20.7.07

Domi militiaeque . 2 . Tigre

[Caravaggio - São João Baptista]

Con otra voz dijo que la guerra servía, como la mujer, para que se probaran los hombres, y que, antes de entrar en batalla, nadie sabía quién es.
Jorge Luis Borges, La otra muerte

Ainda tivemos de cantar o hino. E eu não sei o hino. Abri e fechei a boca. Lá lá lá. Não sei quê egrégios avós. Egrégio. Que se destaca do rebanho. Do latim grex (tema greg-). Gregário. Que vive em rebanho. Segregar. Isolar do rebanho. Não gosto de rebanhos. Se fosse besta era tigre. Escondido sozinho nas sombras da selva. Ou jaguar. Não. Tigre. E saltava para o meio dos rebanhos abrindo muito muito as goelas e rugindo com tanta força. Depois os rebanhos fugiam. E eu deitava-me à sombra abrindo a boca num enorme bocejo felino. Marchar marchar. Pronto.
Finda a função segreguei-me num canto com o meu Platão debaixo do braço. Confesso. Levei-o para me armar. Para entrar no quartel e dizer. Olhem olhem. Eu leio coisas difíceis. Mas para se saber que uma coisa é difícil é preciso tê-la lido. E eu não acredito que. Não. Podia ter levado outra coisa qualquer. Menos pesada. Porque se a ideia era armar-me. Convenhamos. Platão não é difícil. O efeito seria o mesmo.

Saí do quartel e parei e olhei para trás. Como nos filmes. Afinal era só isto. Apto. Alívio. Não era disto que estava à espera. Medo e angústia. De saber que em breve teria de voltar a passar aquela porta. Ou outra. Agora fardado. Viver o terror que me assombrou toda a infância e adolescência. O quartel. Os gritos. As ordens. A hierarquia. A disciplina. A humilhação. O não ser capaz. O não ser igual aos outros. Se calhar tinha medo e angústia. Tinha. De certeza. Mas o alívio de já ter acabado. Por esta vez. Mais forte do que qualquer medo. Porque já imaginava tanta vergonha. É que podiam ter-me humilhado. Quando não tive força para levantar aquele peso. É que reparem. Eu tinha vinte e um anos. Um miúdo. E aquela mulher fardada aos gritos. Força! Está a brincar comigo ou quê! Não estava não. Eu não tinha força. Ao meu corpo só via utilidade para carregar livros e suportar olhos e cérebro. Os únicos órgãos a que reconhecia importância. Não pensem que omito por pudor outros órgãos. A esses não lhes dava qualquer valor. Nem hoje. Porque com eles não leio. Dar-me-ão prazer. Verum est. Mas maior e mais sólido prazer tiro da mente. E para isso eu não precisava de levantar pesos. E por isso o peso ficava no chão e eu não conseguia levantá-lo. Ridículo. Pensaram que estava a fazer de propósito. Porque reparem. Um metro e oitenta. Bem constituído. Vinte e um anos. Ninguém acreditava que eu não fosse capaz. Por isso não me humilharam. Se fosse hoje. Hoje tenho trinta e cinco quase trinta e seis anos. Levanto sem esforço mais de trinta quilos. Sem desassossegar a respiração. O que é que mudou em mim. A consciência da morte. O terror da decadência. Por isso luto contra o tempo. E estou a ganhar. Por enquanto. Mas naquela altura eu assim. Um dejecto abúlico e sem força. E quando me despi e me gritaram. De costas! Endireite-se homem! Mas eu estava direito. Quer dizer. Aquela era a minha posição normal. Como é que eu podia fazer a tropa com as costas naquele estado. No entanto foi quando me perguntaram pela primeira vez se eu queria ir para os Comandos. Olhei para trás incrédulo e não disse nada. Achei que o homem estava a gozar comigo. Não estava. Porque me devolveu o olhar e continuou tão sério. Depois baixou os olhos e escreveu qualquer coisa nos papéis. Podia ter-me humilhado. Mas não. Como se não tivesse reparado. Por isso aquele alívio que sufocava qualquer medo qualquer angústia.

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