6.7.07

Gago

[Dürer - Cristo entre os doutores do Templo (pormenor)]

Mi alma no ha pasado, aún, a la imagen; si no, yo habría muerto, habría dejado de ver (tal vez) a Faustine, para estar con ella em una visión que nadie recogerá.

Adolfo Bioy Casares, La invención de Morel


Eu gaguejo sabes. Gago como um. Não sei. O que é que é um gago. Diz-se bêbedo como um peru. Tonto como uma barata. Mas gago como. Não sei. Mas não gaguejo sempre. Só quando me sinto. Quando estou distraído. Assim quando estou a pensar em outras coisas e me acordam de repente. Então gaguejo muito gago. Como se precisasse de um acto consciente para falar sem gaguejar. E se gaguejar fosse a minha natureza. Assim por exemplo quando estou à espera de que me atendam numa loja. E me distraio a olhar para quem passa. Ou a ler um folheto ou a capa de um livro. Depois chega a minha vez sem eu dar por isso e a empregada. É mais com empregadas. Curioso. Pergunta-me sim bom dia. Eu eu bebebem sessesabe eu. Não me saem as palavras. Porque eu quero aquele livro ali. Mas não consigo dizer. E fico vermelho e suo. E ela olha-me comiserada. Assim como quem diz coitadinho. Tão novo e já. Um dia foi na sala de espera do médico da asma. Eu tenho asma. Mas não tenho falta de ar. Curioso. Senhor André Simões. Eu levantei-me. Estava a ler. Sessesse. Eu queria dizer sou eu. Fiquei vermelho e comecei a suar. Ela olhou para mim com aquele sorriso que as enfermeiras fazem aos velhotes muito velhotes. E disse muito devagar. Silabando. Com aquele odioso sorriso comiserado. E o tom de voz com que se fala a uma criança. Olá senhor André. Venha comigo. Isso. Por aqui. Sim. Tenho falta de ar mas não sei. A minha anterior médica dizia olhe lá. Ela era muito bruta. Olhe lá você acha que respira bem. E eu dizia sessessessim. E ela dizia que eu só tinha não sei quanto por cento de capacidade respiratória. Mas como sempre tinha respirado mal não sabia o que era respirar bem. E por isso achava que respirava bem. Assim como quem vivesse numa ilha deserta e nunca tivesse visto cores na vida e achasse que via bem. Porque nunca vira cores. E portanto não sabia o que é ver bem. Mas achava que via bem. E via bem. Porque não tinha termo de comparação.

Eu era muito pequeno pequenino e um cão muito grande saltou-me para cima e eu fiquei gago com o susto. Depois curei-me. Ou não. Não sei. Se calhar não.

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