. Ninguém. Não está ninguém em casa. E agora. Quase meia-noite. Platão. Levo Platão. República. O Miguel diz que serei um militar diferente. Que chegarei a um posto elevado. Que terei recrutas sob o meu comando. Que em vez de exercícios militares os sentarei debaixo de plátanos, e discutiremos Platão. Plátanos. Galiza. De onde me vem a Galiza, agora? Que estranho. Quero ir dormir. Sentar-me nas escadas e esperar. Onde terão ido todos. Sentar-me nas escadas. Esperar. Até que alguém venha e me abra a porta. Amanhã muda a minha vida. Tenho vontade de chorar. Mas é ridículo chorar por uma coisa destas. Que importância tem. Hoje, sentado nas escadas, à espera de que me abram a porta. Amanhã no quartel, à espera de que ma fechem. É a mesma coisa.

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