31.5.06

Sem carne

[Bosch - Tentação de Santo Antão]
a A.

Não sei se já contei isto. Falha-me cada vez mais a memória. Sinto urgência em escrever. Para não esquecer. Sei que acabarei por não me lembrar de nada. Não sei. Mas lembro-me de ti naquela tarde quente. Tristeza infinita nos teus olhos. Acabara. Não sabia como te dizer que não queria mais. Que te adorava. Mas que naquele momento não podia. Não era capaz. Não me podia dar. Não me queria dar. Idiota. Puto romântico. Guardava-me. Para quem? Para quê? Emparedava-me nos meus medos. Insegurança. Não sabia se gostavas mesmo de mim. Receava que não passasse de mais uma aventura. Gostava tanto de ti. Mas não era capaz. Queria uma coisa diferente. Impossível. Uma relação de olhares. Sem carne. Noites abafadas no teu quarto. Lembras-te? Tantalizava-te. Fui cruel, talvez. Sem o querer. Gostava tanto de ti. Dera-me como nunca a ninguém. Mas não chegava. Precisavas de mais. Não sabia como te dizer tudo isto. E agora partia. Mudo. Percebeste tudo. Sabias que partia para não voltar. Olhei para trás, como nos filmes. Estavas imóvel. Olhando-me. Tristeza infinita nos teus olhos. Não sei se por gostares de mim. Ou por te veres de novo sozinho. Ou era a minha tristeza que via reflectida nos teus olhos. Se calhar era isso. Se calhar já contei isto.

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