21.7.07

Aquilo que não se pode contar . 9 . O bafo

[Bosch - São Pedro e o doador (pormenor)]

Sospecho que en mi relato hay falsos recuerdos.

Jorge Luis Borges, La otra muerte

Agora. Está aqui outra vez. Enquanto corro os dedos pelo teclado e um sopro me faz dançar as cortinas. Bafo laranja que me inunda o scriptorium. Ou vermelho. Tanto faz. E há este silêncio. O zumbido do computador. Ou dos meus ouvidos. Só isso. Não passam carros na estrada. Não jogam à bola no corredor do prédio. Parou tudo. Estou sozinho. Tudo morto. Só os meus dedos. E o zumbido do computador. Ou dos meus ouvidos. E as cortinas que dançam. Ondeando as listas fininhas. Laranja. Vermelho. E dourado. E esta dor abafada. Há alguma coisa a sair do buraco da minha omoplata. Da esquerda. Não quero mexer. Não quero. Vou ficar parado. Sem me mexer. Como morto. Como fazem aqueles animaizinhos. Pode ser que me pense morto. Se aquilo pensa. Ah pensa. Tem de pensar. Porque se não pensasse. Parei de escrever durante. Não sei quanto tempo. Muito. Levei a mão às costas. E tive medo. Não serpenteou desta vez o meu dedo ao longo da omoplata. Da esquerda. Parou no ombro. E depois fechou-se a janela. Fechou-se. Não fui eu. Assim, CLAC. Um som seco. E eu tirei a mão do ombro. Do esquerdo. Pousei-a no coração aflito pum pum pum pum pum. High heart rate pi pi pi. Depois o silêncio tornou-se ainda mais denso. É nos meus ouvidos. O computador não zumbe assim. E agora já não ondeiam as cortinas. Só as listas. As douradas. Parece que vão saltar. E que vai aparecer. Parou tudo. Estou sozinho. Preso num buraco no tempo. À mercê daquilo. E da minha loucura. E deste bafo pegajoso. Que me lambe o pescoço e as orelhas. Quente. Como quando. Tenho medo. Se calhar. Talvez me devesse calar. Porque desde que comecei a escrever esta memória

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