28.7.07

Hic sunt leones . 3 . O medo

[Albrecht Pfister - Daniel na cova dos leões]

ἦσαν δὲ ἐν τῷ λάκκῳ ἑπτὰ λέοντες καὶ ἐδίδετο αὐτοῖς τὴν ἡμέραν δύο σώματα καὶ δύο πρόβατα τότε δὲ οὐκ ἐδόθη αὐτοῖς ἵνα καταφάγωσιν τὸν Δανιηλ
Daniel 14:32

Não houve tempo para ter medo. Não custou nada. Só aquela dor aguda. Mas quê. Nem um segundo. Nem me lembro. Era mesmo aguda ou será que. Se eu soubesse que era assim não teria tido tanto medo de ter medo. Porque não era a morte que me assustava. Era o medo. O medo que eu achava me ia devorar quando percebesse a morte sobre mim. E afinal. Se eu soubesse que era assim já teria morrido há mais tempo. Foi muito fácil. Muito rápido. Quase indolor. Vou contar como foi. Foi assim. Quando percebi que o leão ia. Não tinha nada a perder. Vi-o ali tão perto. A goela escancarada e o cheiro a carne podre. Então voltei-lhe as costas e corri. Ou tentei correr. Porque ele caiu sobre mim. Não terei dado mais do que um passo. Pescoço partido clac. Talvez devesse ter ficado parado. Não sei. Morreria na mesma. E talvez sofresse mais. Porque de costas. Mas eu já conto. Agora quero lembrar-me de outra coisa. Não foi a primeira vez que uma besta me caiu em cima. Houve aquela vez. Não me lembro bem. Era tão pequenino. Um cão negro. Era nosso e era enorme. Ou talvez não fosse assim tão enorme. Talvez fosse apenas um cão grande. Normal. Tinha um nome estranho. Não me lembro. Foi há tantos anos. Trinta. Ou mais. Eu sei que estava no quintal. E ele veio a correr. Como este leão que agora se diverte a tirar para fora da minha barriga todas as minhas entranhas. Deixá-lo. Se me matou. Tem direito. E eu prefiro assim. Fico despachado. Porque me esqueci de deixar escrito que queria ser cremado. Livra. Ainda alguém se lembrava de me enterrar. E eu não quero o meu corpo a apodrecer dentro de uma caixa enterrada. Assim não restará nada senão osso. E os ossos podem-mos enterrar à vontade. Se calhar chamei-o. Não me lembro. Lançou-se sobre mim e deitou-me ao chão. Eu chorei muito. Não morri. Não me comeu. Mas fiquei gago. O que é quase a mesma coisa. Depois passou. Não sei como. Um dia deixei de gaguejar. Quer dizer. Não sei se foi um dia. Ou se foi. Foi há tantos anos. Trinta. Ou mais. O que importa é que deixei de gaguejar. Quase. Porque às vezes ainda gaguejo. Quando estou distraído. Já contei isto. Como se a minha capacidade de falar sem gaguejar fosse obra de esforço consciente. E depois quando me distraio gaguejo. Ou quando me apanham de surpresa. Por isso falo devagar em situações de grande pressão. Pronunciando com clareza todas as sílabas. Dizem-me que a minha voz tem efeito calmante. É possível. Porque penso todas as palavras antes de as dizer. Para não gaguejar. Isso isso. O meu fígado. O que me preocupa é que é como se eu estivesse aqui. Sabem. Como se estivesse vivo. Mas sem sentir. Nem vejo o meu corpo de cima como por vezes se diz. Nem túnel de luz. Nem. Nada. Estou aqui. Como vivo. Mas morto. Porque ele já me comeu o coração. E no entanto. Foi uma patada. Acho. Deu-me uma patada no pescoço. Por isso foi tão rápido. Só aquela dorzinha. Assim. Ping. Como uma agulha espetada e logo tirada. Depois estava morto. Ainda bem. Quer dizer. Ainda bem que foi um pescoço partido. Se não me tivesse virado para fugir. Imaginem que me matava como fazem os leões na savana às zebras. Que horror. Assim foi rápido e limpo e quase indolor. Mas mesmo que tivesse doído muito. A dor só é dor quando nos lembramos dela. E eu ia morrer. Acabava ali mesmo a dor. Aquela e todas. Finito. Kaput. Depois andou a cheirar-me e voltou-me de barriga para cima. Rasgou-me a camisola com as unhas e lambeu-me a barriga durante algum tempo. Não vou contar como ma abriu e como me foi devorando as tripas. É quase erótico. O leão que me lambe e me abre e me come. E agora dorme com as patas fortes sobre mim. Sobre o que resta de mim. Ossos avermelhados. E esta cabeça que teve uma cara tão bonita. Mas sabem o que me começa a assustar. É que não me sinto morto. Porque continuo aqui. Agarrado ao que resta do meu corpo. Pensando. E vendo. Como se estivesse vivo. Mas sem sentir. E agora tenho medo. Não da morte. Porque morto já eu estou. Mas de não morrer mesmo. Porque se eu morresse mesmo era como adormecer e não acordar. Só sabemos que dormimos quando acordamos e nos lembramos de ter dormido. E agora é isso que me está a acontecer. Morri e lembro-me de ter morrido. E se me lembro de ter morrido é porque não morri. E no entanto já não sou mais do que um monte de ossos e alguma carne para o pequeno-almoço deste belo leão. Quero morrer mesmo. Deixar de ver de pensar. Largar o corpo. Porque isto. Mais valia viver. Porque vivendo eu sabia que ia morrer um dia. E agora estou morte e não sei o que me vai acontecer. Se me vai acontecer.

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