11.7.07

Aquilo que não se pode contar . 5 . Memórias

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel lateral esquerdo)]

De facto, não eram muitos os que esqueciam aquilo que lhes era roubado e que os técnicos designavam como: curado de. Estar curado não era apenas deixar de ter determinado comportamento, era ainda esquecer o trajecto que de novo os poderia recuperar.
Gonçalo M. Tavares, Jerusalém


aquilo me matasse. Preferia não acordar. Morrer. Não será pior do que. Estas noites medrosas negras de pontos luminosos. Este terror que me arranca devagar devagarinho as entranhas. Uma a uma. E um dia vou acordar sem entranhas. Corpo seco vazio. E depois já nada poderá escorrer pelo buraco na minha omoplata. Na esquerda.
Que
de
noite
corre
escorre
terror
horror
Arrependo-me de ter começado a contar. Nunca tinha. A ninguém. Nem a mim. Porque se não me contasse era como se não tivesse acontecido. E aconteceu. Porque eu contei. A mim. E agora preparo-me para contar a todos e agora acontece com mais força. A dor na minha omoplata. Na esquerda. Sinal deixado. Recordação viva da tarde em que. Não sei se. Talvez parasse. Se me calasse. E deixasse morrer a memória. Assim morta morrida. Se os conseguisse

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