31.5.06

Sem carne

[Bosch - Tentação de Santo Antão]
a A.

Não sei se já contei isto. Falha-me cada vez mais a memória. Sinto urgência em escrever. Para não esquecer. Sei que acabarei por não me lembrar de nada. Não sei. Mas lembro-me de ti naquela tarde quente. Tristeza infinita nos teus olhos. Acabara. Não sabia como te dizer que não queria mais. Que te adorava. Mas que naquele momento não podia. Não era capaz. Não me podia dar. Não me queria dar. Idiota. Puto romântico. Guardava-me. Para quem? Para quê? Emparedava-me nos meus medos. Insegurança. Não sabia se gostavas mesmo de mim. Receava que não passasse de mais uma aventura. Gostava tanto de ti. Mas não era capaz. Queria uma coisa diferente. Impossível. Uma relação de olhares. Sem carne. Noites abafadas no teu quarto. Lembras-te? Tantalizava-te. Fui cruel, talvez. Sem o querer. Gostava tanto de ti. Dera-me como nunca a ninguém. Mas não chegava. Precisavas de mais. Não sabia como te dizer tudo isto. E agora partia. Mudo. Percebeste tudo. Sabias que partia para não voltar. Olhei para trás, como nos filmes. Estavas imóvel. Olhando-me. Tristeza infinita nos teus olhos. Não sei se por gostares de mim. Ou por te veres de novo sozinho. Ou era a minha tristeza que via reflectida nos teus olhos. Se calhar era isso. Se calhar já contei isto.

30.5.06

Asas

[Bestiário de Aberdeen, fólio 51v]

Sonhava tanto. Tomava formas estranhas. Não queria ser igual aos outros. Imaginava-me um ser sobrenatural. Largas asas de morcego que se desdobram silenciosamente. Não por qualquer tendência vampiresca. Nunca as tive. Há tanto tempo que não vejo um morcego. Gostava de animais da noite. Mochos. Corujas. Morcegos. O coaxar nocturno das rãs no tempo quente. Os silvos das corujas. Poderia ter-me dado para me imaginar coberto de penas. Mas não. Asas de morcego. Longas. Negras. Imaginário gótico. Pálido. Vestido de negro contra a lua cheia. Tinha de ser. Fazia parte do roteiro. Abrindo as asas e levantando voo. Para longe de todos. Para o mundo dos meus sonhos. Onde eu era diferente dos outros. Onde ninguém se metia comigo. Onde não ouvia os gritos. Assim me encontraram tantas vezes. Olhar perdido. Sorriso nos lábios. Podia ter um brinquedo na mão. Imóvel. Ou um livro fechado. Não vais brincar com os outros meninos? Regressava então do mundo dos sonhos. Por pouco tempo. Não aguentava muito tempo cá em baixo. De novo me vestia de negro e abria as minhas asas de morcego e levantava voo. Sonhava tanto.

29.5.06

Já vou

[Jan va Kessel - insectos e bagas]

Havia um ar pesado de Verão. Quando os sons se tornam abafados. Vindos de dentro de não se sabe o quê. Calor ardente. Era um pinhal. Apenas as cigarras perturbavam a quietude abafada. Deitado na areia suja. Os olhos postos num escaravelho enorme. Ou assim me parecia. Naquela altura tudo me parecia enorme. Seguia-o discreto, não fosse assustá-lo. Punha-lhe caruma seca no caminho. Para ver o que faria. Areia escaldante. Como consegue andar em cima deste forno. Filho, vamos embora, está muito calor. Já vou.

28.5.06

Братья Карамазовы


[Goya - Lendo]

Faltavam dez páginas. Apenas dez. Para trás mais de novecentas, em dois volumes. Podia terminá-lo ali mesmo. Peguei no rectângulo de papel que serve de marcador. Fechei o livro. Havia gente à minha volta. Parque público. Não queria que me vissem terminar o livro. É como fazer sexo em público. Verem-me na cara o prazer do desenlace. Os olhos a sonhar, perdidos. Não. Não o consigo suportar. Não termino livros em público. Não faço sexo em público. Fechei o livro e vim para casa. Aqui, na intimidade da minha cama, poderei terminá-lo. Sem ninguém me ver. Vou adiando a hora de me deitar. Não quero acabá-lo. Lê-lo-ia anos a fio. Não posso. Até amanhã.

Três anos, ou não.

Este blogue faz hoje três anos. Bem, na verdade ele tem menos de um ano. O blogue que nasceu a 28 de Maio de 2003 nada tem que ver com o que existe hoje. Nasceu como espaço de reflexão despreocupada. Cedo morreu, em menos de um mês. Não era isto que eu queria. Ressuscitei-o em Junho de 2005, ainda com o mesmo objectivo. Mas imediatamente percebi que não era esse o rumo a tomar. Aliás, ainda hoje não sei qual é o rumo. Foi-se transformando num espaço de escrita. De recordações, umas mais vagas do que outras. De desabafos, em dias mais negros. Como continuará não sei. Mas está a mudar de novo. Não sei para onde.

27.5.06

A onda

[Leonardo da Vinci - São João Baptista]

a J.

Não desistia de te recuperar. Não podia viver sem ti. A tudo me sujeitei. Passei a ser o teu amante, já não o teu namorado. O outro. Com quem vinhas ter, às escondidas das tuas novas relações. Desci tão baixo. Encontros fortuitos. Amantes proibidos. Escondidos. De quem? Porquê? Se eu te amava tanto. Mas tu tinhas-me deixado. E no entanto voltavas. Sem compromisso. Traindo as tuas novas relações. E eu aceitei. Desci tão baixo. Por amor.

Houve aquela noite, pouco tempo depois de me deixares. Noite de Ano Novo. Chamaste-me e eu fui. Não desistia de te recuperar. De madrugada saímos da discoteca. Cambaleantes. Decidimos regressar a pé, pela praia. Negro absoluto. Noite sem estrelas. Como a minha alma. Gélida. Andávamos devagar, por entre as altas dunas, tentando alcançar a praia. Não víamos nada. Guiava-nos o fragor das ondas alterosas, ao longe. Agarravas-te a mim. Frio. Ou medo. Ou outra coisa. Depois paraste. Puxaste-me para ti e beijaste-me. Há muito que não trocávamos beijos tão apaixonados. Demasiado cansado para euforias. Demasiado ferido para acreditar. Lembro-me de que me vieram lágrimas aos olhos. Amava-te tanto. O meu mundo parecia recompor-se. Sabia que não ias voltar já. Mas aqueles beijos eram bálsamos. Esperanças. Não desistia de te recuperar. Não trocámos palavras. Abraçados na escuridão. Fustigados pelo vento gelado de Janeiro. Estávamos mais perto. Já nos atacavam os salpicos das ondas furiosas. O terreno descia suavemente. Praia. Finalmente. Ondas ensurdecedoras. Invisíveis. Apertaste-me com mais força. Invadiu-me uma sensação de pânico controlado. Tínhamos de avançar. Como único ponto de referência as luzes ao longe. E o oceano furioso, à nossa direita. Avançávamos agarrados sobre a areia molhada. Cabelos encharcados. Sem falar. Agarrados num abraço que parecia eterno. Ensurdecidos pelas ondas que imaginávamos enormes. Pus-me do lado do mar. Para te proteger. Avançávamos a custo no areal inclinado. Quilómetros. Já não podia mais. Fraquejavam-me as pernas. Então veio a onda. Rugindo, feroz. Senti a torrente salgada envolver-me as pernas. Violentamente. Força bruta que me empurrava e me submergia até à cintura. Água gelada. Puxava-me para dentro. Engolia-me. E eu resistia. Fui buscar forças que não tinha e soltei-me daquelas tenazes que me puxavam lá para dentro. Para o oceano. Para a morte. Pensei em ti. Não podia morrer agora. Não podia morrer sem te recuperar.

24.5.06

A humilhação

[Andrea del Sarto - Estudo de jovem]

a J.

Ali estava à minha frente. Alto. Mais alto do que eu. Gordo. Mais gordo do que eu. Aquele a quem declaraste o teu amor. Enquanto eu pensava que estava tudo bem entre nós. Aquele que te rejeitou. Ali estava. À minha frente. Olhando-me de cima. Magnífico. Triunfante. Então é este o idiota que te aceitou de volta depois de te teres arrojado aos meus pés. Diziam-no os seus olhos, não a boca. Essa entreabria-se escarninha. Cumprimentou-me. Sorrindo condescendente. Ouvi falar muito de ti. Eu tinha de sorrir. Não podia mostrar a minha dor. Não te queria perder. Estava disposto a tudo. Até a isto. Não compreendias. Não aconteceu nada, dizias. Pois não. Porque ele não quis. E eu tinha de o suportar. Ali. À minha frente. Ignorava-me, ostensivamente. Ou deitava-me olhares trocistas. O que lhe terás dito de mim. Como podes não compreender a minha dor? Mas não aconteceu nada. Pois não. Porque ele não quis. Já não eram só olhares. Dirigia-me agora palavras carregadas de segundos sentidos. Insultava-me. Eu tinha de sorrir. Fingir que não percebia. Responder educadamente. Garganta apertada. Estômago revolto. Tu não compreendeste. Nunca. A dor. A humilhação. Aquela presença. Alto. Magnífico. Poderoso. Não podia suportá-lo. E porém tinha-te aceitado de volta. Tinha-te perdoado. Perdoar o quê, se não aconteceu nada? Pois não. Porque ele não quis. Devia ter-me ido embora. Ter-te deixado. Não era capaz. Achava que não era capaz de viver sem ti. E assim suportava tudo. Aquele homem. Olhando-me de cima. Humilhando-me. Nunca percebeste.

Qui uenit ad me non esuriet

[Bosch - São João Baptista]

Fui aprendendo a viver neste deserto. Não um deserto de areias ardentes. Um deserto pedregoso. Habitado por pequenos animais. Semeado de plantas esparsas. Com raros oásis que só eu conheço. Alguns secam. Trato de procurar outros. Não me dou mal, aqui. Gosto do meu deserto. Para quê um rio caudaloso quando um riacho me mata a sede. Para quê gordos bois quando gafanhotos e mel me saciam. Fui ganhando amor a este deserto. Às suas pedras. Subo as escarpas mais altas e olho em volta. Nada disto é meu. Ainda bem.

23.5.06

Lembras-te?

[Cristoforo Roncali - Anjo segurando livro]

à memória do Rui

Às vezes sinto que não te dei tudo o que merecias. Salvaste-me a vida, lembras-te? Não, se calhar não te lembras. Porque nunca chegaste a saber. Reencontrámo-nos quando eu achava que a minha vida já não fazia sentido. Eram dias negros. De desesperança. Acordava e não me queria levantar. Tomado de angústia. Nunca te contei isto, pois não? Nós falávamos pouco. Sobretudo falávamos pouco de nós. Mas tu sabias. Tinha escrito uma carta de despedida. Não era uma carta. Era um conto, que até foi publicado. Uma despedida em grande. Não queria mais. Não quero mais. A dor era insuportável. E não tinha cura. Eu achava que não tinha cura. Queria terminá-la. Libertar-me. Depois tu apareceste. Com aquele sorriso que não se percebia muito bem se era ingénuo se trocista. A tua amizade desenfreada. Não, nunca te contei isto. Ensinaste-me que a vida é simples e bonita. Aceitaste-me como eu era. Mostraste-me que há tragédias que não o são se as olharmos com mais cuidado. Deste-me a esperança. Nunca mais vi o mundo da mesma maneira. Lembras-te? Claro que te lembras. Não vou escrever mais. Pode haver quem me esteja a ler. Continuo o puto tímido e medroso. Há coisas que são só nossas. Que não quero que os outros saibam. Porque deixariam de ser só nossas. Digo-te apenas que me salvaste a vida. Mas agora não estás aqui. E fazes-me tanta falta.

21.5.06

Abençoado

[Hoffmann - Flores e escaravelhos]

a C.

Preparou com todo o cuidado o dia da Bênção das Fitas. Um puto. Vinte e um anos, curso acabado. Agora vinha o dia da Bênção. Era um dia importante. Fez a mala, despediu-se da mãe com um beijo. Ficaria de véspera em Lisboa. Invadia-o uma tremideira incómoda. Esperara tanto tempo por isto. Apressou-se, não fosse perder o comboio e ficar em terra. Não, isso nunca. Não podia ficar em terra. Afinal era um dia importante, o dia seguinte. Demasiado importante. A roupa fora escolhida com todo o cuidado. Água de Colónia do supermercado. Não havia dinheiro para mais. Nem gosto. Era um rapaz simples. Nem feio nem bonito. Tinha algum cuidado com a aparência, mas sem exageros. Gel no cabelo muito curto. Óculos redondos pequeninos. Não iam além disso as suas preocupações com acessórios estéticos. A roupa era fácil de comprar: preta, sempre. Se não houvesse preta, então satisfazia-se com negra. Por isso a mala foi fácil de arrumar. E sobretudo de carregar. Era um dia importante. Que achara que nunca iria acontecer. O coração batia-lhe frenético quando o comboio entrou no túnel do Rossio. Toque-toque das rodas a bater nas juntas de dilatação. Longos lhe pareceram aqueles cinco minutos. Demasiado. Tentava ver o negro húmido, uniforme, lá fora. Mas só via a sua própria imagem nervosa, reflectida na janela.

Encaminhou-se para a casa do seu amor. Parece piroso, dito assim. Não é. Era o seu amor. O seu mais que tudo. A luz da sua vida. Todos os lugares-comuns. Era a primeira vez que achava que amava. Era um rapaz simples. Rude, crescido e reprimido em cidade de província. Ingénuo. Muito. Era o amor da sua vida, e com ele passaria aquela noite. Véspera de tão importante dia. Bairro Alto. Frágil. Nova. Os sítios de sempre. Noite longa. Bem regada. Bem fumada. Bem beijada. Foram para casa tarde. Cheiro a álcool e tabaco. Deitaram-se enrolados um no outro. A ouvir música. MC Solaar. Lopes Graça. Beijos longos. Como se pareciam amar. Dormiam no chão. A cama revelara-se demasiado frágil para aguentar os dois. Não é amanhã a bênção das fitas da tua universidade? É. Adormeciam entre palavras sussurradas. Sem nexo. Quase de madrugada. Talvez tivesse sido melhor deitar-me mais cedo, pensou antes de adormecer. Afinal amanhã é um dia importante.

Acordou cedo. Quase não dormiu. Vestiu a roupa que tão cuidadosamente escolhera para a ocasião. T-shirt preta. Calças de ganga pretas. Botas DocMartens. Não, isso foi depois. Antes de as calçar deitou-se ao lado do seu amor, da luz da sua vida. Acordou-o com beijos suaves. Já te vais embora? Não, claro que não. Enrolaram-se, abraçados. Toda a manhã. Sussurrando palavras tolas. Trocando beijos preguiçosos. Chovia. Então riu-se sem motivo aparente. De que te ris? Dos parvos vestidos de Drácula, ali a abanarem as fitas, debaixo de chuva. E eu aqui, contigo. Amo-te tanto. Já imaginaste o cardeal, todo encharcado? E se vem uma rajada de vento e lhe leva o chapelinho? Riam, felizes, entre beijos. Assim se deixaram ficar até a fome os obrigar a levantar. Aproveitando a manhã cinzenta. Era um dia importante. Acordavam juntos. Pela primeira vez.

19.5.06

Ei-los

[Bosch - Dois monstros]

Vejo-os no horizonte. Preparam a investida final. Eu sabia que voltariam. Quem sabe mais fortes. Por enquanto são apenas batedores. Mas sinto o fedor dos outros, lá longe. Não tem fim. Não acaba nunca. Voltam sempre. Quando parecem escorraçados de vez. Feras feridas. Encolho-me no meu forte. Mantimentos. Não consigo lutar, já. Cansado. Desisto. São muitos. Vejo-os ao longe. Massa informe. Negra. Congregam as tropas para o ataque. O assalto final. Inevitável. Mantenho-me sereno, apesar de tudo. Já sabia que voltariam. Medo. Não tenho com que me defender. Por isso encolho-me. Escondo-me. Em vão. Sabem que estou aqui. Rugido medonho. Mesmo aqui ao lado. Já tomam posição no terreno. Ei-los.

Amentia

[Bosch - Extracção da Pedra da Loucura]

Acabarei louco. Talvez não louco furioso. Mas louco. Já a sinto chegar. A loucura. Acabarei encolhido num canto. Riso nervoso. Não. Olhar assustado. Leão acossado. Não serei internado. Enlouquecerei em casa. Sozinho. Acabarei louco. Não num asilo. Mas louco. Andarei leão enjaulado para trás e para a frente entre o escritório a sala e o quarto. Tirando e voltando a arrumar os livros nas estantes. Já o faço às vezes. Enlouqueço. Darão pela minha falta. Mas moro demasiado longe. Ninguém me virá visitar. Demasiado longe. Terão compaixão de mim. Mas deixar-me-ão entregue à minha loucura. Acabarei louco. Sozinho. Mas louco.

Povo que lavas no rio

[Bassetti - São Sebastião e Santa Irene]
a R2

Era escuro. Quente. Despojado. Atraía-me irresistivelmente. Ali começava e terminava a noite. Quase sempre sozinho. Esperava que o bar fechasse, e aproveitava a tua boleia. Oferecias-me cervejas. Sem a patroa ver. Se ela sabe ainda me lixa. Toma lá. Sentava-me ao balcão a fumar cigarros e a beberricar cerveja. Não me lembro se gostava da música. Não era isso que me levava lá. Gostava da tua companhia. Dos teus humores inconstantes. Olhos melancólicos. Rosto fechado que se desfazia em gargalhadas incontroláveis sem razão aparente. Silêncios prolongados a que se sucediam torrentes de palavras. E cantavas, atrás do balcão. Uma noite cantaste Amália, depois de um longo silêncio. Baixinho. Ausente. Pareceu-me ver-te lágrimas. Estás bem? Não. Depois rias-te. Toma lá mais uma cerveja. Eu não gostava de cerveja. Mas não recusava. Não recusava nada de ti. Gostas de Amália? Não, não gosto de fado, mas este é diferente. É bonito. Caiu-te da cara o sorriso. Tu também és diferente. Diferente de todos os que por aí andam. Não soube o que responder. Não percebi se era um elogio. "E talhas com o teu machado as tábuas do meu caixão". A voz mal se ouvia já. O que tens? Voltaste-te lentamente. Via-te agora o perfil angustiado. O que tens? Sabes que sou teu amigo. Demoraste algum tempo a responder. Não te preocupes. O que tenho não tem solução. Ninguém me pode ajudar. Só a morte. Olhaste-me de frente. Gargalhada. Desconcertante. Vamos embora rapaz, que já se faz tarde.

18.5.06

As velhas

[Vermeer - Mulher segurando balança]

Duas velhas muito velhas. Em silêncio. Bonitas. Bem arranjadas. Mas muito velhas. Sentadas lado a lado. Olham em frente, para lado nenhum. Pareceriam gémeas, não fosse uma ser muito mais alta do que a outra. Não falam. Alheadas do rebuliço que as envolve. Uma brinca com uma garrafa de água vazia. A outra tamborila a mesa com os dedos. Não estão aborrecidas. Fazem companhia uma à outra. Talvez se conheçam há muito tempo. Muito. Muito velhas. Muito. Talvez irmãs. Uma vira-se lentamente para a outra como se fosse dizer alguma coisa. Mas não. Sorri e regressa ao exercício repercutório. Olha em frente. Não sei para onde. A outra estica os lábios finos contornados a lápis. Sorriso invisível. Por momentos larga a garrafa de água vazia. Depois retoma o olhar vago. Em frente. Tranquilas. Duas velhas muito velhas. Muito. Mesmo muito. Não precisam de palavras.

16.5.06

Frustração

[Bosch - Alegoria da Gula e da Luxúria]

Aqueles dois ou três anos que se seguiram à minha estrada de Damasco foram de deslumbre e frustração. Abria-se-me um mundo novo de sentidos. Deixara de ser o adolescente afogado em acne, rejeitado pelas raparigas do liceu. Era agora quase um homem. Desejado por muita gente. Sem acne. Quase magro. Mas desconfiado. Como era possível. Ainda há tão pouco tempo fora sucessivamente humilhado. Não tinha dado por isso, mas mudara. Muito. Talvez fosse a imagem pouco ortodoxa que então exibia, nas roupas, nos cortes de cabelo, nos brincos. Afinal as mudanças físicas não tinham sido tão radicais. Mantinha até uma cara de miúdo impúbere. Mas agora sem acne. Ou então a pose inacessível que criara na adolescência como muro de protecção. Escudo de um carácter demasiado introvertido, mesmo misantropo. Inseguro. Que agora exacerbava até aos limites. Rapaz quase homem, vindo da província para a capital. Tinha medos. Exorcizava-os ostentanto o ar mais inacessível. Enigmático, diziam de mim alguns. Como pode ser tão enganadora a imagem que projectamos.

Desejado por muita gente. Sem acne. Quase magro. Mas desconfiado. Dava-me prazer esta nova condição. Brincava. Jogos de sedução inconsequentes. Não importava com quem. Raparigas. Rapazes. Não me definia sexualmente. Mantinha uma ambiguidade confortável. Que me permitia jogar em todos os campos. Inconsequente. Tinha medo. Tinha medos. Não entendia este novo mundo. Dava-me completamente, mas apenas até ao limite da sedução. Não concretizava estes jogos cruéis. Por medo. Gato e rato. Onde o rato fugia sempre.

Até àquele dia. Estrada de Damasco. Fiquei aterrorizado. Tinha passado os limites que para mim mesmo estabelecera. Perdera a inocência. Alguns beijos apenas. Mas a minha vida mudou. Era isto que queria. Mas não. Não era isto. Ou era. Durante um ano subi ainda mais os muros que me cercavam. Jogo do toca e foge. Levava a sedução até limites cada vez mais ousados. Dava-me mais do que antes. Mas no último momento fugia com mais terror. Refugiava-me na minha impassibilidade inacessível. Crescia, no entanto, o desejo dentro de mim. Experimentar outra vez. Deixar-me ir. Afinal era isto que eu queria. Não podia continuar nesta reclusão. E entreguei-me de novo. Foram então anos de deslumbre. De excessos. Excessos contidos. Beijos. Carícias. Bastava-me isso para aliviar a luxúria comedida que então me invadia. Retomava os antigos jogos de sedução. Agora mais cruéis. Inflamando de desejo. Mas contendo-me. Frustrando-me. A mim e aos outros.

15.5.06

Aviso

A partir de hoje os textos ficcionais e as citações de outros autores terão lugar noutro blogue, o Otium.... É lá que estão as ficções que ultimamente tenho vindo a publicar aqui.

Aqui, no velho "Memento...", continuarei este esforço de recordação e reconhecimento. Para quem tiver paciência.

14.5.06

Vos estis sal maris

[Pontormo - Estudo de rapaz nu]

a J.

Está frio. Vamos na mesma? Praia deserta. Mar revolto. Lançamo-nos no oceano gelado. Cinzento. Os ossos doem. Custa a respirar. Ondas rugientes de espuma branca. Medonhas. Enrolam-nos num bailado violento e cospem-nos de volta à praia. Fugimos a correr, arrepiados de frio, para onde não nos possam alcançar. Mais tarde haveremos de nos deitar numa tenda quente. Sem tomar duche. Para sentirmos o sabor do sal no corpo um do outro. Lembras-te. Sal. Corpos salgados enrolados num amplexo interminável. Maresia. Calor ardente. Como a nossa paixão. Acordámos banhados em suor salgado. Ainda abraçados. Mas isso seria mais tarde. Agora tremíamos de frio. Deitados na areia. Débil Sol de Abril rompendo entre as nuvens. Ou seria já Maio. De novo deitados na areia. Olhando o céu cinzento gelado. Ardendo de desejo um pelo outro. Mas agora sabíamos. A sal.

Domi militiaeque VIII

[Jan van de Capelle - Calmaria]

Conversa amena. Espaçada. Junta-se-nos um terceiro rapaz. Olho a paisagem crepuscular. Nostálgico. Em volta os gritos e risos dos restantes mancebos. Sim, sou um mancebo. Agora já não me intimidam. Deixo de falar. Não tiro os olhos da janela. Comboio lento e resfolegante. Instala-se-me uma paz repousante. Quero chegar a casa, mas não tem de ser já. Tranquilo. Campos escuros. Cai a noite. Frio. Sou outro.

Domi militiaeque VII

[Arkhip Kuindji - Mar com barco à vela]

Ah, estás aí! A pensar em quê? É o meu amigo moreno que me acorda. Palmadas nas costas. Vamos embora, rapaz. O portão do quartel está aberto, de par em par. Saímos devagar. Melancolia. Volto-me de novo para o quartel. Não. Convento. Deixo-me ficar uns segundos a olhar para aquelas pedras geladas. Nostalgia. Como num filme. Acabou. O pesadelo que nunca existiu. O dia continua cinzento. Frio. Sem palavras dirigimo-nos para o miradouro. Lá em baixo, Coimbra e o Mondego. Invade-me uma súbita euforia. Dou uma corrida. Para longe do quartel. O meu amigo moreno ri-se e corre atrás de mim. Dois putos. Comecei uma nova vida. Tranquila. Paz.

Domi militiaeque VI

[Jacques Callot - Vista de uma montanha]

Excitação incontrolável. Estamos quase a ser libertados. Afinal era só isto. Não me humilharam. As humilhações que sofri fui eu que mas auto-inflingi. Para um homem de vinte e um anos normal nenhuma daquelas situações seria humilhante. Para mim foram. Por culpa minha. Não me preocupo já com a incorporação. Ainda tenho dois anos de Ramo Educacional para fazer. Depois talvez um mestrado. Mais adiamentos virão. Agora à incorporação. Não me preocupo. A minha vida mudou. Aprendi a martirizar-me apenas com o presente. Sofrer com o futuro nunca mais. Uma onda de optimismo. Nunca carpe diem me fez tanto sentido. Para quê preocupar-me com coisas que ainda não aconteceram? Andei toda a infância e adolescência aterrorizado com a perspectiva da inspecção militar. Para quê? Não foi pesadelo nenhum. Não tenho pressa de sair. Quero voltar para casa, sair do quartel. Mas não tenho pressa.

13.5.06

Domi militiaeque V

[Baccio Bandinelli - Estudo de dois homens]

Como um murro no estômago. Regressou o pesadelo. Alinhados! Serão chamados três a três. Despem-se e dirigem-se ao médico. Não quero. Não consigo. Não consigo lidar com a nudez. Nem com a minha nem com a alheia. Não sou capaz. Quero ir embora. Vão-me humilhar. Examino mentalmente o meu corpo, centímetro a centímetro. Costas nuas contra as pedras geladas. Tremo de frio. De terror. O que tens? É o meu amigo moreno. Deve ter um nome começado por A. Estamos ordenados alfabeticamente. Ao meu lado. Não o tinha visto. Nada. Tenho frio. Chama-nos. A sala está aquecida. Há um vestiário discreto. Dispo-me. Olha, estás aqui! Um primo afastado. Não me lembro de como se chama. Olhamos embaraçados um para o outro, mantendo os olhos bem levantados. Adeus, até à próxima. Veste-se rapidamente e sai. E agora. Não sou capaz. Não consigo sair daqui. Por favor. Poupem-me a isto. O senhor aí, faz favor de se despachar. Humilhação terceira. Saio e sento-me no banco onde está o meu amigo moreno e outro rapaz. Sou o último a ser examinado. Não reparam em mim. Alívio. Endireite as costas homem. Não consigo, tenho um problema de coluna. Escoliose. Muito bem. Já pensou em ir para os Comandos? Tem corpo para isso, homem.

*


Acabou. Só falta sabermos os resultados. Não tenho qualquer esperança. Serei dado como apto. Até me querem nos Comandos. Apesar da falta de força. Isso exercita-se. Não quero. Somos chamados um a um. Espera-nos, numa salinha pequena, um oficial. Pergunta-me se quero fazer o serviço militar. Não. Mas está apto, vai ter de o fazer. Marinha? Exército? Força Aérea? Exército. Dura menos tempo. Não está interessado em ingressar nos Comandos? Não. Estamos conversados.

*

Apto. A palavra que não queria ouvir. Mas que sabia inevitável. Devia estar em desespero profundo. Não. Tranquilo. Feliz, até. Acabou. Dentro de horas estou em casa outra vez. Acabou. O pesadelo de tantos anos acabou. O pesadelo que não o foi.

Domi militiaeque IV

[Piranesi - O poço]

Silêncio. Como se o pressentíssemos. O portão move-se. Primeiro com vagar. Depois com violência, de par em par. Silêncio. Só os insectos fazem ressoar o ar abafado. E os passos. Bélicos. São dois. Jovens. Começou. Aquilo que receava desde a infância. O pesadelo. Lançam sobre nós olhares gelados. Parece-me que se detêm em mim mais do que nos outros. Paranóia. Nem devem ter reparado em mim. Gritam duas ou três ordens. Alinhados, em silêncio, ouvimos a palestra improvisada. Há uma agressividade estudada, falsa. O militar esforça-se por não sorrir. Leve descompressão. Se calhar não é tão mau. Este é simpático. Somos separados em dois grupos. Os que têm 12º ano ou mais seguem com um dos militares. Os restantes com o outro. Passo o portão. Começou. Já lá estou dentro. Agora estou às ordens deles. Podem fazer de mim o que quiserem. Já não me importo. Já não posso sair daqui. Portão fechado.

*

Tratam-nos com deferência e simpatia. Descompressão. A agressividade ficou do lado de fora do quartel. Convento. É um convento transformado em quartel. Todos em fila. Fazem favor de urinar no copo e depois trazê-lo à enfermeira. Humilhação primeira. Há quem não consiga, com os nervos. Passo com distinção esta primeira prova. Ainda me esperam outros exames. Aos olhos. Aos ouvidos. Vejo mal, mas não suficientemente mal para não passar na prova. Aos dentes. Tudo no sítio. Sangue. Pulmões. Exaustivo. Se tiver alguma doença, detectá-la-ão. Isto devia aliviar-me. Angústia. Terei alguma doença? Fumo muito. Pulmões negros. Algo pior? Suo descontroladamente. Sempre tive cuidado. Sempre sexo seguro. Mas e se. Não se pega com beijos. Mas e se. Não era este o pesadelo da minha infância. Estou no meio dele. E afinal não custa nada. Eclipsado por pesadelo maior.

*

Mais força! Não me diga que só consegue dar isso! Não consigo. Humilhação segunda. Não faço desporto, lamento. Uso as mãos para escrever, as pernas para andar. Não corro. Sou grande, encorpado. Mas não tenho força. Lamento. Primeira prova física em que tenho resultados negativos. Não tenho força. Nunca exercitei os músculos poderosos que um pediatra um dia profetizou serem os de um futuro atleta de alta competição. Quem sabe. Já não vou a tempo. Vinte e um anos. Joguei à bola uma única vez na vida. Não faço uso desta impressionante musculatura. Músculos para quê. Só os dos olhos. A ler. E os das mãos e braços. A segurar os livros. A escrever. Olhares de piedade e gozo. Não me importa. Não tenho vergonha disto. Quem são vocês para se rirem da minha falta de força? É ridículo um matulão de um e oitenta e cinco não ter força. Quero lá saber. Força para quê. Não me faz falta. E vocês, conseguem ler Séneca no original?

*

Última prova do dia. Psicotécnicos. Olá. Está alguém a falar comigo. Há um rapaz moreno a sorrir. Mete conversa. Está sozinho, como eu. Mas conhece gente ali. Queres vir jantar connosco, dar uma volta por aí? Claro. No quartel, para poupar dinheiro. Conversamos com alguns oficiais. Gente boa. Aquele que nos recebeu em tom agressivo. Prestável. Acessível. Começo a ganhar afeição a este antigo convento e aos seus habitantes. Fim de tarde. Passamos os portões. Levamos braçadeiras que não podemos perder. A vista sobre Coimbra, lá em baixo, é espantosa. Não tinha dado por ela, quando cheguei. Nem eu. Velhos amigos feitos em uma ou duas horas. Lá em baixo espera-nos um grupo. Temos hora de chegada ao quartel, não podemos exagerar. Há ali muitas caras conhecidas. Gente que me habituei a ver nos corredores da escola mas a quem nunca tinha falado. Absinto com pimenta, já provaste? Corta o sabor a álcool. Regresso em braços ao quartel. Lanço-me sobre a cama. Não me lembro de mais nada.

*

Acordar pá! Acordar caralho! Têm 15 minutos para se despacharem. Não consigo tomar duche, não há tempo. Lavo-me como posso. Mal. Desconfortável. Não consigo não tomar banho. Sinto-me viscoso. Cheiro mal. Dói-me a cabeça. Absinto com pimenta. Mais exames médicos. Faça favor de abrir os braços. Cheiro mal, não me deixaram tomar duche. O médico faz um gesto de repulsa. Eu sei que cheiro mal. Se me deixarem eu vou tomar um duche. Assim não lhe ofendo o nariz. Não o digo. Agora têm de esperar até serem chamados. Fome. Não me lembro de ter comido. A espera arrasta-se. O dia está cinzento. Convento gelado. Costas nuas contra as pedras frias da parede. O militar responsável pelo nosso grupo está preocupado connosco. Têm de almoçar. Vou ver o que posso fazer por vocês. Afinal é tudo boa gente, aqui. Salsichas e arroz. Sopa não identificável. Lugar livre ali ao canto. Onde está o meu amigo moreno? Lugar livre. Como sozinho. Tanto melhor. Não conheço os vizinhos de mesa. Será que me enganei. Arroto violento. Risos bestiais. Enganei-me. Mesa dos que não têm 12º. Levanto-me, despedido por um coro de arrotos, e avanço para a sala seguinte. Lá está ele! Tinha-me enganado no refeitório, desculpa.

*

Alívio. Paz. Porquê tantos anos de terror? Tenho horror à autoridade discricionária. Mas não é isso que se vê neste quartel. Há autoridade. Há regras. Estritas. E há bom-senso. Respeito. Não é suficiente para me fazer desejar a vida militar. Mas basta para terminar um pesadelo que vinha desde a infância.

Domi militiaeque III

[Giovanni Bellini - Força]

Acossado. Leão acossado. Como me comportei no comboio... Os desafios. Acossado por gente que não era a minha. Gente que se calhar, afinal, nem dera por mim. Tudo na minha cabeça. Coro de vergonha. Pensarão que é do calor. Vivera até então num isolamento quase absoluto em relação à minha geração. Leão solitário lançado para o meio da multidão. Não os percebia. Nunca soube como se comporta um grupo de rapazes. Porque nunca tive um. Não o lamento. Via-o agora pela primeira vez. Interpretava o seu comportamento normal como ataques à minha solidão voluntária. Mas não. Afinal ninguém me abordou. Fui eu. Eu. Lancei olhares de desafio. Mostrei as solas das minhas DocMartens. Idiota. Espreguicei-me para exibir o meu metro e oitenta e cinco. Que terão pensado de mim? Louco. Tão louco. Como sempre. Agora tudo é mais claro. Suando copiosamente no pátio, à espera de que o portão do quartel abra. Coração dói de tanto bater. Olho em volta. Já não me parecem ameaçadores. Vejo angústia disfarçada com risos nervosos. São iguais a mim, afinal. Estamos todos juntos. Unidos na ansiedade. Olhamos regularmente para o portão, apreensivos. Nunca mais o abrem. Que me farão? Vão humilhar-me. Gozar comigo. Acossado. Leão acossado. Pelos meus fantasmas.

Domi militiaeque II

[Agnolo Bronzino - São Sebastião]

Tenho de levar algo para ler. Κατέβην χθὲς εἰς Πειραιᾶ μετὰ Γλαύκωνος τοῦ Ἀρίστωνος ... A caminho de Coimbra. Inspecção. Somos muitos. Só rapazes. Enchemos o comboio. Não conheço ninguém. Mau feitio. Misantropo. Não é de agora. Agora apenas sofro as consequências. Há algumas caras que me são familiares. Mas nem um amigo, nem um conhecido. Sou o único sozinho. Todos os outros rapazes se juntam em grupos mais ou menos pequenos. Mas eu não conheço ninguém. Não me posso juntar a ninguém. Sinto-me perdido. Um antigo colega de escola. Mas já não nos falamos. Tanto melhor. Farei a viagem sozinho, a ler. Ainda não lamento a solidão.

*

Há dois grandes grupos. Há os que têm 12º ano ou mais. Há os que não. A fronteira é muito nítida. Nós vamos sentados, em silêncio. Ou conversando em voz baixa. Eles gritam. Riem alto. Passeiam-se pelas carruagens, destilando excesso de hormonas. A maneira de vestir. Mesmo as caras. Inconfundíveis. É chocante. Odi profanum vulgus et arceo. A fazer apreciações elitistas. Eu. Um homem de esquerda. Detesto-me. Racionalizo. Não tiveram condições para estudar. Não têm culpa. Muitos deles parecem ser bastante pobres. Odi me et arceo. Não consigo ler em paz. O dia desponta, quente. Chegaremos pela hora de almoço. Até lá tenho de aturar isto. Grotesco.

*

A ansiedade da véspera foi-se. Agora nervoso miudinho. Que será que me vão fazer? Já tirei os brincos? Já. Se calhar devia pô-los de novo. Não é normal um homem com tantos brincos nas duas orelhas, no início desta última década do século. Não queremos cá bichas. Paneleiros rua. Pode ser que... Se calhar devia pô-los. Não. É melhor não. Dizem que alegando homossexualidade eles dão-nos como inaptos. Ineptos, é assim que se deve dizer. Não sabem latim. Mas é melhor não. Mariquinhas. Aquele ali, de riso alvar, a olhar para mim com ar de gozo. É disto que tenho medo. E se gozam comigo, no quartel. Notam-se os buracos nas orelhas. Tentarei parecer o mais másculo possível. Que estupidez. Eu sei parecer másculo. Mas para quê. Que tolice. Chamavam-me mariquinhas, na escola, quando era miúdo. A minha melancolia. Os óculos. Sempre agarrado aos livros. Mariquinhas. E gordo. Também me chamavam gordo. Mariquinhas gordo. Mariquinhas gordinho. Gordinho mariquinhas. Não gostava de jogar à bola, como os outros miúdos. No recreio ficava isolado. Alegremente isolado. Misantropo de nascença? Depois cresci e tornei-me grande. Muito grande. Agora pensam duas vezes antes de me chamarem mariquinhas. Mas aquele está com os amigos. Não tem medo de mim. Cruzo as pernas. Exibo as minhas DocMartens. Sola ameaçadora voltada para ele. Baixo o livro e olho-o nos olhos. Não acredito que estou a fazer isto. Nunca me meti em brigas. Não sou capaz. Estou aterrorizado. A Cristiana tinha medo de mim. Achava que eu era um "skinhead". Não a censuro. Cabelo quase rapado. DocMartens. Calças de ganga rotas. Óculos pequeninos redondos. Apenas os brincos destoam. Pareço um oficial nazi saído de um filme de época. Eu. Homem de esquerda. Anti-nazi. O outro desvia os olhos. Retomo a leitura, triunfante. Aliviado. A minha presença é notada. Os grupos mais próximos olham-me com curiosidade. Aquele grupinho ali. Olhares gozões. Desconfortável. Era disto que eu tinha medo. Não arrisco novo desafio. Ainda estou a tremer. Levantar-me e espreguiçar-me. Sou o mais alto da carruagem. Não sou gordo, agora. Sou bastante encorpado. Pé em cima do banco. Ostensivamente desatar e tornar a atar os atacadores das DocMartens. Resultou. O grupinho parece ter desistido de me provocar. Demonstração de força estúpida. Fiz isto para quê? Idiota. Para me proteger. Criar a imagem do que não sou. Lanço olhares ameaçadores em volta, e volto a enterrar a cabeça no livro. Tenho medo. Agarro com força o livro para não perceberem as tremuras das minhas mãos. Sinto-me a sufocar. Como será no quartel? Vão-me chamar mariquinhas. Vão-me humilhar.

*

Há um que me olha de maneira diferente dos outros. Ruivo. Este não me mete medo. Desvia o olhar, embaraçado, quando o tento surpreender. É divertido. Este não diz mariquinhas com os olhos. Mas também não consigo decifrar o que diz. Bifurcação de Lares. Mudança de comboio. Isolado, no recreio. Às vezes brincava com as meninas. Mariquinhas. Estúpidos. Não sabiam que eu também brincava aos médicos, com elas. Aqui não há meninas. A estação é uma ilha cercada de arrozais a perder de vista. Isolamento absoluto. Temos de esperar. Uma hora. Ou mais. Não conheço ninguém. Caras familiares, apenas. Refugio-me no livro. Mariquinhas. O ruivo olha-me insistentemente. O que é que ele quer. Incómodo. Deixou de ter graça.

*

Comboio suburbano. Estamos a chegar, parece-me. Vamos em pé, apertados. O ruivo está mesmo à minha frente, quase lhe sinto o hálito. Os outros parecem ter-se habituado a mim, ignoram-me. O ruivo insiste. Não percebo aquele olhar. Não é de gozo. Não é de curiosidade. Não, não é de engate. Olha-me como se eu não estivesse ali. Acorda quando cruzo o meu olhar com o dele. Então baixa a cabeça e cora. Andamos neste jogo desde a Bifurcação de Lares. O que queres de mim?

*

À porta do quartel. Pânico. Calor ardente. Tenho medo. O que me farão? Vão-me obrigar a despir em público. A andar nu entre nus. E vão ver os furos nas minhas orelhas. Vão-me humilhar. Abro o livro mas não vejo as letras, só borrões. O estômago não existe. Estou banhado em suor. Calor. Que abram depressa a porta. Que isto acabe rapidamente. Sinto que posso começar a chorar a qualquer momento. Vão-me humilhar. Vão gozar comigo. Mariquinhas. Pé de salsa.

12.5.06

Fazes-me falta

[Rui Oliveira - Auto-retrato]

Todos os dias me lembro de ti. Mas há dias em que me lembro mais. Há dias em que as saudades são maiores. Este é um desses dias.

Domi militiaeque I

[Guercino - Estudo de rapaz sentado]

Amanhã vou para a tropa. Vou à inspecção. Enganei-me. Que importância tem. É a mesma coisa. Quartel. Tropas. Ordens. É a mesma coisa. Tropa. Inspecção. Vai ser um ponto de viragem na minha vida. Vou à inspecção. 1,85m. Robusto, mas não gordo. Serei dado como apto, com toda a certeza. E começará a contagem decrescente para a incorporação. O pesadelo que me persegue há tanto tempo. Desde a infância. Amanhã começa. Vou-me despedir da vida tranquila, esta noite. Tenho de me levantar muito cedo, para apanhar o primeiro comboio da manhã. Que importância tem. Nunc est uiuendum. Até logo, não venho tarde. Como será amanhã. Há um bar novo, talvez lá vá. Com recantos. Pouco iluminado. Uma casa antiga transformada em bar. Anos seguidos a pedir adiamentos. Mas agora estou a acabar o curso. Não há mais adiamento possível. Andamos pelos corredores sombrios do bar e escolhemos o compartimento que mais nos agrada. É um conceito interessante, Quem me dera viajar dois dias no tempo, não ter de passar por isto. Que sorte. Dois amigos neste compartimento. Vão estar lá centenas de rapazes. Não me sinto à vontade. Sabem que amanhã vou à inspecção? Nunc est bibendum. Tomamos uns copos. Vinho do Porto. Ou cerveja. Que importância tem. É a mesma coisa. Ouvi dizer que temos de nos despir em grupo. Não quero. Aproveito esta minha última noite de tranquilidade. Amanhã começa a contagem decrescente. Não são dois amigos, são dois conhecidos. Um deles acho que o vi apenas duas ou três vezes. Que importância tem. Preciso de beber. De conversar. Com amigos, com conhecidos. É a mesma coisa.Vai-se-me apertando o estômago. Amanhã a esta hora como estarei. Onde estarei. Tenho medo. Vou andando, amanhã tenho de me levantar cedo. Boa sorte. Obrigado. E se me obrigam a despir em frente dos outros todos. Não me apetece ir já para casa. Mas devia. Mas tenho de. Não me sinto confortável no meio de grupos exclusivamente masculinos. Como será, se me incorporarem. Não quero pensar nisso, agora. Limpo a mente. O que tiver de ser, será. Preocupo-me com a incorporação quando ela chegar. Que importância tem. É melhor ir dormir, amanhã tenho de me levantar cedo. Cada degrau é uma martelada na cabeça, que ameaça rebentar. As chaves. Não trouxe as chaves. Campainha. Alguém há-de abrir. É normal, a mãe demora sempre um bocadinho a vir abrir, tem de percorrer o corredor. É melhor tirar os brincos, ainda me arranjam problemas por causa disso. Não me abrem a porta. Campainha. Que livro levar. Sim, tenho de levar um livro. Ninguém. Não está ninguém em casa. E agora. Quase meia-noite. Platão. Levo Platão. República. O Miguel diz que serei um militar diferente. Que chegarei a um posto elevado. Que terei recrutas sob o meu comando. Que em vez de exercícios militares os sentarei debaixo de plátanos, e discutiremos Platão. Plátanos. Galiza. De onde me vem a Galiza, agora? Que estranho. Quero ir dormir. Sentar-me nas escadas e esperar. Onde terão ido todos. Sentar-me nas escadas. Esperar. Até que alguém venha e me abra a porta. Amanhã muda a minha vida. Tenho vontade de chorar. Mas é ridículo chorar por uma coisa destas. Que importância tem. Hoje, sentado nas escadas, à espera de que me abram a porta. Amanhã no quartel, à espera de que ma fechem. É a mesma coisa.

Feras feridas

Vão partindo, os monstros. Ainda cá ficam alguns, mas por pouco tempo. Estão fracos. Feridos. Vão partindo, aos poucos. Devagarinho. Um a um. Ameaçando sempre voltar. Mas sem força. Monstros feridos de morte que olham para trás e rugem num último estertor. Vão partindo. Para morrer longe. Deixam um rasto de sangue e lágrimas. Destruição. Destroços. Um deserto de dor. Mas vão partindo. Não sei como recomeçar, agora. Se vale a pena recomeçar. Para quê. Podem voltar. Mas não. Não voltam. Vi-os feridos de morte. Encharcados em sangue negro viscoso. Arrastando-se para longe. Lentamente. Mas ainda cá ficam alguns, estrebuchantes. Fracos. Feridos. Em breve partirão. Em breve irão morrer longe, junto dos outros. Feridos de morte. Estarão mesmo feridos de morte? Estarão apenas a restabelecer-se, fora da minha vista, prontos para regressarem ainda mais ferozes? Feras feridas.

10.5.06

Ça me fait peur

[Caspar David Friedrich - Recife rochoso]

Ça me fait peur. Pourquoi? Noite escura. Sem Lua. Um promontório rochoso entrando suavemente oceano adentro. Não via o mar, mas sabia que ele estava ali, a poucos metros. Ouvia-o, ameaçador. Sentia na cara os salpicos das ondas. Fabrice não dizia palavra. Não sei para onde olhava. Não se via nada. À nossa frente apenas escuridão. Via-lhe o perfil, debilmente iluminado por luzes distantes. Cabeça erguida. Talvez olhasse as poucas estrelas que rompiam por entre as nuvens. Não sei. Não o quis acordar. Grossos salpicos. Salgados. Gelados. Sentia-me intranquilo. Na ponta do promontório, com o mar furioso encharcando-me, salgando-me. Fabrice sonhava. Mantinha-se imóvel, cabeça erguida em direcção ao céu. Depois acordou. Olhou-me e pareceu-me que sorria. Allons-y. Il fait froid.

9.5.06

Gelans intrinsecus

[Robert Henri - Cumulus clouds: East river]

Debruçado sobre o muro, olhando o mar calmo de Agosto. Maresia. Maré vazia. Lá em baixo os últimos banhistas arrumam as suas coisas. Começa a cair a noite. A minha hora preferida. Crepúsculo. Céu laranja. Brisa fria. Arrepio-me. A escarpa negra invade-me agora a alma. Já não vejo o mar. Apenas ouço o seu marulhar suave. Não conseguia suportar. Tinham sido duas semanas de descoberta. Uma nova amizade. Ao longo dos anos o meu carácter reservado e alguma misantropia tinham-me tornado um homem isolado. Tinha os amigos da faculdade, pouco mais. O que não me fazia qualquer diferença. Gostava deste isolamento. De ficar fechado em casa a ler. Gostava de sair, é verdade, mas uma ou duas vezes por mês bastavam-me. Encontrar-me com amigos, de vez em quando. Mas nada substituía uma tarde ou noite de leitura, em absoluta e desejada solidão. Agora descobria uma nova amizade. Forte. Que revolucionava a minha existência. Nascera e fortalecera-se em cartas trocadas mensalmente entre Marselha e Torres Vedras. Fabrice. Conhecera-o na minha viagem a Milão, algures entre Coimbra e Burgos. Naquelas poucas horas juntos criámos laços fortes. Trocámos moradas. Nunca mais perdemos o contacto. Cartas. Longas cartas, de velhos amigos que se tinham visto uma única vez. Ao fim de dois anos de palavras escritas decidimos rever-nos. Sentíamos saudades um do outro. Duas semanas numa tenda. Os laços criados em papel e caneta tornavam-se agora reais, sólidos, aparentemente inquebráveis. Mas agora ele partia. Na manhã anterior viera despedir-se de mim. Apertei-lhe a mão, ainda estremunhado. Que estúpido. Um aperto de mão. Numa noite de maior intimidade dissera-me que que tinha ficado surpreendido e chocado por o ter recebido com um simples aperto de mão e um sorriso contido. Esperava um mediterrânico abraço com palmadas nas costas. Expliquei-lhe que de mediterrânico eu só tinha a fisiologia. Riu-se e chamou-me "germano". Sabia do que falava, filho de mãe alemã. E eu, idiota, cometia pela segunda vez o mesmo erro. Despedi-me com um aperto de mão, frouxo. Partia. E eu regressava à minha solidão misantropa. Mas desta vez doía. Muito. Agora tudo parecia sem sentido. Está frio. Deixei de ouvir o mar. Apenas lhe sinto o cheiro salgado. À minha frente negrume, salpicado por luzes fracas e distantes de barcos de pesca. Esparsas. Acabou.

7.5.06

Aestuans intrinsecus

[Valentin de Boulogne - São João Baptista]

a A.

É aqui que vivo. Era um anexo, num quintal. Um quarto, era tudo. Escuro. Um calor abafado oprime-me a respiração. Pergunta-me se gosto da "casa". Gosto. De ti. Sentamo-nos na cama, não há cadeiras. Tento resistir a mim mesmo. Não falamos. Ambos sabemos ao que vimos. Sem ter sido preciso dizê-lo. Mas eu não quero. Não. Eu quero. Mas tenho medo. O que tens? O suor encharca-me o corpo. Calor sufocante. Como consegues dormir aqui? Habituei-me. Nova pausa. Longa. Não dizemos nada. Durante intermináveis minutos. Ardo por dentro. Olha-me significativamente. Estás a pensar em quê? Não respondo. Sinto-me desfalecer. O calor ardente. O ar pesado. Deito-me, sem forças. Interpretou isto como um assentimento. Inclina-se devagarinho sobre mim. Olhos nos olhos. Sinto-lhe os lábios ardentes por toda a cara, até encontrarem os meus. As mãos percorrem-me o peito abrasado. Entrego-me. Sem resistência.

6.5.06

O silêncio

[Caravaggio - São João Baptista]

a E.

Cuidado, ela pode ouvir-nos. Entra depressa. Fechava silenciosamente a porta da rua. O quarto era logo ali. Escuro. Morno. Despíamo-nos em absoluto silêncio. Enlaçados, silenciosos. Trocávamos beijos sem dizer palavra. Afagava-lhe o peito glabro, devagarinho, com medo de fazer barulho denunciador. Eram noites sem sexo. Bastavam os corpos enrolados. Os beijos longos. O calor do corpo do outro. Eram noites sem sono. De paixão contida. Amanhece. Amo-te muito. Levantava-se, certificava-se de que a senhoria não estava por perto e fazia-me sinal. Corre, depressa. Sai. Adoro-te. Até logo.

4.5.06

Gritos

[Pissarro - Camponesa dando de comer a uma criança]

Não percebia a razão dos gritos. Era uma casa minúscula. Não. Seria talvez uma garagem. Não me lembro. Foi há vinte e quatro anos. Um quarto com uma cama de casal. Disso lembro-me perfeitamente. Dormíamos os quatro naquela cama. A mãe e o mano, virados para um lado, a mana e eu virados para o outro. Pés com cabeças. Não havia alternativa. Uma sala com algumas cadeiras, onde a mana gritava regularmente, sem eu perceber porquê. A cozinha não permitia mais do que uma pessoa dentro. A mãe cozinhava vergada, pois o tecto era demasiado baixo. Um vão de escada servia de casa de banho. Lembro-me muito bem de que a sanita não estava presa ao chão, e de que lá de dentro saíam baratas voadoras. Esses gritos eu percebia. Do lavatório um dia saíram lagartas. Curioso. Como teriam ido lá parar. Depois da felicidade indizível que fora o divórcio dos meus pais, vinham agora os dias de pesadelo. A mãe ficara colocada numa escola algarvia, na ressaca do divórcio. Não houvera oportunidade nem dinheiro para mais do que aquela miserável garagem, onde não dormíamos, apertados e com calor. Lembro-me de que chorei descontroladamente na véspera da partida. Era o dia dos meus anos. Fazia 10. Ia para um mundo novo, que para mim só poderia ser pior do que aquele em que vivia. Inocente. Agora, logo agora que os meus pais se tinham separado, logo agora que eu estava tão feliz. Porquê partir? Porquê deixar tudo para trás? Não percebia. E no entanto era tão óbvio. Não podia ter sido de outra maneira. A mãe tomou uma decisão corajosa, difícil e acertada. Mas eu não a entendi, na altura. Partimos de madrugada. A mãe, a mana, de 8 anos, o mano, de 3 anos, e eu, 10 anos acabados de fazer. Foram longas horas de viagem, que apaguei da memória. Só me lembro de ser madrugada. Uma daquelas madrugadas frias de Setembro, num Outono antecipado. Ou então era eu que sentia frio inexistente. E de chegarmos, ao fim do dia, àquela garagem que nos serviu de casa durante largos meses. E depois havia aqueles gritos, de que eu não percebia a razão. Escrevia cartas ao meu avô materno, mentindo-lhe como estava tudo a correr bem, que estava a adorar o Algarve, que a casa afinal nem era assim tão má. A mãe sofria, baixinho, mas nunca mostrou fraqueza. Às vezes ouvia-a chorar, quando pensava que estávamos todos a dormir. Sofria mais do que nós todos juntos. Sofria por ela e pelos três filhos pequenos. Em silêncio. Não nos queixávamos. Tacitamente decidíramos que lamúrias era coisa que não valia a pena. Dias melhores viriam. Disso tínhamos a certeza. Afinal era só um ano. Nem isso. Um ano lectivo. Duro. Feroz. Ainda que só tivesse 10 anos, todo eu explodia em pré-puberdade. Literalmente. A minha cara era uma enorme borbulha vermelha, nojenta. Eu. Uma viga gorda, forrada de acne. Já na altura era o mais alto da turma. Desenraizado. Não entendia a cultura própria daquele povo. Não entendia a fala popular. Desconhecia tantas daquelas palavras e expressões. E eles olhavam-me como um bicho raro. Era o "lisboeta". Ouviam, fascinados, como eu pronunciava "lâite", e não "lêti". Estranhavam os meus modos citadinos e educados. Talvez por isso nunca me tenha conseguido integrar, nem na escola nem no bairro popular pobre onde vivia. Era estrangeiro. Era um esquisitóide, que dizia "espâlho" em vez de "espêlho", que não sabia o que eram alcagoitas - ó ignorante! - nem entendia o conceito de estar marefado. Sempre fui introvertido e tácito. Nunca me incomodou a rejeição. Pelo contrário, acabei mesmo por cultivá-la, na adolescência. Suportei, portanto, tudo. Acabei por perceber que não havia alternativa. Que vivíamos um inferno na terra, quase numa barraca, mas que isso acabaria por nos trazer grandes benefícios. E que a mãe tomara uma decisão corajosa que eu, hoje, com 34 anos, não sei se seria capaz de tomar. Percebi tudo. Menos os gritos. Isso nunca percebi. Eram ratinhos, não faziam mal a ninguém. Mas a mana tinha medo.

3.5.06

ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ


[Ulisses cegando Polifemo - fragmento de cerâmica. Argos, século VII a.C.]

Contei em tempos como um livro para crianças me marcou a ponto de ter acabado licenciado em Línguas e Literaturas Clássicas. Uma Odisseia para crianças, com desenhos e palavras bonitas. Continua à venda, mas nunca a comprei, porque a "minha" Odisseia para crianças era um livro velho, que já fora da minha mãe. Capa amassada, folhas amareladas. Nunca me passarou pela cabeça pedi-la à minha mãe. Era dela. Oferecido pelo seu pai. Mas hoje, numa venda de livros usadas, encontrei um volume muito parecido. Velho. Lido. Relido. Usado. Comprei-o. Não para ler. Para isso há a deslumbrante tradução do Frederico Lourenço. Mas para tê-lo. Imaginar que é o livro que devorei numa tarde, enfiado numa despensa. Folheá-lo. Tê-lo.

1.5.06

Peregrinatio mediolanensis XI

[Hayley Lever - Barcos no porto]

Ventimiglia tem uma praia. É para lá que me dirijo. Tenho de esperar seis horas pelo comboio que me há-de levar a Irún. Mas agora isso não me importa muito. Vou-me embora. A cinzenta Milão já ficou para trás há muito tempo. Vou para casa. A praia não tem areia, apenas grossos calhaus negros. Pouco importa. O Mediterrâneo, azul forte, marulha docemente. Descalço-me e sento-me à beira-mar, com os pés dentro da água morna. Não há ondas. Apenas um suave vai e vem. Tudo parece tão distante. Agora a minha viagem começa a fazer sentido. Naquele fim de tarde quente, os pés lavados pela tépida água salgada, Milão já não me parece tão medonha. Rio, lembrando-me da mendiga genovesa que, na viagem para Milão, me amaldiçoou por não lhe ter dado as liras que insistentemente implorava. Passam-me pelos olhos todos os momentos vividos durante aqueles poucos dias. Agora tudo parece menos carregado. Foi, realmente, uma viagem iniciática. Não como a imaginei, é certo. Sinto que tinha de ter passado por tudo aquilo, que agora me parecia quase nada. Sinto-me um homem novo. Um homem. O Sol desce, começa a arrefecer. Mas eu deixo-me ficar, pés na água. Em paz. Finalmente.

Explicit. Deo gratias.

Peregrinatio mediolanensis X

[Piranesi - Torre redonda]

Aceno, no cais de embarque. Não. Tenho a mão levantada, mas não a movo, não aceno verdadeiramente. Mais parece um sinal de súplica. Não vás. Não me deixes de novo sozinho. Robson parte no comboio, para França. Eu decidi que volto para casa. Não tenho forças. Não era disto que eu estava à espera. Não é a viagem iniciática com que sonhava. Mochila às costas, resta-me esperar até ao fim do dia, e apanhar o comboio para Ventimiglia. Daí para Irún, e finalmente para Lisboa. Faço estes cálculos mentais e sinto-me tomado de desespero. Ainda falta tanto. De novo me arrasto por Milão. Ruas desconhecidas. Feias. Cinzentas. Gente antipática. Agressiva. Olham-me como se não estivesse ali, à sua frente. Pergunto a uma jovem onde há um jardim onde possa descansar. Vira lentamente a cabeça e olha através de mim. Como se tivesse ouvido algo e estivesse a tentar perceber de onde vinha o som. Depois continua o seu caminho, indiferente. Cinzenta. Caras fechadas, por todo o lado. Céu de chumbo. Desisto de tentar interagir com este povo. Até agora não consegui que alguém me respondesse a uma pergunta. Reagem todos da mesma maneira, como se programados para o efeito. Olham através de mim durante uns segundos, voltam a cara, e seguem o seu caminho. Por fim decido que o melhor sítio para descansar e fazer horas é o Duomo. Ali me sento, aliviado do peso da mochila, em posição de oração. Sou ateu. Mas quero descansar. Pensar. Correm-me lágrimas em torrente, mas não choro. Quantas horas ali terei passado, não sei. Ao fim do dia entro no comboio para Ventimiglia. Cabeça de fora da janela, lanço um último olhar a Milão. Até nunca mais.

Peregrinatio mediolanensis IX

Há coisas bonitas, em Milão. O Duomo. Não gastarei palavras para descrever aquilo que só os olhos e os ouvidos podem sentir completamente. Aquele mesmo Duomo, que no dia anterior me passara despercebido, por entre a névoa cinzenta que então me cobria os olhos. As galerias Vittorio Emmanuelle. O castelo Sforzesco, com o seu museu. Sim, naquele dia fiz a típica passeata turística, acompanhado do meu novo amigo brasileiro. A noite foi bem passada. Conhecemos mais uma série de brasileiros, hospedados na nossa pousada. Muita conversa leve, risos, juras de amizade futura. Não fiz a barba nesse dia, para não reabrir a ferida que tanto tempo demorou a estancar. Sentia-me sujo, apesar de ter acabado de tomar banho. E voltavam as nuvens cinzentas. No dia seguinte o meu amigo partia. Eu não sabia o que fazer. Permanecer mais um dia, ir procurar de novo a Soledad? Partir, sozinho, para a Grécia? Voltar para casa. Sentia-me tomado de uma enorme angústia. O Robson deu-me uma leve palmada nas costas, quase um afago. Que tem você, que ar tão sombrio? Nada. Estou com sono. E cansado. Às 22 horas apagaram-nos as luzes, e dirigimo-nos às respectivas camaratas. Que faço? Para onde vou?

Peregrinatio mediolanensis VIII

[Pontormo - Rapaz nu sentado]

Tenho medo de balneários. Despir-me diante dos outros. Não consigo. Nem vê-los. Cabeça baixa. Bem enrolado na toalha. Cortei-me a fazer a barba. É um golpe fundo. Espero que ninguém tenha visto. Passeiam-se nus, parecem não dar por mim. Ou estão todos a olhar para mim. Ali, toalha furiosamente entolada à volta da cintura, a tentar conter o sangue que jorra sem parar. Hello, where are you from? É comigo? Sem que tivesse dado conta, o balneário tinha-se acalmado. Agora só lá estou eu, com um bocado de papel higiénico comprimido contra a bochecha sangrante, e um rapaz nu, acabado de sair do duche, rindo para mim. Portugal. Ah, eu do Brasil. Já tinha percebido pelo sotaque. Vinha sozinho. Como eu. Percebemos que só nos tínhamos um ao outro, e ainda por cima falávamos a mesma língua. Tacitamente decidimos tornar-nos amigos inseparáveis, pelo menos até amanhã. Amanhã ele parte para França. Sinto um enorme alívio. Agora tenho alguém. Companhia.

Peregrinatio mediolanensis VII

[Piranesi - Prisioneiros em plataforma]

Não sei o que fazer. Não sei da Soledad. Vim sem número de telefone nem morada. Apenas sei onde trabalha. Arrisquei ir a Varese, mas em Itália parece que fecha tudo ao Sábado. Regresso à cinzenta Milão. Apático. Não sei o que fazer. Nem para onde ir. Vagueio pela praça do Duomo. A pousada só reabre às cinco. Não tenho discernimento para apreciar a beleza monumental do Duomo. Sinto o estômago colado às costas. E não é de fome. Arrasto-me, abordado por pedintes romenas, a quem lanço olhares vazios. Só vejo cinzentos à minha volta. Olho para o Duomo e não o vejo. Não sei para onde ir. Nem o que fazer.