27.7.07

Aquilo que não se pode contar . 11 . Pó

[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel direito)]



Los hechos graves están fuera del tiempo, ya porque en ellos el pasado inmediato queda como tronchado del porvenir, ya porque no parecen consecutivas las partes que los forman.

Jorge Luis Borges,
Emma Zunz

Com o passar dos dias os meus olhos já não se demoravam nas lombadas poeirentas. Eram agora passeios rápidos, carícias nervosas no papel amachucado. Porque depressa eram puxados para cima. A moldura de madeira. Não conseguia desviá-los. Não queria. Eu sabia que havia ali. Não sei. Tinha medo. De que afinal não houvesse ali nada. De que não passasse de delírios. Porque se calhar o toc toc era na minha cabeça. E se o toc toc fosse na minha cabeça. Não. Ninguém enlouquece tão pequenino. Dez anos. Ou cinco. Ou sete. Não me lembro. Só pó na minha memória. Ah. Mas só eu parecia notar esta coisa estranha. Ali não havia pó. Nem teias de aranha. Nem manchas de humidade. Nem caruncho. Era um quadrado de madeira polida. Como se alguém. Ou alguma coisa. Não era a minha mãe. Eu escoltava-a durante as limpezas. Eu sabia que ela não chegava lá. Porque se esquecia sempre da despensa. Ou porque não tinha tempo. Nem forças. Porque criava três filhos sozinha. Alguma coisa teria de ficar para trás. Eu lembro-me do olhar cansado sem esperança. E da chuva de pó que naquele dia era maior do que alguma vez. Não sei se foi isso. Não sei se. A verdade é que.

1 comentário:

Anónimo disse...

a pendência do fim traz maior folego.