9.5.06

Gelans intrinsecus

[Robert Henri - Cumulus clouds: East river]

Debruçado sobre o muro, olhando o mar calmo de Agosto. Maresia. Maré vazia. Lá em baixo os últimos banhistas arrumam as suas coisas. Começa a cair a noite. A minha hora preferida. Crepúsculo. Céu laranja. Brisa fria. Arrepio-me. A escarpa negra invade-me agora a alma. Já não vejo o mar. Apenas ouço o seu marulhar suave. Não conseguia suportar. Tinham sido duas semanas de descoberta. Uma nova amizade. Ao longo dos anos o meu carácter reservado e alguma misantropia tinham-me tornado um homem isolado. Tinha os amigos da faculdade, pouco mais. O que não me fazia qualquer diferença. Gostava deste isolamento. De ficar fechado em casa a ler. Gostava de sair, é verdade, mas uma ou duas vezes por mês bastavam-me. Encontrar-me com amigos, de vez em quando. Mas nada substituía uma tarde ou noite de leitura, em absoluta e desejada solidão. Agora descobria uma nova amizade. Forte. Que revolucionava a minha existência. Nascera e fortalecera-se em cartas trocadas mensalmente entre Marselha e Torres Vedras. Fabrice. Conhecera-o na minha viagem a Milão, algures entre Coimbra e Burgos. Naquelas poucas horas juntos criámos laços fortes. Trocámos moradas. Nunca mais perdemos o contacto. Cartas. Longas cartas, de velhos amigos que se tinham visto uma única vez. Ao fim de dois anos de palavras escritas decidimos rever-nos. Sentíamos saudades um do outro. Duas semanas numa tenda. Os laços criados em papel e caneta tornavam-se agora reais, sólidos, aparentemente inquebráveis. Mas agora ele partia. Na manhã anterior viera despedir-se de mim. Apertei-lhe a mão, ainda estremunhado. Que estúpido. Um aperto de mão. Numa noite de maior intimidade dissera-me que que tinha ficado surpreendido e chocado por o ter recebido com um simples aperto de mão e um sorriso contido. Esperava um mediterrânico abraço com palmadas nas costas. Expliquei-lhe que de mediterrânico eu só tinha a fisiologia. Riu-se e chamou-me "germano". Sabia do que falava, filho de mãe alemã. E eu, idiota, cometia pela segunda vez o mesmo erro. Despedi-me com um aperto de mão, frouxo. Partia. E eu regressava à minha solidão misantropa. Mas desta vez doía. Muito. Agora tudo parecia sem sentido. Está frio. Deixei de ouvir o mar. Apenas lhe sinto o cheiro salgado. À minha frente negrume, salpicado por luzes fracas e distantes de barcos de pesca. Esparsas. Acabou.

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