24.7.07

Aquilo que não se pode contar . 10 . O sótão

[Bosch - São Jerónimo em oração (pormenor)

Referir con alguna realidad los hechos de esa tarde sería difícil y quizá improcedente. Un atributo de lo infernal es la irrealidad, un atributo que parece mitigar sus terrores y que los agrava tal vez.
Jorge Luis Borges, Emma Zunz

abriu-se-me um medonho caixote de memórias. De papelão. Não é um baú de madeira. Porque um baú deve ter as coisas muito bem arrumadas. Postas com ordem umas sobre as outras. Sem misturas. E as memórias que me assaltam enredam-se numa mistura infernal. É um caixote desarrumado posto debaixo da cama. E se fosse um baú eu podia fechá-lo. Comprava um cadeado se não tivesse um. Depois deitava a chave fora. Como nos filmes. E nunca mais o abria. Porque este terror que me assombra os dias. É que o caixote não se consegue fechar completamente. Mesmo que o envolva em fita-cola grossa. Há sempre uma memória mais forte que lhe rasga o cartão e volta para me assombrar. Ameaça latente. Cala-te. Enquanto podes. E eu calo-me. Porque eu tenho medo. Um medo de morte.

E eu sei que só se não me calar é que. Que só vencerei o medo se. Porque eu sei que vou morrer. Se me calar continuarei a ser assombrado por esta memória. Todos os dias. E morrerei de terror. Devagarinho. Devorados aos poucos. Vivo. Sangrando a cada dia mais um bocadinho. Mas se falar. Não sei. O mais provável é que aquilo volte. E acabe de me matar. De vez. E depressa.

Aconteceu naquela tarde. Em que o Sol poente invadia o corredor. Há listas laranja de luz filtrada dançando no ar empoeirado. É o pó eterno que chove do tecto de madeira. E depois aquele calor pachorrento. Como agora. No meu scriptorium. Fechar os olhos e sonhar os dias passados. Muito quietinho. Enrolado em mim mesmo. Porque se abro os braços toco em cada uma das paredes. Agora. Se lá voltasse. Porque naquela altura eu era tão pequenino. Dez. Onze anos. Não me lembro. E aquele era o meu refúgio. Quando não queria que me vissem. Então afastava devagarinho a cortina. Para não ficar a dançar. Para não me denunciar. E depois deitava-me na cama que enchia o compartimento. Era uma despensa transformada em quarto. Não havia espaço para mais nada. Cama e algumas prateleiras na parede. Livros empilhados. Talvez viesse dali muito do pó dançante. E eu gostava de me pôr em pé em cima da cama e rolar os olhos pelos livros. Até achar uma lombada prometedora. Um livro velho. Tinha de ser velho. Ali não havia livros novos. Esses estavam em estantes bonitas na sala. No meu refúgio havia livros da infância e juventude da minha mãe. Lombadas de papel vergado. E se havia uma que me chamava a atenção eu parava os olhos. Tinha de ser uma lombada rasgada. Sem letras. Para poder ficar a pensar. O que estaria escrito naquele livro. Uma aventura. Um mistério. Não interessava. Era um livro. Se tivesse imagens. Se fosse uma enciclopédia. Mesmo se não tivesse. Mesmo se não fosse. Depois tirava-o com cuidado e por entre nuvens de pó abria-lhe as páginas cansadas e sonhava durante horas. O despertar era suave. Porque sem dar por isso já tinha fechado o livro e deitava os olhos para cima. Para o tecto de madeira em cujo centro estava a medonha moldura de madeira. Se chegasse lá. Se a abrisse. É que era uma moldura que se abria. Uma porta pequenina. Quadrada. Pendurada no tecto. Sem pó. Como se alguém a limpasse cuidadosamente todos os dias. Ou alguma coisa. E se a abrisse havia um sótão. Onde ninguém entrava há muito tempo. Onde a minha mãe dizia não haver nada. Só pó e teias de aranha. Mas eu sabia que. Porque o ouvia. Quase todos os dias. Um som seco. Como se alguém batesse com as unhas no chão. Descompassadamente. Devagarinho. Às vezes eu não sabia se era mesmo lá em cima. Ou se era dentro da minha cabeça. Quanto mais durava mais pó chovia. E eu deitava-me sem respirar. Não sei como não morria. Porque os minutos passavam e eu não respirava. Só a ouvir aquele toc toc. Para ter a certeza de que. E às vezes parecia que havia um gemido baixinho. Rebolava ao longo do tecto de madeira. Lá em cima. Isto não é uma história de fantasmas. Porque o que lá está em cima não é um fantasma. Antes fosse. Porque se fosse. Se fosse eu sabia que não existia. Mas aquilo existe. Eu sei.

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