31.7.07

Aquilo que não se pode contar . 12 . O cheiro

[Bosch - A adoração dos Magos (pormenor)]

La curiosidad pudo más que el miedo y no cerré los ojos.

Jorge Luis Borges, There are more things

toc toc toc. Naquela tarde a minha vida acabou entre espirais de pó laranja. Ou vermelho. Dançando à minha volta por cima de mim deitado de cara colada ao tecto. E às vezes levantava o braço e lançava-lhe a mão. Como se pudesse lá chegar. Tacteando o ar pastoso. Abrindo caminho por entre a chuva de pó ritmado. toc toc toc. Quebrando o silêncio da tarde muda. Surda. Surdo. Porque à minha volta só toc toc toc. Mais nada. Como se o mundo tivesse acabado e só restássemos nós. Eu. E aquilo. E eu queria gritar. Chamar a mãe. Mãe. Mãe. toc toc toc. A boca não se me abria. Todo eu confluía naquela moldura sem pó. Mudo. Surdo. Eu era olhos e mão. Lançados ao tecto. E aquele ardor nas entranhas.

Depois pus-me de joelhos em cima da cama e tudo mudou. A luz era a mesma. Filtrada pelas listas da cortina. Laranja. Vermelho. E dourado. Mas havia um cheiro novo no ar. Já não era o pó nem o bolor nem o papel. Era pegajoso. Húmido. Não era um cheiro animal. Era. Não sei. Era diferente. Laranja. Cheirava a laranja. Não ao fruto. À cor. As cores não cheiram. Mas aquilo era cheiro a cor de laranja. Como o calor. Um calor cor de laranja que me entrava pela pele adentro. Ou então. Talvez não fosse um cheiro a cor de laranja. Mas quando fecho os olhos e me tento lembrar. Pó. Laranja. E o toc toc toc. Que agora era um zumbido. Quase um riso baixinho. Anda cá sobe não tenhas medo. Não não. Isto não é uma história de fantasmas. Já disse. Mas eu ouvi aquilo. Dentro da minha cabeça. Ou era eu que. Ou era aquilo. E o meu coração parou. Pus a mão no peito e não o sentia.

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