[Pissarro - Camponesa dando de comer a uma criança]Não percebia a razão dos gritos. Era uma casa minúscula. Não. Seria talvez uma garagem. Não me lembro. Foi há vinte e quatro anos. Um quarto com uma cama de casal. Disso lembro-me perfeitamente. Dormíamos os quatro naquela cama. A mãe e o mano, virados para um lado, a mana e eu virados para o outro. Pés com cabeças. Não havia alternativa. Uma sala com algumas cadeiras, onde a mana gritava regularmente, sem eu perceber porquê. A cozinha não permitia mais do que uma pessoa dentro. A mãe cozinhava vergada, pois o tecto era demasiado baixo. Um vão de escada servia de casa de banho. Lembro-me muito bem de que a sanita não estava presa ao chão, e de que lá de dentro saíam baratas voadoras. Esses gritos eu percebia. Do lavatório um dia saíram lagartas. Curioso. Como teriam ido lá parar. Depois da felicidade indizível que fora o divórcio dos meus pais, vinham agora os dias de pesadelo. A mãe ficara colocada numa escola algarvia, na ressaca do divórcio. Não houvera oportunidade nem dinheiro para mais do que aquela miserável garagem, onde não dormíamos, apertados e com calor. Lembro-me de que chorei descontroladamente na véspera da partida. Era o dia dos meus anos. Fazia 10. Ia para um mundo novo, que para mim só poderia ser pior do que aquele em que vivia. Inocente. Agora, logo agora que os meus pais se tinham separado, logo agora que eu estava tão feliz. Porquê partir? Porquê deixar tudo para trás? Não percebia. E no entanto era tão óbvio. Não podia ter sido de outra maneira. A mãe tomou uma decisão corajosa, difícil e acertada. Mas eu não a entendi, na altura. Partimos de madrugada. A mãe, a mana, de 8 anos, o mano, de 3 anos, e eu, 10 anos acabados de fazer. Foram longas horas de viagem, que apaguei da memória. Só me lembro de ser madrugada. Uma daquelas madrugadas frias de Setembro, num Outono antecipado. Ou então era eu que sentia frio inexistente. E de chegarmos, ao fim do dia, àquela garagem que nos serviu de casa durante largos meses. E depois havia aqueles gritos, de que eu não percebia a razão. Escrevia cartas ao meu avô materno, mentindo-lhe como estava tudo a correr bem, que estava a adorar o Algarve, que a casa afinal nem era assim tão má. A mãe sofria, baixinho, mas nunca mostrou fraqueza. Às vezes ouvia-a chorar, quando pensava que estávamos todos a dormir. Sofria mais do que nós todos juntos. Sofria por ela e pelos três filhos pequenos. Em silêncio. Não nos queixávamos. Tacitamente decidíramos que lamúrias era coisa que não valia a pena. Dias melhores viriam. Disso tínhamos a certeza. Afinal era só um ano. Nem isso. Um ano lectivo. Duro. Feroz. Ainda que só tivesse 10 anos, todo eu explodia em pré-puberdade. Literalmente. A minha cara era uma enorme borbulha vermelha, nojenta. Eu. Uma viga gorda, forrada de acne. Já na altura era o mais alto da turma. Desenraizado. Não entendia a cultura própria daquele povo. Não entendia a fala popular. Desconhecia tantas daquelas palavras e expressões. E eles olhavam-me como um bicho raro. Era o "lisboeta". Ouviam, fascinados, como eu pronunciava "lâite", e não "lêti". Estranhavam os meus modos citadinos e educados. Talvez por isso nunca me tenha conseguido integrar, nem na escola nem no bairro popular pobre onde vivia. Era estrangeiro. Era um esquisitóide, que dizia "espâlho" em vez de "espêlho", que não sabia o que eram alcagoitas - ó ignorante! - nem entendia o conceito de estar marefado. Sempre fui introvertido e tácito. Nunca me incomodou a rejeição. Pelo contrário, acabei mesmo por cultivá-la, na adolescência. Suportei, portanto, tudo. Acabei por perceber que não havia alternativa. Que vivíamos um inferno na terra, quase numa barraca, mas que isso acabaria por nos trazer grandes benefícios. E que a mãe tomara uma decisão corajosa que eu, hoje, com 34 anos, não sei se seria capaz de tomar. Percebi tudo. Menos os gritos. Isso nunca percebi. Eram ratinhos, não faziam mal a ninguém. Mas a mana tinha medo.