12.7.07

Epistolário XXIV

[Pieter Brueghel o Jovem - Provérbios (pormenor)]

Oh those girls are ten a plenty,
you’ve got so much more, you’ve got... you’ve got... you’ve got a wonderful personality!
(
Corpse Bride, de Tim Burton)

Ρ.Α. ao seu André

Não paras de delirar. Ainda que te avise. Ainda que saibas. Ainda que. Mas quê. Não vale a pena. Deixa-te ir. Porque se é assim. Porque se é isto que queres. Se preferes viver o sonho. E depois acordar. Sozinho. Subir. Voar. E depois cair. Sozinho. Pois sonha. Pois voa. Pois cai. Levantar-te-ás. E eu estarei aqui. Para te acolher nos meus braços de nada. Como se não te acolhesse. Mesmo se daqui não saio. Eu não posso sair daqui. Eu não estou. Nem sou.

Tenho-me lembrado daquela noite. Quando me. Tão tolo. E tu nem bebias muito. Mas eu já sei. Quando te falta a coragem. És tão tonto. Porque nem assim tens conseguido. E quando íamos beber shots. E escondíamos os copos. Lembras-te. Tu não aguentavas mais de um ou dois. Eu também não. Que meninos. Mas naquela noite não havia shots.

As mariconças não bebem shots. Os lolós. Lembras-te. Quer dizer. Aquelas mariconças não bebem shots. Aquelas que vão para aqueles sítios. Porque depois há os como tu. Que não se sentem obrigados a comportarem-se como meninas. E que fazem as coisas que os outros homens fazem (menos comer gajas: não se pode pedir tudo). Que não têm qualquer problema em assumirem a sua sexualidade. Que se sentem melhor em ambientes não sexuais. Que não se comportam como mulheres histéricas. Que até gostam de ir à bola. E eu sei que vocês são a maioria. E que depois há aquela minoria histérica. E há também aqueles que não conseguem. Tu sabes. Porque tu também foste um desses. Lembras-te. Quando andavas com miúdas. Ah mas eu sei que tu gostavas. Que não era para disfarçar. Lembras-te da C. Eu não. Porque eu não estava lá. Mas eu sei. Porque estou em ti. Na tua memória. Eu sou a tua memória. É só o que eu sou.

Talvez tenha sido porto. Não sei. Não interessa. Tu gostavas de porto. Passaste meio tonto. Tu és tonto. Sempre. Mas estavas mais. Mesmo tonto. Eu, não sei. Estava talvez encostado à parede a beber cerveja. Porque é que elas me olham com aquela cara quando peço uma cerveja. As mariconças. Tu passaste. A sorrir. Coisa estranha. Porque tu não sorris. Olhaste para mim durante não sei segundos minutos. Parou o tempo. Para ti. Vi-te chegar ao pé de mim. Abraçaste-me e eu abracei-te. E depois deste-me um beijo. No pescoço. Ou na cara. Não me lembro. Não interessa. Foi um beijo. E eu achei que tu finalmente. Que o porto te tinha. Mas não. Melhor assim. Para ti. Não sei. Às vezes penso se.

Se tu te pudesses ver. O susto nos teus olhos. Amigo. Se alguém devia estar assustado era eu. Não tu. Agarraste-te a mim e disseste desculpa desculpa desculpa. Desculpa o quê. Deste-me um beijo. De amigo. Não foi um beijo de. Apesar de.

Por isso pára. Não sonhes. Não delires. Porque tu não és capaz. Ou és. Não sei. Se calhar és. Mas e se.

Ρ.Α.

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