31.7.07

Aquilo que não se pode contar . 12 . O cheiro

[Bosch - A adoração dos Magos (pormenor)]

La curiosidad pudo más que el miedo y no cerré los ojos.

Jorge Luis Borges, There are more things

toc toc toc. Naquela tarde a minha vida acabou entre espirais de pó laranja. Ou vermelho. Dançando à minha volta por cima de mim deitado de cara colada ao tecto. E às vezes levantava o braço e lançava-lhe a mão. Como se pudesse lá chegar. Tacteando o ar pastoso. Abrindo caminho por entre a chuva de pó ritmado. toc toc toc. Quebrando o silêncio da tarde muda. Surda. Surdo. Porque à minha volta só toc toc toc. Mais nada. Como se o mundo tivesse acabado e só restássemos nós. Eu. E aquilo. E eu queria gritar. Chamar a mãe. Mãe. Mãe. toc toc toc. A boca não se me abria. Todo eu confluía naquela moldura sem pó. Mudo. Surdo. Eu era olhos e mão. Lançados ao tecto. E aquele ardor nas entranhas.

Depois pus-me de joelhos em cima da cama e tudo mudou. A luz era a mesma. Filtrada pelas listas da cortina. Laranja. Vermelho. E dourado. Mas havia um cheiro novo no ar. Já não era o pó nem o bolor nem o papel. Era pegajoso. Húmido. Não era um cheiro animal. Era. Não sei. Era diferente. Laranja. Cheirava a laranja. Não ao fruto. À cor. As cores não cheiram. Mas aquilo era cheiro a cor de laranja. Como o calor. Um calor cor de laranja que me entrava pela pele adentro. Ou então. Talvez não fosse um cheiro a cor de laranja. Mas quando fecho os olhos e me tento lembrar. Pó. Laranja. E o toc toc toc. Que agora era um zumbido. Quase um riso baixinho. Anda cá sobe não tenhas medo. Não não. Isto não é uma história de fantasmas. Já disse. Mas eu ouvi aquilo. Dentro da minha cabeça. Ou era eu que. Ou era aquilo. E o meu coração parou. Pus a mão no peito e não o sentia.

28.7.07

Gobbling down the pills

[Rembrandt - Lucrécia]

«When he'd awakened in the night and turned on all the lights, he drank some water and threw open a window and paced the apartment to restore his stability, but despite himself he was thinking about only one thing: how it had been for her to kill herself. Did she do it in a rush, gobbling down the pills before she changed her mind? And after she'd finally taken them, did she scream that she didn't want to die, that she just couldn't face any more crippling pain, that all she wanted was for the pain to stop - scream and cry that all she wanted was for Gerald to be here to help her and to tell her to hang on and assure her that she could bear it and that they were in it together? Did she die in tears, mumbling his name? Or did she do it all calmly, convinced at long last that she was not making a mistake? Did she take her time, contemplatively holding the pill bottle in her two hands before emptying the contents into her palm and slowly swallowing them with her last glass of water, with the last taste of water ever? Was she resigned and thoughtful, he wondered, courageous about everything she was leaving behind, perhaps smiling while she wept and remembered all the delights, all that had ever excited her and pleased her, her mind filled with hundreds of ordinary moments that meant little at the time but now seemed to have been especially intended to flood her days with commonplace bliss? Or had she lost interest in what she was leaving behind? Did she show no fear, thinking only, At last last the pain is over, the pain is finaly gone, and now I have merely to fall asleep to depart this amazing thing?»
Philip Roth, Everyman

Hic sunt leones . 3 . O medo

[Albrecht Pfister - Daniel na cova dos leões]

ἦσαν δὲ ἐν τῷ λάκκῳ ἑπτὰ λέοντες καὶ ἐδίδετο αὐτοῖς τὴν ἡμέραν δύο σώματα καὶ δύο πρόβατα τότε δὲ οὐκ ἐδόθη αὐτοῖς ἵνα καταφάγωσιν τὸν Δανιηλ
Daniel 14:32

Não houve tempo para ter medo. Não custou nada. Só aquela dor aguda. Mas quê. Nem um segundo. Nem me lembro. Era mesmo aguda ou será que. Se eu soubesse que era assim não teria tido tanto medo de ter medo. Porque não era a morte que me assustava. Era o medo. O medo que eu achava me ia devorar quando percebesse a morte sobre mim. E afinal. Se eu soubesse que era assim já teria morrido há mais tempo. Foi muito fácil. Muito rápido. Quase indolor. Vou contar como foi. Foi assim. Quando percebi que o leão ia. Não tinha nada a perder. Vi-o ali tão perto. A goela escancarada e o cheiro a carne podre. Então voltei-lhe as costas e corri. Ou tentei correr. Porque ele caiu sobre mim. Não terei dado mais do que um passo. Pescoço partido clac. Talvez devesse ter ficado parado. Não sei. Morreria na mesma. E talvez sofresse mais. Porque de costas. Mas eu já conto. Agora quero lembrar-me de outra coisa. Não foi a primeira vez que uma besta me caiu em cima. Houve aquela vez. Não me lembro bem. Era tão pequenino. Um cão negro. Era nosso e era enorme. Ou talvez não fosse assim tão enorme. Talvez fosse apenas um cão grande. Normal. Tinha um nome estranho. Não me lembro. Foi há tantos anos. Trinta. Ou mais. Eu sei que estava no quintal. E ele veio a correr. Como este leão que agora se diverte a tirar para fora da minha barriga todas as minhas entranhas. Deixá-lo. Se me matou. Tem direito. E eu prefiro assim. Fico despachado. Porque me esqueci de deixar escrito que queria ser cremado. Livra. Ainda alguém se lembrava de me enterrar. E eu não quero o meu corpo a apodrecer dentro de uma caixa enterrada. Assim não restará nada senão osso. E os ossos podem-mos enterrar à vontade. Se calhar chamei-o. Não me lembro. Lançou-se sobre mim e deitou-me ao chão. Eu chorei muito. Não morri. Não me comeu. Mas fiquei gago. O que é quase a mesma coisa. Depois passou. Não sei como. Um dia deixei de gaguejar. Quer dizer. Não sei se foi um dia. Ou se foi. Foi há tantos anos. Trinta. Ou mais. O que importa é que deixei de gaguejar. Quase. Porque às vezes ainda gaguejo. Quando estou distraído. Já contei isto. Como se a minha capacidade de falar sem gaguejar fosse obra de esforço consciente. E depois quando me distraio gaguejo. Ou quando me apanham de surpresa. Por isso falo devagar em situações de grande pressão. Pronunciando com clareza todas as sílabas. Dizem-me que a minha voz tem efeito calmante. É possível. Porque penso todas as palavras antes de as dizer. Para não gaguejar. Isso isso. O meu fígado. O que me preocupa é que é como se eu estivesse aqui. Sabem. Como se estivesse vivo. Mas sem sentir. Nem vejo o meu corpo de cima como por vezes se diz. Nem túnel de luz. Nem. Nada. Estou aqui. Como vivo. Mas morto. Porque ele já me comeu o coração. E no entanto. Foi uma patada. Acho. Deu-me uma patada no pescoço. Por isso foi tão rápido. Só aquela dorzinha. Assim. Ping. Como uma agulha espetada e logo tirada. Depois estava morto. Ainda bem. Quer dizer. Ainda bem que foi um pescoço partido. Se não me tivesse virado para fugir. Imaginem que me matava como fazem os leões na savana às zebras. Que horror. Assim foi rápido e limpo e quase indolor. Mas mesmo que tivesse doído muito. A dor só é dor quando nos lembramos dela. E eu ia morrer. Acabava ali mesmo a dor. Aquela e todas. Finito. Kaput. Depois andou a cheirar-me e voltou-me de barriga para cima. Rasgou-me a camisola com as unhas e lambeu-me a barriga durante algum tempo. Não vou contar como ma abriu e como me foi devorando as tripas. É quase erótico. O leão que me lambe e me abre e me come. E agora dorme com as patas fortes sobre mim. Sobre o que resta de mim. Ossos avermelhados. E esta cabeça que teve uma cara tão bonita. Mas sabem o que me começa a assustar. É que não me sinto morto. Porque continuo aqui. Agarrado ao que resta do meu corpo. Pensando. E vendo. Como se estivesse vivo. Mas sem sentir. E agora tenho medo. Não da morte. Porque morto já eu estou. Mas de não morrer mesmo. Porque se eu morresse mesmo era como adormecer e não acordar. Só sabemos que dormimos quando acordamos e nos lembramos de ter dormido. E agora é isso que me está a acontecer. Morri e lembro-me de ter morrido. E se me lembro de ter morrido é porque não morri. E no entanto já não sou mais do que um monte de ossos e alguma carne para o pequeno-almoço deste belo leão. Quero morrer mesmo. Deixar de ver de pensar. Largar o corpo. Porque isto. Mais valia viver. Porque vivendo eu sabia que ia morrer um dia. E agora estou morte e não sei o que me vai acontecer. Se me vai acontecer.

Risingson



I seen you go down to a cold mirror
It was never clearer in my era so
You lick a shine upon your forehead or
Check it by the signs in the corridor
You light my ways through the club maze
We would struggle through the dub daze

I see myself in there upon my lover
It's how you go down to the men's room sink
Sad we talk of how madmen think
I see myself in there upon my lover
I don't know her from another miss
I don't know you from another
See me run now you're gone...dream on

Why you want to take me to this party and breathe
I'm dying to leave
Every time we grind we know we severed lines
Where have all those flowers gone
Long time passing
Why you keep me testing, keep me tasking
You keep on asking

Toy-like people make me boy-like
Toy-like people make me boy-like
They're invisible, when the trip it flips
They get physical, way below my lips
And everything you got hoi-poloi like
Now you're lost and you're lethal
And now's about the time you gotta leave all
These good people...dream on

Nicer than the bird up in the tree top
Cheaper than the chip inside my lap top
All the variations you could do with me
Nicer than the girl up in your mind you're free

Automatic crystal remote control,
They come to move your soul

You're gonna fade into the background
Like a better smoke'll bring you back round
Like a man slide inside you my dear
Your cheap beer's filled with crocodile tears
See 'em run now you're gone...dream on

Toy-like people make me boy-like
Toy-like people make me boy-like

I found a reason
I found a reason

Dream on
Dream on
Dream on

(cantado por Massive Attack)

27.7.07

Aquilo que não se pode contar . 11 . Pó

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel direito)]



Los hechos graves están fuera del tiempo, ya porque en ellos el pasado inmediato queda como tronchado del porvenir, ya porque no parecen consecutivas las partes que los forman.

Jorge Luis Borges,
Emma Zunz

Com o passar dos dias os meus olhos já não se demoravam nas lombadas poeirentas. Eram agora passeios rápidos, carícias nervosas no papel amachucado. Porque depressa eram puxados para cima. A moldura de madeira. Não conseguia desviá-los. Não queria. Eu sabia que havia ali. Não sei. Tinha medo. De que afinal não houvesse ali nada. De que não passasse de delírios. Porque se calhar o toc toc era na minha cabeça. E se o toc toc fosse na minha cabeça. Não. Ninguém enlouquece tão pequenino. Dez anos. Ou cinco. Ou sete. Não me lembro. Só pó na minha memória. Ah. Mas só eu parecia notar esta coisa estranha. Ali não havia pó. Nem teias de aranha. Nem manchas de humidade. Nem caruncho. Era um quadrado de madeira polida. Como se alguém. Ou alguma coisa. Não era a minha mãe. Eu escoltava-a durante as limpezas. Eu sabia que ela não chegava lá. Porque se esquecia sempre da despensa. Ou porque não tinha tempo. Nem forças. Porque criava três filhos sozinha. Alguma coisa teria de ficar para trás. Eu lembro-me do olhar cansado sem esperança. E da chuva de pó que naquele dia era maior do que alguma vez. Não sei se foi isso. Não sei se. A verdade é que.

25.7.07

Muscle through

[El Greco - Retrato de senhora]

«"You know what would help?" she said. "The sound of that voice that's disappeared. The sound of the excepcional man I loved. I think I could take all this if he were here. But I can't without him. I never saw him weaken once in his life - then came the cancer and it crushed him. I'm not Gerald. He would just marshal all his forces and do it - marshal all his everything and do whatever it was that had to be done. But I can't. I can't take the pain anymore. It overrides everything. I think sometimes that I can't go on another hour. I tell myself to ignore it. I tell myself it doesn't matter. I tell myself 'Don't engage it. It's a specter. It's an annoyance, it's nothing more than that. Don't accord it power. Don't cooperate with it. Don't take the bait. Don't respond. Muscle through. Barrel through. Either you're in charge or it's in charge - the choice is yours!' I repeat this to myself a million times a day, as though I'm Gerald speaking, and suddenly it's so awful I have to lie down on the floor in the middle of the supermarket and all the words are meaningless. Oh, I'm sorry, truly, I abhor tears."
"We all do," he told her, "but we cry anyway."»
Philip Roth, Everyman

24.7.07

Aquilo que não se pode contar . 10 . O sótão

[Bosch - São Jerónimo em oração (pormenor)

Referir con alguna realidad los hechos de esa tarde sería difícil y quizá improcedente. Un atributo de lo infernal es la irrealidad, un atributo que parece mitigar sus terrores y que los agrava tal vez.
Jorge Luis Borges, Emma Zunz

abriu-se-me um medonho caixote de memórias. De papelão. Não é um baú de madeira. Porque um baú deve ter as coisas muito bem arrumadas. Postas com ordem umas sobre as outras. Sem misturas. E as memórias que me assaltam enredam-se numa mistura infernal. É um caixote desarrumado posto debaixo da cama. E se fosse um baú eu podia fechá-lo. Comprava um cadeado se não tivesse um. Depois deitava a chave fora. Como nos filmes. E nunca mais o abria. Porque este terror que me assombra os dias. É que o caixote não se consegue fechar completamente. Mesmo que o envolva em fita-cola grossa. Há sempre uma memória mais forte que lhe rasga o cartão e volta para me assombrar. Ameaça latente. Cala-te. Enquanto podes. E eu calo-me. Porque eu tenho medo. Um medo de morte.

E eu sei que só se não me calar é que. Que só vencerei o medo se. Porque eu sei que vou morrer. Se me calar continuarei a ser assombrado por esta memória. Todos os dias. E morrerei de terror. Devagarinho. Devorados aos poucos. Vivo. Sangrando a cada dia mais um bocadinho. Mas se falar. Não sei. O mais provável é que aquilo volte. E acabe de me matar. De vez. E depressa.

Aconteceu naquela tarde. Em que o Sol poente invadia o corredor. Há listas laranja de luz filtrada dançando no ar empoeirado. É o pó eterno que chove do tecto de madeira. E depois aquele calor pachorrento. Como agora. No meu scriptorium. Fechar os olhos e sonhar os dias passados. Muito quietinho. Enrolado em mim mesmo. Porque se abro os braços toco em cada uma das paredes. Agora. Se lá voltasse. Porque naquela altura eu era tão pequenino. Dez. Onze anos. Não me lembro. E aquele era o meu refúgio. Quando não queria que me vissem. Então afastava devagarinho a cortina. Para não ficar a dançar. Para não me denunciar. E depois deitava-me na cama que enchia o compartimento. Era uma despensa transformada em quarto. Não havia espaço para mais nada. Cama e algumas prateleiras na parede. Livros empilhados. Talvez viesse dali muito do pó dançante. E eu gostava de me pôr em pé em cima da cama e rolar os olhos pelos livros. Até achar uma lombada prometedora. Um livro velho. Tinha de ser velho. Ali não havia livros novos. Esses estavam em estantes bonitas na sala. No meu refúgio havia livros da infância e juventude da minha mãe. Lombadas de papel vergado. E se havia uma que me chamava a atenção eu parava os olhos. Tinha de ser uma lombada rasgada. Sem letras. Para poder ficar a pensar. O que estaria escrito naquele livro. Uma aventura. Um mistério. Não interessava. Era um livro. Se tivesse imagens. Se fosse uma enciclopédia. Mesmo se não tivesse. Mesmo se não fosse. Depois tirava-o com cuidado e por entre nuvens de pó abria-lhe as páginas cansadas e sonhava durante horas. O despertar era suave. Porque sem dar por isso já tinha fechado o livro e deitava os olhos para cima. Para o tecto de madeira em cujo centro estava a medonha moldura de madeira. Se chegasse lá. Se a abrisse. É que era uma moldura que se abria. Uma porta pequenina. Quadrada. Pendurada no tecto. Sem pó. Como se alguém a limpasse cuidadosamente todos os dias. Ou alguma coisa. E se a abrisse havia um sótão. Onde ninguém entrava há muito tempo. Onde a minha mãe dizia não haver nada. Só pó e teias de aranha. Mas eu sabia que. Porque o ouvia. Quase todos os dias. Um som seco. Como se alguém batesse com as unhas no chão. Descompassadamente. Devagarinho. Às vezes eu não sabia se era mesmo lá em cima. Ou se era dentro da minha cabeça. Quanto mais durava mais pó chovia. E eu deitava-me sem respirar. Não sei como não morria. Porque os minutos passavam e eu não respirava. Só a ouvir aquele toc toc. Para ter a certeza de que. E às vezes parecia que havia um gemido baixinho. Rebolava ao longo do tecto de madeira. Lá em cima. Isto não é uma história de fantasmas. Porque o que lá está em cima não é um fantasma. Antes fosse. Porque se fosse. Se fosse eu sabia que não existia. Mas aquilo existe. Eu sei.

23.7.07

Hic sunt leones . 2 . Nocturno

[Rembrandt - Daniel na cova dos leões]

وَتَحْسَبُهُمْ أَيْقَاظًا وَهُمْ رُقُودٌ وَنُقَلِّبُهُمْ ذَاتَ الْيَمِينِ وَذَاتَ الشِّمَالِ وَكَلْبُهُم بَاسِطٌ ذِرَاعَيْهِ بِالْوَصِيدِ لَوِ اطَّلَعْتَ عَلَيْهِمْ لَوَلَّيْتَ مِنْهُمْ فِرَارًا وَلَمُلِئْتَ مِنْهُمْ رُعْبًا
Alcorão 18:18 (*)

É um cão. Tem de ser um cão. Um cão enorme. Porque um leão. Absurdo. A esta distância e com esta luz. Mas está a olhar para mim. Vejo-lhe a luz do candeeiro reflectida nos olhos. Não pode ser. Não estamos em África. Se ele começar a andar. Porque os cães têm aquele passo rápido e lateral. Com o tronco arqueado. E os gatos. E os leões. Dançam enquanto andam. E os tigres. Se fosse um tigre era pior. Assim devagarinho ondeando o corpo. Cabeça baixa. Para cima e para baixo. Leve leve. Mas ele não se mexe. Só está ali. A olhar para mim. Nocturno. Porque só os animais nocturnos reflectem daquela maneira a luz nos olhos. Não é um cão. É um leão e eu estou morto. Um cão não levanta a cabeça e não ruge daquela maneira. Como se estivesse a vomitar o som. Nem tem aquele andar sensual. Sensual. Vou morrer devorado por um leão e são estas as imagens que me vêm a cabeça Porque. Vem em passo rápido. Deitando boca fora aqueles roncos medonhos. Não me vai comer. Porque não é assim que se comporta um leão quando caça. Exagerar posição bípede. Mas se me ruge. Deve pensar que sou um rival. Domesticado. Nunca viu outros leões. Só homens. Para quê exagerar a posição bípede. Nasceu e viveu entre. Não rujas dessa maneira mata-me come-me mas não rujas. O que faz um leão a um rival. Ataca-o e mata-o. Não me vai comer. Mas vai-me matar. E o que faz um rival fraco. Foge. Mostra que não é uma ameaça. Mas se eu fugir ele persegue-me. Porque é o instinto. Correr atrás daquilo que foge. Para comer. E eu não tenho hipótese. Qual é o meu máximo. Doze quilómetros por hora durante vinte minutos. Marca respeitável para um ser humano de trinta e cinco anos. Mas fácil para um leão jovem. Tem juba curta. Por isso é jovem. Que atinge facilmente cinquenta quilómetros por hora. Se eu levantar os braços e fizer muito barulho. Vai pensar que sou maior e mais forte e mais. Talvez tenha medo. Não tenho nada a perder. Só a vida. Que já está perdida. Amo-te. Nunca te disse. Mas amo-te. E tu sabes. E não me vais ouvir dizer que te amo. E os braços não saem. Colados pesados. Não consigo. Só esta dor no estômago. Está quase quase. Já lhe cheiro o bafo. Poucos metros. Dizem que nos passa a vida toda diante dos olhos. E a mim só me passas tu. Vou morrer com a garganta esmagada pelas mandíbulas de um leão ou com o pescoço partido ou esventrado por uma patada. E só penso no quanto te amo e que nunca tive coragem para.

---
(*) "Julgarias que estavam acordados, embora estivessem a dormir. E virámo-los do lado direito e do esquerdo, enquanto o seu cão estendia as patas à entrada. Tivesses tu posto neles os olhos, e ter-lhes-as dado as costas e fugido, e terias sem dúvida ficado cheio de medo deles."

21.7.07

Hic sunt leones . 1 . Homo est animal bipes rationale

[British Library, Royal MS 12 C. xix, fólio 6r]

En las noches el viento nos traía el rugido del león, y las ovejas del redil se apretaban con un antiguo miedo.

Jorge Luis Borges,
Abenjacán el Bojarí, muerto en su laberinto

Estas coisas não acontecem. Porque não estamos em África. E portanto isto não pode ser um rugido. É o vento que não sopra. Ou um carro com música alta. Mas não há carros. Não há ninguém. Meto estas coisas na cabeça. Um leão no parque. Absurdo. Às vezes penso que enlouqueci. Se calhar devia. Mas não. É que se estivesse um circo na cidade. Uma jaula mal fechada. Pode acontecer. Mas como chegava ele aqui. Tinha de passar por toda a cidade. Alguém o via. A esta hora já andava toda a gente em alvoroço. E a noite está serena. Mas este gemido cavo. Se não é um leão. E não é. Não pode ser. Então o que é. Demasiado serena. A noite. Ontem havia as rãs. Mas hoje. Nem carros. Este cheiro a. Não sei. Nunca o tinha sentido. A animal. Talvez. Cala-te. Não há circo na cidade. Não sejas tolo. Nem estamos em África. Então o que é isto. Agora parou. Mas era como. Assim. Um choro profundo e curto. É melhor rodear o parque. Não pode ser um leão. Mas há ali qualquer coisa. Um burro. Talvez. Parecia um burro a zurrar. Mas um burro gigante. Só que eu nunca ouvi um burro a zurrar. Nem um leão a rugir. Mas um burro no parque. Absurdo. Podia ter vindo de outro lado. Pode haver um circo noutro lado. Um leão pode andar dezenas de quilómetros num só dia. Ou são os lobos. Porque os leões passam o dia a bocejar debaixo das acácias. Há uma acácia em frente a casa. Há duas até. Não têm muito tempo para andar a percorrer dezenas de quilómetros. E a noite só agora caiu. É quando eles despertam. E é de noite que. Está ali um leão. Está ali. Estou a vê-lo. O que é que eu. Correr. Não. Se correr ele. Fingir-me morto. Deitado à beira da estrada. Não passam carros. Se passar um carro eu mando parar. Se passar um carro eu. Levantar os braços. Exagerar a minha posição bípede. Vi isso num documentário. Eles têm medo das pessoas. Mas se este for de um circo. Está habituado às pessoas. Mais perigoso. Não tem medo. Não foge. Porque tem de ser de um circo. Se fosse selvagem eu tinha uma hipótese. Parava aqui e levantava os braços. E ele fugia. Mas ele não. Está a olhar. É tão grande. O que é que eu. Cem metros. Ou menos. Não tenho por onde fugir. Continuar parado. Talvez não me veja. Estúpido. É um caçador nocturno. Caça zebras só com a luz das estrelas. Claro que me vê. Já me viu. Levantou-se e está a olhar para aqui.

Domi militiaeque . 3 . Absinto

[Pontormo - Estudo de alabardeiro]

Tão alto. Eu estive ali. Dois dias. E não me humilharam. A bolsinha onde tinha escondido os brincos. Cá está ela. Depois um dois três quatro cinco seis voltaram todos todos às suas casas. Porque eu não podia aparecer assim no quartel. Não devia. Podiam pensar. Sei lá. Um homem de brincos no início dos anos noventa do século passado. E nas duas orelhas. Maricas mariconço. Podiam pensar que eu. E depois sim. Humilhado. Como quando. Por isso tirei-os. E escondi-os naquela bolsinha dentro da carteira. Por outro lado talvez me mandassem embora. Se eu dissesse que era maricas. E que esfregaria a minha mariquice nas paredes de qualquer quartel. Porque que mais pode um maricas querer senão. E eu ontem à noite até entrei no quarto nos braços de dois homens fardados. Absinto. Com pimenta. É que a pimenta corta o travo. Parece um refresco. E quando me levantei não me levantei. Depois meteram-me num táxi e largaram-me a porta do quartel e dois militares agarraram-me um de cada lado e foram pôr-me na cama. Disseram algumas asneiras entre riso e deixaram-me sozinho no meio daquela gente toda a dormir. Mas não. Muito arriscado. Imagina que. É que podia acontecer. Não. Antes assim. Escondidinhos dentro da bolsinha. Mariquinhas. Os brincos. Não eu. Porque eu não sou maricas. Quer dizer. Sou. Mas não.

Aquilo que não se pode contar . 9 . O bafo

[Bosch - São Pedro e o doador (pormenor)]

Sospecho que en mi relato hay falsos recuerdos.

Jorge Luis Borges, La otra muerte

Agora. Está aqui outra vez. Enquanto corro os dedos pelo teclado e um sopro me faz dançar as cortinas. Bafo laranja que me inunda o scriptorium. Ou vermelho. Tanto faz. E há este silêncio. O zumbido do computador. Ou dos meus ouvidos. Só isso. Não passam carros na estrada. Não jogam à bola no corredor do prédio. Parou tudo. Estou sozinho. Tudo morto. Só os meus dedos. E o zumbido do computador. Ou dos meus ouvidos. E as cortinas que dançam. Ondeando as listas fininhas. Laranja. Vermelho. E dourado. E esta dor abafada. Há alguma coisa a sair do buraco da minha omoplata. Da esquerda. Não quero mexer. Não quero. Vou ficar parado. Sem me mexer. Como morto. Como fazem aqueles animaizinhos. Pode ser que me pense morto. Se aquilo pensa. Ah pensa. Tem de pensar. Porque se não pensasse. Parei de escrever durante. Não sei quanto tempo. Muito. Levei a mão às costas. E tive medo. Não serpenteou desta vez o meu dedo ao longo da omoplata. Da esquerda. Parou no ombro. E depois fechou-se a janela. Fechou-se. Não fui eu. Assim, CLAC. Um som seco. E eu tirei a mão do ombro. Do esquerdo. Pousei-a no coração aflito pum pum pum pum pum. High heart rate pi pi pi. Depois o silêncio tornou-se ainda mais denso. É nos meus ouvidos. O computador não zumbe assim. E agora já não ondeiam as cortinas. Só as listas. As douradas. Parece que vão saltar. E que vai aparecer. Parou tudo. Estou sozinho. Preso num buraco no tempo. À mercê daquilo. E da minha loucura. E deste bafo pegajoso. Que me lambe o pescoço e as orelhas. Quente. Como quando. Tenho medo. Se calhar. Talvez me devesse calar. Porque desde que comecei a escrever esta memória

Um minuto

[El Greco - Retrato de dominicano]

I've been thinking about you baby

almost makes me crazy
(cantado por Massive Attack)

Às vezes parece que. Sabes. Não consigo. Porque sentir-te tão perto. Almost makes me crazy. Se um dia. Se um dia só. Depois fecho os olhos. Sonhar. Deixar-me ir. Abandonar-me nos teus braços. Um minuto só. Que me pareceria toda a vida.

Quatro e quarenta e cinco. Demasiado café. Te eché de menos. Tanto. أحبك

20.7.07

Domi militiaeque . 2 . Tigre

[Caravaggio - São João Baptista]

Con otra voz dijo que la guerra servía, como la mujer, para que se probaran los hombres, y que, antes de entrar en batalla, nadie sabía quién es.
Jorge Luis Borges, La otra muerte

Ainda tivemos de cantar o hino. E eu não sei o hino. Abri e fechei a boca. Lá lá lá. Não sei quê egrégios avós. Egrégio. Que se destaca do rebanho. Do latim grex (tema greg-). Gregário. Que vive em rebanho. Segregar. Isolar do rebanho. Não gosto de rebanhos. Se fosse besta era tigre. Escondido sozinho nas sombras da selva. Ou jaguar. Não. Tigre. E saltava para o meio dos rebanhos abrindo muito muito as goelas e rugindo com tanta força. Depois os rebanhos fugiam. E eu deitava-me à sombra abrindo a boca num enorme bocejo felino. Marchar marchar. Pronto.
Finda a função segreguei-me num canto com o meu Platão debaixo do braço. Confesso. Levei-o para me armar. Para entrar no quartel e dizer. Olhem olhem. Eu leio coisas difíceis. Mas para se saber que uma coisa é difícil é preciso tê-la lido. E eu não acredito que. Não. Podia ter levado outra coisa qualquer. Menos pesada. Porque se a ideia era armar-me. Convenhamos. Platão não é difícil. O efeito seria o mesmo.

Saí do quartel e parei e olhei para trás. Como nos filmes. Afinal era só isto. Apto. Alívio. Não era disto que estava à espera. Medo e angústia. De saber que em breve teria de voltar a passar aquela porta. Ou outra. Agora fardado. Viver o terror que me assombrou toda a infância e adolescência. O quartel. Os gritos. As ordens. A hierarquia. A disciplina. A humilhação. O não ser capaz. O não ser igual aos outros. Se calhar tinha medo e angústia. Tinha. De certeza. Mas o alívio de já ter acabado. Por esta vez. Mais forte do que qualquer medo. Porque já imaginava tanta vergonha. É que podiam ter-me humilhado. Quando não tive força para levantar aquele peso. É que reparem. Eu tinha vinte e um anos. Um miúdo. E aquela mulher fardada aos gritos. Força! Está a brincar comigo ou quê! Não estava não. Eu não tinha força. Ao meu corpo só via utilidade para carregar livros e suportar olhos e cérebro. Os únicos órgãos a que reconhecia importância. Não pensem que omito por pudor outros órgãos. A esses não lhes dava qualquer valor. Nem hoje. Porque com eles não leio. Dar-me-ão prazer. Verum est. Mas maior e mais sólido prazer tiro da mente. E para isso eu não precisava de levantar pesos. E por isso o peso ficava no chão e eu não conseguia levantá-lo. Ridículo. Pensaram que estava a fazer de propósito. Porque reparem. Um metro e oitenta. Bem constituído. Vinte e um anos. Ninguém acreditava que eu não fosse capaz. Por isso não me humilharam. Se fosse hoje. Hoje tenho trinta e cinco quase trinta e seis anos. Levanto sem esforço mais de trinta quilos. Sem desassossegar a respiração. O que é que mudou em mim. A consciência da morte. O terror da decadência. Por isso luto contra o tempo. E estou a ganhar. Por enquanto. Mas naquela altura eu assim. Um dejecto abúlico e sem força. E quando me despi e me gritaram. De costas! Endireite-se homem! Mas eu estava direito. Quer dizer. Aquela era a minha posição normal. Como é que eu podia fazer a tropa com as costas naquele estado. No entanto foi quando me perguntaram pela primeira vez se eu queria ir para os Comandos. Olhei para trás incrédulo e não disse nada. Achei que o homem estava a gozar comigo. Não estava. Porque me devolveu o olhar e continuou tão sério. Depois baixou os olhos e escreveu qualquer coisa nos papéis. Podia ter-me humilhado. Mas não. Como se não tivesse reparado. Por isso aquele alívio que sufocava qualquer medo qualquer angústia.

19.7.07

Aquilo que não se pode contar . 8 . Vermelho e laranja

[Bosch - São João Baptista no deserto]

Miro mi cara en el espejo para saber quién soy, para saber cómo me portaré dentro de unas horas, cuando me enfrente con el fin. Mi carne puede tener miedo; yo, no.

Jorge Luis Borges, Deutsches Requiem

Listas verticais. Vermelho e laranja. Fininhas. Com uns fios dourados pelo meio. Agora são cortinas pequeninas. Duas. Dantes eram cortina grande grande que fazia de porta. Lambe-as o Sol ao fim da tarde. De Verão. Quando da janela do scriptorium consigo vê-lo cair cair. Durante o resto do ano é frio. O scriptorium. E escuro. E não têm outra serventia senão proteger-me de miradas alheias. As cortinas pequeninas. Enchem-me o scriptorium de uma luz fraca fraquinha. Laranja. Ou vermelha. Não sei. Cor quente. E eu gosto de me sentar à secretária sem fazer nada. Banhado pela luz laranja. Ou vermelha. E se for depois de um dia de praia. A pele quente ainda a cheirar a mar. Gozar aquele calor laranja pachorrento. Ou vermelho. Tanto faz. Sem pensar em nada. A olhar para os meus livros. Para as recordações pregadas no quadro de cortiça. Porque estas não me doem. Tanto. E depois fogem-me os olhos para as cortinhas pequeninas e eu lembro-me.

18.7.07

Domi militiaeque . 1 . Camuflado

[Géricault - Soldados feridos retirando da Rússia]

Ser inmortal es baladí; menos el hombre, todas las criaturas lo son, pues ignoran la muerte; lo divino, lo terrible, lo incomprensible, es saberse inmortal.
Jorge Luis Borges, El inmortal


Bate bate e a pele suada do Sol doido quente que me torra dentro do camuflado. Camuflado. E eu que nem fui à tropa.

O senhor sabe que existe uma unidade especial. Os Comandos. Já pensou nisso? Já pensei sim. Mas eu não quero o meu corpo de comando nos Comandos. Eu quero o meu corpo de comando fora do quartel. A rebolar numa sala de aula ou dobrado sobre um livro. Porque diga-me o senhor: que vou eu fazer na tropa? Há um amigo meu, o senhor não conhece, não adianta dizer-lhe o nome, que me faz rir muito quando me imagina a levar os recrutas em marcha pachorrenta para debaixo de um plátano, cada um com o seu Fedro debaixo do braço. O senhor já me imaginou a platonizar com os recrutas debaixo de um plátano? É de rebentar de tanto rir. Ora essa, não é nenhuma palavra feia, não é nada disso que o senhor está a pensar. Eu nem sequer gosto de fardas. Platonizar. Ora pegue lá num dicionário. Isto não disse. Pensei. Porque àqueles senhores não se dizem estas coisas. O que eu disse foi. Não. Eu quero quero o exército. É mais rápido, não é? É. Seja o exército, então.

17.7.07

Inertia creeps

Recollect me darling raise me to your lips
Two undernourished egos four rotating hips
Hold on to me tightly I'm a sliding scale
Can't endure then you can inhale
Clearly
Out of body experience interferes
And dreams of flying I fit nearly
Surrounds me though I get lonely
Slowly
Moving up slowly
Inertia keeps
She's moving up slowly
Slowly
Moving up slowly
Inertia creeps
Moving up slowly
She comes
Moving up slowly
She comes
Moving up slowly
Inertia creeps
Moving up slowly
She comes
Moving up slowly
Moving up slowly
In my home no chrome as clear as
See me now with my nearest dearest
Been there when I'm over careering
Room shifting is endearing
Between us is our kitchen
Would you found my irritant's itching
Been here before
Been here forever
Moving up slowly
Inertia keeps
Moving up slowly
Inertia creeps
Moving up slowly
Inertia keeps
Moving up slowly
She comes
Moving up slowly
Moving up slowly
She comes moving up slowly
Inertia creeps moving up slowly
She comes
There be no sound in my eidertown
Awake I lie in a morning's blue
Room is still my antenna in you
Nylon burns the bedspread with two
Gravity's zero see me stall
I bounce off walls lose my footing and fall
It can be sweet though incomplete though
And the frames will freeze
See me on all four's
It's been a long time
She comes
She comes
I want to x you
She comes
I want to x you
She comes
I caught your radio waves
I caught your radio waves
Will you take a string
Say you string me along
Say you string me along
Say inertia creeps
Inertia creeps and she comes
Say she comes
Say she comes
Say she comes
Say she comes

(cantado por Massive Attack)

16.7.07

Mar revolto

[Turner - Castelo de Norham, aurora]


Esta noite apetece-me poesia catalã.


El Temps

Tot el país cobert,
bromes al nord, als fondals.
Alguna ullada de sol
a muntanya, al migdia.
Pluges al litoral. Al cor,
com sempre, maregassa.

(Narcís Comadira)


O Tempo

Todo o país encoberto,
bruma a norte, nos vales.
Um ou outro raio de Sol
na montanha, ao meio-dia.
Chuvadas no litoral. No coração,
como sempre, mar revolto.

Aquilo que não se pode contar . 7 . Frio

[Bosch - Tentação de Santo Antão (painel direito)]

... Ernst Spengler decidiu agir como na infância: para terminar com o terror do perseguido (que continuava a sentir) a criança deveria parar de fugir, dar meia volta, e dirigir-se de frente para o seu perseguidor
.
Gonçalo M. Tavares, Jerusalém

verei que não está nada ali. Só uns pontinhos brilhantes que desaparecem quase imediatamente. Depois as trevas. Olhos deitados aos pés da cama. A ver. A ver o quê. O que não está lá. Dói-me o pescoço. De ficar ali de cabeça levantada a olhar o escuro. À espera de ver. E uma raiva frustrada. Porque não vejo nada. É que eu queria ver. Para depois morrer de horror. Pelo menos sabia que. É que assim. Este está não está. Não sei. Podia deitar-me e dormir descansado. Porque afinal parece que não está. Para quê este terror. Não há ali nada. Só os pontinhos brilhantes. Fechar os olhos e abri-los de repente. A ver se. Lá estão. Os pontos brilhantes. Só um momento. Um momentinho. A seguir desaparecem. Se calhar nunca estiveram. Partidas dos meus olhos. Mas e este frio que não é frio. Porque não está frio. Mas eu sinto. Este ar pegajoso que não me deixa respirar. Há ali qualquer coisa. Não é um fantasma. Antes fosse. Porque se fosse. Porque se fosse eu sabia o que era. Além disso eu não acredito em fantasmas. Se fosse um fantasma. Um poltergeist. Mas não é. Assim não sei. Ou sei. Se eu me levantar. E acender a luz.

You are my angel



you are my angel
come from way above

to bring me love


her eyes


she's on the dark side

neutralize

every man in sight


I love you, love you, love you...


you are my angel

come from way above


I love you, love you, love you...


(cantado por Massive Attack)

15.7.07

Epistolário XXV

[Leonardo da Vinci - Máquina voadora]

... mesmo que na carta se falasse do futuro o que estava em jogo era um processo de memória:
lembra-te que já estiveste cá fora; ou talvez melhor: não te esqueças. Era este o sentido de qualquer carta: não te esqueças!
Gonçalo M. Tavares, Jerusalém

Ρ.Α. ao seu André

Eu sei. Fiz-te sofrer. Sem saber. Porque se eu soubesse. Foi preciso morrer. E reviver na tua memória. Porque eu. Eu não sabia. Quer dizer. Eu sabia que tu. Mas não sabia que. Tu sabes. Via os teus olhos que me diziam. E as tuas mãos. Parando a meio caminho. As vezes em que se te abriam os lábios e tu ias dizer. Ou. Mas tu não. Tu tinhas medo. Quase tanto como eu. Mas eu pensava que. Não sei. Um delírio teu. Porque tu tinhas sofrido tanto. E eu pensava que. Tu sabes. E por isso nunca dei muita importância. Nunca percebi. Nunca soube. Porque tu te fechas nesse teu sorriso não sorrido. E um dia acordei morto. Na tua memória. E soube.

Eu sei. Salvei-te. Quando tudo te era negro. E os dias te eram insuportáveis e as noites te envenenavam o sono. Dei-te a vida. E mais do que a vida. Dei-te. E não percebi. Um motivo para acordares. Todos os dias. Enchi-te a alma. Mas eu não sabia. Só agora que vivo na tua memória. E me lembro. E te lembras. De ti. De mim. Todos os dias. Quando te sentas a escrever. Eu estou aqui a olhar para ti. You are my angel. E tu não sabias. Que te tinha salvado. E um dia acordaste. E eu tinha morrido.

Vou dormir. Na tua memória.

El cántaro

[Vermeer - Rapariga com jarro de água]

Insoportablemente soñé con un exiguo y nítido laberinto: en el centro había un cántaro; mis manos casi lo tocaban, mis ojos lo veían, pero tan intrincadas y perplejas eran las curvas que yo sabía que iba a morir antes de alcanzarlo.
Jorge Luis Borges, El inmortal

Sinto-me estranho. Desde aquela noite. Tão estranha. Porque eu não costumo. Tu sabes. Sento-me à ponta da mesa. Para não darem muito por mim. Depois baixo a cabeça. Para não me verem os olhos. E vou olhando e ouvindo. E quando falam comigo fico vermelho e gaguejo. Mas quase nunca falam comigo. É que não me vêem. Eu não quero. Porque eu consigo desaparecer. Apesar do meu metro e oitenta. Ninguém me vê. E eu posso ficar ali a noite toda. Rolando os olhos pela mesa. Parando aqui e ali. Sabes. A ver. E a ouvir. E se alguém me vê eu recolho o olhar. Como os caracóis. Quando lhes tocam nas antenas. Escondo-me e fico à espera. De que se esqueçam de mim. Depois deito outra vez os olhos para cima da mesa. Com cuidado. Não vá alguém roubar-mos.

Naquela noite eu não me sentei à ponta da mesa. Talvez porque. Não sei. Mudei tanto. Tão pouco tempo. Foi estranho. Não. Eu não estava estranho ainda. Foi depois. Quando deixei cair os meus olhos nos teus pela primeira vez. Então sim. Senti-me estranho. Um estranho doce. Ali estavas. E havia alguma coisa em ti. Não eram os teus olhos. Era aquilo que eu vejo neles. O teu mar.

No sé. Si alguna vez. Si algún día estaré en tus brazos. Porque a veces me parece que. Te lo digo otra vez. Te quiero tanto.

14.7.07

Bibliotheca II . Dostoiévski "Crime e castigo"

В начале июля, в чрезвычайно жаркое время, под вечер, один молодой человек вышел из своей каморки, которую нанимал от жильцов в С-м переулке, на улицу и медленно, как бы в нерешимости, отправился к К-ну мосту.
Достоевский, Преступление и наказание

O que estás a ler
Dostoiévski
O que é isso
É um escritor russo

Depois debruçava-se sobre mim e varria-me as costas com cabelos negros salgados. Havia areia. E maresia. Um conto de Dostoiévski. Não me lembro. Eu tinha de ler mais Dostoiévski. E tinha de aprender russo. Porque não queria intermediários. Para ler mesmo Dostoiévski. E Gógol. Tchékhov. Tolstói. Púchkin. Tenho ali um volume de contos de Tchékhov. Em russo. Para quando chegar o dia. Hei-de ter Crime e Castigo. Преступление и наказание. Porque não é a mesma coisa. Porque o som é diferente. E o ritmo.

Lês-me um bocadinho
Leio mas tu não vais gostar
Porquê
Porque não é para meninas da tua idade
Porquê
Porque há senhores feios e senhoras más
E fazem o quê
Porque é que tu gostas disso
Porque
Porquê
Está bem eu leio-te um bocadinho

Estava frio e eu aninhava-me debaixo de uma pilha de cobertores sentindo as febres de Raskólnikov.

Ela virava a cara e ria para a amiga. Depois pegavam nos baldes e faziam um buraco na areia. Eu ia baixando a voz e quando as achava completamente alheadas retomava a minha leitura silenciosa. Ela parava. Pousava o balde e lançava-me um olhar imperativo. Lê. Continua. Quando eu tinha quatro anos não gostava de Dostoiévski.

..................................................................

Bibliotheca

Não são apenas os melhores livros que li. São aqueles que de alguma forma
deixaram marca na minha memória. Não são prólogos à maneira de Borges. Porque eu não sou Borges. Não são recensões. São memórias. Cheiros. Sons. Cores. São os livros da minha vida.

13.7.07

قلبي لك

[Goya - Um cão]

Em árabe é parecido. Aos ouvidos de um estrangeiro, claro. Porque para um árabe não há confusão possível. Qalbun é um coração. Kalbun é um cão. قلب كلب. Portanto é preciso ter muito cuidado. Porque se eu te disser que o meu coração é teu tenho de pronunciar muito bem o qaf ق. Não vá eu, soltando um kaf ك em vez de um qaf ق, dizer que o meu cão é teu. É que eu nem tenho cão. Portanto o que te dou é o meu coração. قلبي لك Qalbî laka.

12.7.07

Epistolário XXIV

[Pieter Brueghel o Jovem - Provérbios (pormenor)]

Oh those girls are ten a plenty,
you’ve got so much more, you’ve got... you’ve got... you’ve got a wonderful personality!
(
Corpse Bride, de Tim Burton)

Ρ.Α. ao seu André

Não paras de delirar. Ainda que te avise. Ainda que saibas. Ainda que. Mas quê. Não vale a pena. Deixa-te ir. Porque se é assim. Porque se é isto que queres. Se preferes viver o sonho. E depois acordar. Sozinho. Subir. Voar. E depois cair. Sozinho. Pois sonha. Pois voa. Pois cai. Levantar-te-ás. E eu estarei aqui. Para te acolher nos meus braços de nada. Como se não te acolhesse. Mesmo se daqui não saio. Eu não posso sair daqui. Eu não estou. Nem sou.

Tenho-me lembrado daquela noite. Quando me. Tão tolo. E tu nem bebias muito. Mas eu já sei. Quando te falta a coragem. És tão tonto. Porque nem assim tens conseguido. E quando íamos beber shots. E escondíamos os copos. Lembras-te. Tu não aguentavas mais de um ou dois. Eu também não. Que meninos. Mas naquela noite não havia shots.

As mariconças não bebem shots. Os lolós. Lembras-te. Quer dizer. Aquelas mariconças não bebem shots. Aquelas que vão para aqueles sítios. Porque depois há os como tu. Que não se sentem obrigados a comportarem-se como meninas. E que fazem as coisas que os outros homens fazem (menos comer gajas: não se pode pedir tudo). Que não têm qualquer problema em assumirem a sua sexualidade. Que se sentem melhor em ambientes não sexuais. Que não se comportam como mulheres histéricas. Que até gostam de ir à bola. E eu sei que vocês são a maioria. E que depois há aquela minoria histérica. E há também aqueles que não conseguem. Tu sabes. Porque tu também foste um desses. Lembras-te. Quando andavas com miúdas. Ah mas eu sei que tu gostavas. Que não era para disfarçar. Lembras-te da C. Eu não. Porque eu não estava lá. Mas eu sei. Porque estou em ti. Na tua memória. Eu sou a tua memória. É só o que eu sou.

Talvez tenha sido porto. Não sei. Não interessa. Tu gostavas de porto. Passaste meio tonto. Tu és tonto. Sempre. Mas estavas mais. Mesmo tonto. Eu, não sei. Estava talvez encostado à parede a beber cerveja. Porque é que elas me olham com aquela cara quando peço uma cerveja. As mariconças. Tu passaste. A sorrir. Coisa estranha. Porque tu não sorris. Olhaste para mim durante não sei segundos minutos. Parou o tempo. Para ti. Vi-te chegar ao pé de mim. Abraçaste-me e eu abracei-te. E depois deste-me um beijo. No pescoço. Ou na cara. Não me lembro. Não interessa. Foi um beijo. E eu achei que tu finalmente. Que o porto te tinha. Mas não. Melhor assim. Para ti. Não sei. Às vezes penso se.

Se tu te pudesses ver. O susto nos teus olhos. Amigo. Se alguém devia estar assustado era eu. Não tu. Agarraste-te a mim e disseste desculpa desculpa desculpa. Desculpa o quê. Deste-me um beijo. De amigo. Não foi um beijo de. Apesar de.

Por isso pára. Não sonhes. Não delires. Porque tu não és capaz. Ou és. Não sei. Se calhar és. Mas e se.

Ρ.Α.

Butterfly Caught


weightless falls honeysuckle
strangers (strange this)
lights from pages
paper thin thing

protected by the naked eye
pearly sunrise

nearly worn
kneeling like a supplicant
darkened skin
afraid to see
radiate
open lips
keep smiling for me
darkened skin
afraid to see
radiate
open lips
keep smiling for me

weightless cool honeysuckle
fair skin freckles
uncut teeth
tranquill eyes
bite my lips
bite my lips
shhh
under your feet

(cantado por Massive Attack)

Dies tenebrarum et caliginis

[Iluminura do Bellifortis de Konrad Kyeser (1414-1415)]

Como se eu não. E não. Não estou. Ainda que pise devagar devagarinho estas pedras sujas. E deite ao céu os olhos mal dormidos. Não estou aqui. Mediolanum. Cidade tão. Mas tão. Assim. Como se. Fuligem negra espessa ao longe. Um chapéu negro sem fim sobre as pessoas. Se ali havia pessoas. Parecia tão. E eu percebi que tinha chegado. Não era tanto aquela teia de carris e o lento toc toc do comboio enquanto saltava de linha em linha. Nem o céu pesado lambendo prédios cinzentos. Se calhar não eram. Mas agora só me vêm à memória fachadas nuas cinzentas. Nem as pessoas amarelas com olhos pisados e cantos da boca virados para baixo. Não era isso que me dizia ecce Mediolanum. Era aquele chapéu negro. Ao longe. Não havia topos de prédios. Nem flecha de catedral gótica. Só aquela nuvem de fuligem negra espessa. E o comboio devagar cada vez mais devagarinho. Tão. Mas tão feia.
Não estou. Rebolo devagar o corpo pela cidade. Faltam tantas horas. Para. E estes pombos. Aqui não se vê a nuvem negra. Porque estou no meio dela. Agarra-se-me ao corpo. Pegajosa. Se me tivessem banhado em azeite estragado. Mãos negras. Tú me estás dando mala vida. Mano negra. Onde as terei pousado. Na nuvem. Pousei-as na nuvem. E estes pombos. Que não me vêem. E se lançam doudos suicidas. C0mo eu me lançaria. Se pudesse. Pousava esta mochila tão tão tão pesada. Trepava até lá acima ao cume do Duomo. Como se fosse osga. Eu. A osga era eu. Não o Duomo. Depois saltava e caía e abria os braços e voava como estes pombos malditos. Que se lançam contra mim como se eu não estivesse. Fosse transparente. E eu não estou. Nem sou.
Só queria ir para casa. Deixar esta cidade medonha. E estes pombos.

11.7.07

Aquilo que não se pode contar . 6 . A coita

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel lateral esquerdo)]

φανερὰ δέ ἐστιν τὰ ἔργα τῆς σαρκός, ἅτινά ἐστιν πορνεία ἀκαθαρσία ἀσέλγεια εἰδωλολατρία, φαρμακεία ἔχθραι, ἔρις ζῆλος θυμοί ἐριθείαι διχοστασίαι αἱρέσεις φθόνοι μέθαι κῶμοι καὶ τὰ ὅμοια τούτοις ἃ προλέγω ὑμῖν καθὼς προεῖπον ὅτι οἱ τὰ τοιαῦτα πράσσοντες βασιλείαν θεοῦ οὐ κληρονομήσουσιν
Gal 5, 19.21
selar
cerrar
calar
os
olhos
deixados
aos pés da cama. Cegos. Para quê. Se eu já sei. Se o sinto. Mesmo se não o vejo. E eu sei. E não consigo deixar de olhar. De me lançar nas trevas para alimentar o meu terror. Levanto o pescoço. Devadevadevagagaririnho. Para não me denunciar. Como se me estivesse a ajeitar na almofada. Mas não. Estou tolo. Tonto. Tentando ver aquilo que não se vê. Cabeça levantada queixo no peito. Tum tum tum tum coração doido. Coito. As coisas de que me lembro nestes momentos. Se fosse coito não coita aqui na cama. Tanta coita coito quase nenhum. Multum passus uix futuit. Palavra tão feia. Rouba-me a razão. O terror. Mas se eu. E se abrir agora os olhos

Aquilo que não se pode contar . 5 . Memórias

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel lateral esquerdo)]

De facto, não eram muitos os que esqueciam aquilo que lhes era roubado e que os técnicos designavam como: curado de. Estar curado não era apenas deixar de ter determinado comportamento, era ainda esquecer o trajecto que de novo os poderia recuperar.
Gonçalo M. Tavares, Jerusalém


aquilo me matasse. Preferia não acordar. Morrer. Não será pior do que. Estas noites medrosas negras de pontos luminosos. Este terror que me arranca devagar devagarinho as entranhas. Uma a uma. E um dia vou acordar sem entranhas. Corpo seco vazio. E depois já nada poderá escorrer pelo buraco na minha omoplata. Na esquerda.
Que
de
noite
corre
escorre
terror
horror
Arrependo-me de ter começado a contar. Nunca tinha. A ninguém. Nem a mim. Porque se não me contasse era como se não tivesse acontecido. E aconteceu. Porque eu contei. A mim. E agora preparo-me para contar a todos e agora acontece com mais força. A dor na minha omoplata. Na esquerda. Sinal deixado. Recordação viva da tarde em que. Não sei se. Talvez parasse. Se me calasse. E deixasse morrer a memória. Assim morta morrida. Se os conseguisse

9.7.07

Notícias recônditas do modo de proceder da Inquisição com os seus presos

[Piero della Francesca - Torturando o judeu]

«Estando nestes apertos, nem para sentirem suas penas têm liberdade os miseráveis. Mandam-lhes que não chorem, nem suspirem rijo, porque presumem que é darem sinal aos dos outros cárceres. Se dão um ai, tendo penas que os obrigam a dar tantos, é crime. Se gritam ou falam alto, culpa grave, e como tal se castiga. Lamentável caso! É delito a queixa, são as culpas os gemidos! É virtude nos ministros o afligir - e crime nos presos o gemer e queixar! Geme o ar insensível, quando o ferem, e não gemerão os homens sensíveis e racionais?! Hão-de proibir-se e castigar-se os impulsos da natureza?! Quem, se não tiver um coração de pedra, ouvirá sem lágrimas e gemidos, a quem condenam gemidos e lágrimas? Chora, suspira e geme quem sente uma dor ou padece golpes que cortam o coração, ainda para a saúde; e não há-de chorar, suspirar e gemer quem sente tantos golpes na alma? Golpes que cortam a honra, a vida, a fazenda, não são golpes nem dires que possam encobrir-se nem disfarçar-se. Oh inumanidade que não usaram com os mártires os tiranos!»

Anónimo (séc. XVII), Notícias recônditas do modo de proceder da Inquisição com os seus presos.

Pe. António Vieira, Obras escolhidas. Prefácios e notas de António Sérgio e Hernâni Cidade. Volume IV. Obras várias (II). Ed. Sá da Costa

Aquilo que não se pode contar. 4 . Minhocas oculares

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel lateral direito)]

Arturo preguntó: Cómo se le ocurrió el nombre?­ A mí no se me ocurrió. Lo puso un periodista, por error. En realidad, el Nóumeno es lo que descubre cada persona que entra. Y, a propósito: ¡Adelante, señores, pasen! Por cincuenta centavos conocerán el último adelanto del progreso. Tal vez no tengan otra oportunidad.
Adolfo Bioy Casares, Nóumeno

esquecer. Há umas drogas que fazem isso. Drogas daquelas dos médicos. Das boas. Porque há drogas boas. Que nos fazem esquecer. E se eu me esquecesse daquilo. Mesmo sabendo que. É que o meu problema é saber. Se eu não soubesse. Se aqueles pontos brilhantes não passassem de extravagâncias vasculares nos olhos. Coisas do meu interior das minhas entranhas. Como aqueles zumbidos nos ouvidos. O sangue a passar. Normal. Foi o que me disse o médico quando me queixei. Porque havia aqueles silêncios nocturnos. Quando nem gente nem máquinas. Só o silêncio pegajoso do nada. E os ouvidos zzz zz z. Depois há um cão que ladra e o coração dá um salto. Depois pára. O zumbido. É que eu às vezes já não sei o que é normal. Como aquelas sombras filiformes que me passam às vezes pela vista. É normal. Mas se eu não soubesse que era normal ficava assustado. Pensava que ia cegar. Que tinha bichos nos olhos. Minhocas oculares. Que mos comiam devagar devagarinho. E um dia eu acordava sem eles. Mas não. Não há minhocas oculares. Às vezes penso. Será que. Não. Eu sei que não são extravagâncias vasculares. Porque eu vi. E eu só queria esquecer aquilo que eu vi. Porque se eu me esquecesse. Era como se aqueles pontos brilhantes fossem coisa normal. E eu não tinha medo. Fechava os olhos e dormia sereno. Mesmo se não acordasse. Mesmo se

8.7.07

Epistolário XXIII

[Ryckaert - Homem dormindo]

En un ensayo del
Espectador (septiembre 1712), recogido en este volumen, Joseph Addison ha observado que el alma humana, cuando sueña, desembarazada del cuerpo, es a la vez el teatro, los actores y el auditorio. Podemos agregar que es también el autor de la fábula que está viendo. Hay lugares análogos de Petronio y de don Luis de Góngora.
Jorge Luis Borges, Libro de sueños

Ρ.Α. ao seu André

André deixa-te de sonhos. Porque se ele está nos teus sonhos. E está. Eu sei. Ainda esta noite esbarrámos um no outro. Num sonho dormido. Teu. Pedi-lhe desculpa pelo valente encontrão e segui em frente até desaparecer. Eu. Não ele. Sempre a olhar para trás. A tentar perceber. Porque não é fácil ver-te tão. E eu tinha de perceber. Os teus olhos de aço perdidos numa felicidade tão. Amigo. Tu não sabes se estás nos sonhos dele. Muito provavelmente não estás. Deixa-te de sonhos. Porque pior do que não sonhar. Pior é não ser sonhado.

Tu não sorris. Levantas os cantos da boca e ris com os olhos. Porque eu conheço esse teu sorriso. Vi-o tantas vezes. Aquela noite no. Lembras-te. Claro que te lembras. Já escreveste sobre ela tantas vezes. Sempre de maneira diferente. Mas as mesmas palavras. Porque tu não as podes esquecer. E por isso aqui estou. Vivo na tua memória. Quando te disse. Tu sabes. Não me faças repeti-lo diante desta gente toda. Não fiquem com ideias. Não foi nada de. O que eu disse ao André foi que gostava muito dele. Que ele me fazia tão. Que. Não conto mais. Não foi nada de. Mas são coisas de amigos muito amigos. E depois vi-lhe os olhos derreterem. Aço líquido. E ele não disse nada. Olhou-me com aquele sorriso que não é sorriso. Pareceu-me que tinha palavras presas na garganta. Que me ia dizer que. Não sei. Ias? Mas ficou em silêncio. Depois baixou os olhos. Tu baixas os olhos quando. Engoliu as palavras. Fechou os olhos durante um respirar. Quando os abriu eram aço duro. Outra vez. Pediu um porto. E depois sorriu. Mas não era o teu sorriso sorrido. Eras a cara de uma tristeza indizível. De quem tem medo de. Tiveste medo de quê?

E agora que te vejo outra vez o sorriso nos olhos de aço. Não te quero ver rejeitado de novo. Tem cuidado. Não sonhes tanto. Porque quanto mais sonhas. Mais difícil te será acordar sozinho outra vez.

Amice desinas ineptire.
Ρ.Α.

7.7.07

O sonho

[Dürer - Visão em sonho]

Heinrich afasta-se da árvore e vai para debaixo do sol para recuperar a sua sombra. Vês, aponta. Não estou morto.

Gonçalo M. Tavares,
Jerusalém

Uma oliveira. Será. Parece. Tão larga. Cabemos. Tu e eu. Debaixo. À sombra. Só nós. Só tu e eu. Mais ninguém. Nullus alius nobiscum exceptis nobis duobus. Porque eu não quero te queime o Sol te molhe a chuva.

Chegar-te a mim. Apertar-te suave nos meus braços. Sem pressa. E a minha mão no teu cabelo assim assim. Sabes. Como quando. Mas agora mais sossegado. Deixar-te um beijo pequeno nos lábios. Pequeno pequenino suave suavinho. Sentir o teu calor.

Sonho sonhado acordado.

Aquilo que não se pode contar . 3 . O grito

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel central)]

Contaré finalmente los hechos que he presenciado entre ayer y la mañana de hoy, hechos inverosímiles, que no sin trabajo habrá producido la realidad...
Adolfo Bioy Casares, La invención de Morel


que me povoam as noites e me assombram os sonhos vazios. Primeiro é só uma impressão vaga. Um peso no ar. Depois o cheiro. Intenso. Pegajoso. Quase quase doce. Mais nada. Não precisa de se mostrar. Está ali. Eu sei. É que o buraco na omoplata. Na esquerda. Vai-me doendo doendo. E só dói dói quando aquilo está ali. Tenho de o ver. Outra vez. Mesmo que isso signifique. Porque se o vir outra vez. Eu só queria arrancar este buraco na omoplata. Na esquerda. E viver. Se o vir outra vez. Talvez me mate. De vez. Depois acaba tudo. Este terror que me devora as entranhas. Se tu soubesses. Quando se torna maior aquele zumbido baixinho. E me vai arrancando devagar devagarinho os últimos fios de razão. E eu só queria que aquilo se calasse. Me deixasse dormir. Viver. Serpenteia-me a mão pela omoplata. A esquerda. Dói tanto agora. E este cheiro doce odioso. Mais forte mais perto. Por favor. Queria gritar queria

6.7.07

Gago

[Dürer - Cristo entre os doutores do Templo (pormenor)]

Mi alma no ha pasado, aún, a la imagen; si no, yo habría muerto, habría dejado de ver (tal vez) a Faustine, para estar con ella em una visión que nadie recogerá.

Adolfo Bioy Casares, La invención de Morel


Eu gaguejo sabes. Gago como um. Não sei. O que é que é um gago. Diz-se bêbedo como um peru. Tonto como uma barata. Mas gago como. Não sei. Mas não gaguejo sempre. Só quando me sinto. Quando estou distraído. Assim quando estou a pensar em outras coisas e me acordam de repente. Então gaguejo muito gago. Como se precisasse de um acto consciente para falar sem gaguejar. E se gaguejar fosse a minha natureza. Assim por exemplo quando estou à espera de que me atendam numa loja. E me distraio a olhar para quem passa. Ou a ler um folheto ou a capa de um livro. Depois chega a minha vez sem eu dar por isso e a empregada. É mais com empregadas. Curioso. Pergunta-me sim bom dia. Eu eu bebebem sessesabe eu. Não me saem as palavras. Porque eu quero aquele livro ali. Mas não consigo dizer. E fico vermelho e suo. E ela olha-me comiserada. Assim como quem diz coitadinho. Tão novo e já. Um dia foi na sala de espera do médico da asma. Eu tenho asma. Mas não tenho falta de ar. Curioso. Senhor André Simões. Eu levantei-me. Estava a ler. Sessesse. Eu queria dizer sou eu. Fiquei vermelho e comecei a suar. Ela olhou para mim com aquele sorriso que as enfermeiras fazem aos velhotes muito velhotes. E disse muito devagar. Silabando. Com aquele odioso sorriso comiserado. E o tom de voz com que se fala a uma criança. Olá senhor André. Venha comigo. Isso. Por aqui. Sim. Tenho falta de ar mas não sei. A minha anterior médica dizia olhe lá. Ela era muito bruta. Olhe lá você acha que respira bem. E eu dizia sessessessim. E ela dizia que eu só tinha não sei quanto por cento de capacidade respiratória. Mas como sempre tinha respirado mal não sabia o que era respirar bem. E por isso achava que respirava bem. Assim como quem vivesse numa ilha deserta e nunca tivesse visto cores na vida e achasse que via bem. Porque nunca vira cores. E portanto não sabia o que é ver bem. Mas achava que via bem. E via bem. Porque não tinha termo de comparação.

Eu era muito pequeno pequenino e um cão muito grande saltou-me para cima e eu fiquei gago com o susto. Depois curei-me. Ou não. Não sei. Se calhar não.

4.7.07

Nonsense

«There was an Old Man of Quebec, a beetle ran over his neck;
But he cried, 'With a needle, I'll slay you, O beadle!'
That angry Old Man of Quebec.»

Edward Lear, A Book of Nonsense

Aquilo que não se pode contar . 2 . O medo

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel central)]

Fear presides over these memories, a perpetual fear.

Philip Roth, The plot against America

se é prudente dizer estas memórias que não me deixam. Que me sangram alma e corpo. E eu já não tenho força nos músculos amedrontados. O remédio é fácil. Eu sei. Mas eu não. Não. Não tenho coragem. Tenho medo. Mais ainda do que daquilo. E entre dois medos me morro. Pudesse eu arrancar este buraco e as memórias que dele escorrem. Todas as noites. Quando me deito. E não consigo fechar os olhos. Só queria fechá-los. Mesmo que não pudesse voltar a abrir. Não há-de ser pior do que isto. Mas tenho medo. Tanto. A minha vida. As minhas noites. Há ali qualquer coisa. Indefinível. Mas ali. Medonhamente ali. Porque mo diz o buraco na minha omoplata. Na esquerda. E eu sei. É quando me dói. Devagarinho. Como se não doesse. Mas dói. Tanto. Não fecha. Não pára de crescer. E eu não consigo fechar os olhos quando me deito. Inundado de um suor frio aterrorizado que nunca antes tinha experimentado. E depois há aqueles pontos brilhantes

3.7.07

Nonsense

«There was an Old Person of Ewell, who chiefly subsisted on gruel;
But to make it more nice, he inserted some mice,
Which refreshed that Old Person of Ewell.»

Edward Lear, A Book of Nonsense

تنور ليالي

[El Greco - El soplón]

عيونك معايا
عيونك كفايا
تنور ليالي


ºayûnak mºâyâ ºayûnak kifâyâ tinawar layâlî
(cantado por Amr Diab)

تنور ليالي. Iluminam-me a noite. Os teus. Já to tinham dito. Os meus. E a mão que te passa traquina pela cabeça e te diz. Não vás. Fica mais um bocadinho. Não vás. Porque. Tu sabes. O sorriso interior que se abre para fora quando. Está bem. Eu prometo que vou treinar. Em frente ao espelho. Todas as noites. Porque me iluminam a noite.
Os
teus
olhos

أحبك



1.7.07

Aquilo que não se pode contar . 1 . O buraco

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel central)]

Afirmar que es verídico es ahora una convención de todo relato fantástico; el mío, sin embargo, es verídico.
Jorge Luis Borges, El libro de arena

Nunca tinha contado isto a ninguém. Nem a mim. Porque se mo contassem. Não pode ser. Um delírio. Essas coisas não acontecem. Aquilo não existe. Depois respiro devagar três vezes. Devagar. Lanço a mão direita. Tem de ser a direita. Sobre o ombro. O esquerdo. Com um dedo percorro a omoplata. A esquerda. Devagarinho. Rezo aos meus deuses e peço por favor. Por favor. Aqui não há nada. O dedo dedeia serpenteia abrindo caminho na pele morna. E a cada segundo que passa e não. E não o acho. Enche-se-me a alma de esperança. Afinal essas coisas não acontecem. Um delírio. Depois. É sempre assim. Acho-o. O buraco. E todas as minhas dúvidas se afogam nele. Porque se mo contassem eu não acreditava. Fantasia. Mas ele está ali. O buraco na minha omoplata esquerda. Que me diz que aquelas coisas acontecem. Que aquilo existe. Nunca tinha contado isto a ninguém. Nem sei