الجود بالنفس أقصى غاية الجود (a generosidade da alma é a maior das generosidades)
a I.
Arde forte fogo que já não é teu. É tempo pois de te pôr in a little box with a golden key. Pyxis dulcium memoriarum. Lavado o travo deixado por paixão ferida de morte. Porque o travo só está se a paixão também. Repara. Passio. Non amor. Quia passionem nunc scio non amorem fuisse. Anos de reclusão voluntária. Monge estilita sem coluna onde pousar. Depois aparece puer uenustus com cesto de fruta pão negro e vinho doce. E o monge ri e arde por dentro. Quare puer hic uenustus me senem diligat quare capillum tangat canum meum nescio. Deslumbra-se e sonha. Diz o que quer sentir. Tu sabes. Não o que sente. Porque o que sente. Nescitur.
Deito os olhos para trás e já não dói não se aperta coração que não amou. Entraste já há tempo bastante na galeria das memórias pacíficas. Faltava arrumar-te. Vou-te pôr. Há tanto espaço. Não sei. Ali ao lado do JP.
Clausa pyxide vêm-me diante dos olhos memórias tão doces agora inofensivas. É tempo delas. Das memórias.
«Vincent Malloy is seven years old He's polite and always does as he's told For a boy his age, he's considerate and nice But he wants to be just like Vincent Price
He doesn't mind living with his sister, dog, and cats Though he'd rather share a home with spiders and bats There he could reflect on the horrors he has invented And wander dark hallways alone and tormented
Vincent is nice when his aunt comes to see him But imagines dipping her in wax for his wax museum He likes to experiment on his dog Abercrombie In the hopes of creating a horrible zombie So he and his horrible zombie dog could go searching for victims in the London fog
His thoughts aren't only of ghoulish crime He likes to paint and read to pass some of the time While other kids read books like "Go Jane Go" Vincent's favorite author is Edgar Allen Poe
One night while reading a gruesome tale He read a passage that made him turn pale Such horrible news he could not survive For his beautiful wife had been buried alive
He dug out her grave to make sure she was dead Unaware that her grave was his mother's flower bed His mother sent Vincent off to his room He knew he'd been banished to the tower of doom Where he was sentenced to spend the rest of his life Alone with the portrait of his beautiful wife.
While alone and insane incased in his doom Vincent's mother burst suddenly into the room She said, "If you want to you can go out and play It's sunny outside and a beautiful day."
Vincent tried to talk but he just couldn't speak the years of isolation had made him quite weak So he took out some paper and scrawled with a pen: "I'm possessed by this house and can never leave it again."
His mother said, "You are NOT possessed and you are NOT almost dead These games that you play are all in your head You are NOT Vincent Price, you're Vincent Malloy You're not tormented or insane, you're just a young boy You're seven years old, and you are my son I want you to get outside and have some real fun"
Her anger now spent, she walked out through the hall While Vincent backed slowly against the wall The room started to sway, to shiver and creak His horrored insanity had reached its peak He saw Abercrombie, his zombie slave, and heard his wife call from beyond the grave
She spoke through her coffin and made ghoulish demands While through cracking walls reached skeleton hands Every horror in his life that had crept through his dreams Swept his mad laughter to terrified screams
To escape the badness, he reached for the door but fell limp and lifeless down on the floor His voice was soft and very slow As he quoted "The Raven" from Edgar Allen Poe: "And my soul from out that shadow that lies floating on the floor Shall be lifted...Nevermore."»
Ahora la pesadilla continúa... Mi fracaso es definitivo, y me pongo a contar sueños. Quiero despertar, y encuentro esa resistencia que impide salir de los sueños más atroces.
Adolfo Bioy Casares, La invención de Morel
frio nos pés sobe pernas acima agarra-me a barriga garra romba beso salado sube suelto solito las sombras de mi sueño ola fría helada lambe perna pé
e eu queria ser areia amarela amada concha aqui e ali abraçar-te quente doce cada poro da tua pele amar-te
[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel direito)]
«MAGGOT What does that whispy little brat have that you don't have double?
BLACK WIDOW She can't hold a candle to the beauty of your smile
EMILY How about a pulse?
MAGGOT Overrated by a mile!
BLACK WIDOW Overbearing!
MAGGOT Overblown!
MAGGOT AND BLACK WIDOW If he only knew the you that we know!
EMILY (sigh)
BLACK WIDOW And that silly little creature isn't wearing his ring!
MAGGOT And she doesn't play piano!
MAGGOT AND BLACK WIDOW Or dance
MAGGOT Or sing
MAGGOT AND BLACK WIDOW No she doesn't compare!
EMILY But she still breathes air...
BLACK WIDOW Who cares?
MAGGOT Unimportant!
BLACK WIDOW Overrated!
MAGGOT Overblown!
MAGGOT AND BLACK WIDOW If only he could see How special you can be If he only knew the you that we know!
EMILY If I touch a burning candle I can feel no pain If you cut me with a knife it's still the same And I know her heart is beating And I know that I am dead Yet the pain here that I feel Try and tell me it's not real For it seems that I still have a tear to shed...
MAGGOT The sure redeeming feature From that little creature Is that she's alive.
BLACK WIDOW Overrated!
MAGGOT Overblown!
BLACK WIDOW Everybody know that's just a temporary state Which is cured very quickly when we meet our fate.
MAGGOT Who cares?
BLACK WIDOW Unimportant!
MAGGOT Overrated!
BLACK WIDOW Overblown!
MAGGOT AND BLACK WIDOW If only he could see How special you can be If he only knew the you that we know!
EMILY If I touch a burning candle I can feel no pain In the ice or in the sun it's all the same Yet I feel my heart is aching Though it doesn't beat it's breaking And the pain here that I feel Try and tell me it's not real I know that I am dead Yet it seems that I still have some tears to shed!»
No me aflige morir; no he rehusado acabar de vivir, ni he pretendido alargar esta muerte que ha nacido a un tiempo con la vida y el cuidado.
Siento haber de dejar deshabitado cuerpo que amante espíritu ha ceñido; desierto un corazón siempre encendido, donde todo el Amor reinó hospedado.
Señas me da mi ardor de fuego eterno, y de tan larga y congojosa historia sólo será escritor mi llanto tierno.
Lisi, estáme diciendo la memoria que, pues tu gloria la padezco infierno, que llame al padecer tormentos, gloria.
Francisco de Quevedo
Pode ser de manhã bem cedo. Àquela hora em que o dia ainda não é dia. E o céu roseia a oriente e as sombras se deitam silenciosas na erva fria chorada da noite. As únicas lágrimas que quero ver vertidas. Porque se me querem chorar chorem-me agora que as posso ver. E virar a cara. Lacrimae rerum. É que quando for cinza fria posta em saco pardo. Para quê chorar. Já não está. Já foi. Já não é. Debaixo da pedra inclinada. E não se esqueçam da Sophia por favor.
Fa freddo nello scriptorium, il pollice mi duole. Lascio questa scrittura, non so per chi, non so più intorno a che cosa: stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus. Umberto Eco, Il Nome della Rosa
Mil novecentos e noventa. Eram os tempos da mudança. Finados os dias de escola secundária. Agora havia comboio pachorrento levando-me todos os dias todos para Lisboa - para a faculdade. Resfolegando lento lento em todas as estações e apeadeiros. Aprendi-os de cor. Runa. Dois Portos. E já não me lembro de mais. Eu sabia todos. Mas os anos passam. E com eles se vão estações e apeadeiros. E os sons e os cheiros. O toc toc das rodas nos carris. Ainda vou todos os dias para Lisboa - para a faculdade. Mas agora é um autocarro que não se digna parar em lado nenhum. Altivo enorme acelera na auto-estrada e em quarenta minutos já está. Não há duas lentas horas pachorrentas com cheiro a ferro. Não há tempo para leituras demoradas. E leitura não demorada não é leitura que valha a pena. Mesmo se for um conto pequenino de Kafka. Daqueles de meia página. Tem de ser demorada mastigada ruminada. Pesando cada palavra.
Naqueles tempos de mudança havia uma professora de Introdução aos Estudos Literários na Faculdade de Letras de Lisboa que se chamava Serafina. Dizia que não gostava do nome. Não sei porquê. Eu gosto. E dela. Era doce. Uma professora doce. Ainda é. Porque eu sei. E um dia a doce Serafina pequenina pediu-nos que lêssemos O Nome da Rosa. Porque era um livro extraordinário. Porque o prólogo era uma obra-prima da construção de verosimilhança narrativa. Que lêssemos pelo menos o prólogo. E eu li. Porque eu era muito obediente. Depois não parei. Lentas semanas lendo no comboio pachorrento. Devagar devagarinho. Porque era tão bom.
Mais tarde voltei a ler. E depois li outra vez. E quero ler ainda outra vez. Porque agora sei mais coisas. E terei de ler ainda mais outra vez. E outra. Porque então saberei mais coisas. E nunca deixarei de o querer ler. Porque nunca saberei o suficiente. Sempre na velhinha edição da Difel. A da capa com iluminura quadripartida. Não gosto da capa das novas edições. Monge medonho passando atrás de postigo aberto. É desta que eu gosto. Da minha. Do meu. A capa quebrada e as folhas soltas que saltam. Os sublinhados feitos por aquela amiga a quem o emprestei. Detesto que me sublinhem os livros.
Bibliotheca Não são apenas os melhores livros que li. São aqueles que de alguma forma deixaram marca na minha memória. Não são prólogos à maneira de Borges. Porque eu não sou Borges. Não são recensões. São memórias. Cheiros. Sons. Cores. São os livros da minha vida.
Ó tu, o melhor dos ladrões de balneário, pai Vibénio e filho paneleiro (que mais porca é a mão do pai, mais guloso o cu do filho): porque não ides exilados para o raio que vos parta, pois conhecidas são de todos as pilhagens do pai, e as nalgas peludas, filho, não podes traficar nem por um tostão!
o furum optime balneariorum Vibenni pater et cinaede fili nam dextra pater inquinatiore culo filius est uoraciore cur non exilium malasque in oras itis quandoquidem patris rapinae notae sunt populo et natis pilosas fili non potes asse uenditare
Aurélio, pai de fomes, não só destas de hoje, mas também de quantas foram ou são ou serão em outras idades, queres encavar o meu miúdo. E nem disfarças: estás com ele, brincas com ele, colado ao seu lado tudo tentas. Em vão: é que a ti, que me tentas tramar, primeiro te comerei eu com bela foda de boca. E se ao menos o saciasses, calava-me. Mas o que me dói, ai eu ai eu!, é que o rapaz só aprenderá a passar fome e sede. Por isso desiste, enquanto podes fazê-lo com honra, não vás tu acabar de boca fodida.
Aureli pater esuritionum non harum modo sed quot aut fuerunt aut sunt aut aliis erunt in annis pedicare cupis meos amores nec clam nam simul es iocaris una haerens ad latus omnia experiris frustra nam insidias mihi instruentem tangam te prior irrumatione atque id si faceres satur tacerem nunc ipsum id doleo quod esurire me me puer et sitire discet quare desine dum licet pudico ne finem facias sed irrumatus
اضحك يضحك العالم معك وابك تبك وحدك (Ri, e o mundo ri contigo; chora, e choras sozinho)
Quando eu morrer não quero que me olhem o corpo. Não há nada para ver. Metam-mo depressa depressa em caixa de madeira. Negra. Se não houver negra pode ser de outra cor. Mas não demorem muito por favor. É só dizer adeus. Adeus André. Já está. Adeus. E lancem-mo às chamas. Depressa depressa. Lume no máximo. Depois podem ver-me as cinzas. Se quiserem. Mas depressa. Que cinza é coisa que se vê tão depressa. Metam-mas num pote numa caixa. Pode ser num frasco. O que estiver à mão. Mas o que eu queria. Sabem. O que eu queria era que mas metessem num saco de papel. Daqueles castanhos que fazem barulho. E mas levassem ao tholos do Barro. E fizessem um buraquinho no chão ali sob a pedra deitada e mas deitassem com cuidado com cuidadinho no buraquinho. Mas depressa. Depois digam um poema da Sophia. Pode ser este. Quando eu morrer voltarei para buscar / Os instantes que não vivi junto do mar. Sem pressa. Porque já está. Já estarei morto e enterrado. Acabaram-se as pressas. Esqueçam-me. Porque eu também vos esquecerei. Mas antes de descerem a colina. Não custa nada. Digam o poema da Sophia. São trinta segundos. Não mais. Até pode ser outro. Um de que gostem. Pode nem ser Sophia. Pode ser o que quiserem. Porque já não será para mim. Serei então cinza fria posta em sepultura milenar. Eu serei nada. Não ouvirei não chorarei. O poema será para vocês.
«Sin lástima y sin ira el tiempo mella las heroicas espadas. Pobre y triste a tu patria nostálgica volviste, oh capitán, para morir en ella y con ella. En el mágico desierto la flor de Portugal se había perdido y el áspero español, antes vencido, amenazaba su costado abierto. Quiero saber si aquende la ribera última comprendiste humildemente que todo lo perdido, el Occidente y el Oriente, el acero y la bandera, perduraría (ajeno a toda humana mutación) en tu Eneida lusitana.»
I try to believe what I feel these days it makes life much easier for me it's hard to decide what is real these days when things look so dizzy to me
(cantado por Massive Attack)
Conter as mãos. E os olhos que voam sem freio. Manter o rosto tranquilo. Porque está tudo bem. No pasa nada. Y tú qué te creías. Te acuerdas. Aquella noche. Tan cerca de tí. Pernas que mexem mexem debaixo da mesa. Que o resto tem de se manter quieto quietinho. Para não me denunciar.
A orillas del Tajo me senté y puse mis ojos en tus manos. Si estuvieras aquí. Te lo diría.
Huele a pez y a mar. Pero aquí no hay mar. Entonces por qué. Serán tus ojos. Ya no sé. Porque a veces. Este olor salado. Sabes cuando la mar está allí tan cerca tan cerquita. Y cuando las olas besan la playa y yo te besaría si estuvieras aquí. Porque te echo tanto de menos. Con sus besos salados. Huele a mar. Huele a tí.
إذا رأيت نيوب الليث بارزة فلا تظنن أن الليث يبت (Se vires os dentes do leão isso não significa que ele esteja a sorrir)
a E.
Embora dos Estados Unidos. Da avenida. Não dos. Porque aos eu nunca fui. Muito menos de autocarro. Cheirava mal. Eu. Não o autocarro. O autocarro cheirava a pessoas lavadas. E a metal suado. Porque não tomei banho. E a noite foi tão. Não sei. Se calhar não cheiro. Está tudo na minha cabeça. É que não podia tomar banho. Clandestino. Se ela me apanhasse. Não podias levar ninguém. Quarto alugado. Não casa. Sim podias usar a casa de banho. Mas tu. Eu não.
Em silêncio. Como é que se beija em silêncio. Como é que. Mordendo os lábios agarrando os lençóis com garras curtas. Estavam a dizer qualquer coisa mas eu não estava a ouvir. As senhoras sentadas ao meu lado. No autocarro. Não na tua cama. Porque na tua cama só nós. Em silêncio. Sem luz. A luz da avenida. Só essa. Enquanto te despias e eu já deitado despido. O teu perfil contra a janela. Deitava-te os olhos e corria-te o corpo. Sem mãos. Ao longe. Enquanto estendias os braços num bocejo falso. Mexia-me na cama impaciente. Eu. Não a cama. Pois claro. Uma cama não se impacienta. Muito menos esta. Que não terá grandes chatices. Porque. Silêncio. Tudo em silêncio. Dois corpos quentes colados suados. Parados. Movendo só o que tem mesmo de ser movido. Porque se sai um gemido mais forte. Ou um ranger rangido. Se ela nos apanha.
Daqui vê-se a janela do teu quarto. Enquanto não chega o autocarro. Posso ir olhando. O calor do teu corpo contra o meu. As mãos que te percorrem. Silêncio suado. Trancado no quarto secreto. Há uma cova no meio do colchão. Um vale para onde caímos mesmo sem querer. Mas nós queremos. Eu quero. Tu. Às vezes parece que. Não sei. Aquele bocejo falso.
Há estas senhoras que dizem sei lá não sei. Já não as ouço. Tenho de te ver. Saber se. Porque às vezes parece que. Não. Mas ainda hoje estava tudo tão bem. Alguma coisa que eu disse. Ou que fiz. Não fiz. Diz-me lá. E agora quando é que. Se eu pudesse mandar parar este autocarro. Tocar-te à campainha. Não pode ser. Tenho sempre de subir contigo. Não podes ter visitas. Muito menos visitas destas. Não te posso tocar à campainha. Porque se ela nos apanha. Nem bater à porta. Mas se eu pudesse. Para ter a certeza. Porque agora. Agora quando nos vemos. Mais logo na faculdade. Não chega. Preciso de ti. De te abraçar. De te. Por favor. Maldito autocarro. Maldita avenida.
[Kongelige Bibliotek, Gl. kgl. S. 1633 4º, Fólio 6v]
«Entre los años de 1840 y de 1864, el Padre de la Luz (que también se llama la Palabra Interior) deparó al músico y pedagogo Jakob Lorber una serie de prolijas revelaciones sobre la humanidad, la fauna y la flora de los cuerpos celestes que constituyen el sistema solar. Uno de los animales domésticos cuyo conocimiento debemos a esa revelación es el Aplanador o Apisonador (Bodencrucker) que presta incalculables servicios en el planeta Miron, que el editor actual de la obra de Lorber identifica como Neptuno. El Aplanador tiene diez veces el tamaño del elefante, al que se parece muchísimo. Está provisto de una trompa algo corta y de colmillos largos y rectos; la piel es de un color verde pálido. Las patas son cónicas y muy anchas; las puntas de los conos parecen encajarse en el cuerpo. Este plantígrado va aplanando la tierra y precede a los albañiles y constructores. Lo llevan a un terreno quebrado y lo nivela con las patas, con la trompa y con los colmillos. Se alimenta de hierbas y de raíces y no tiene enemigos, fuera de algunas variedades de insectos.»
Jorge Luis Borges, Margarita Guerrero, El Libro de los seres imaginarios. Ed. Alianza Editorial
[Bosch - O carro de feno (pormenor do painel central)]
you sure you want to be with me I've nothing to give won’t lie and say this lovin's best we'll leave us in emotional pace take a walk taste the restno take a rest (cantado por Massive Attack)
Foi a "penalties" e o Brasil ganhou. E eu tinha um aperto apertado na garganta. Não era por causa da bola. Porque eu e a bola. Quando é o Sporting. Aí sim. Aperta-se-me a garganta e a barriga e tudo o resto. Até choro. Mas não era o Sporting. Portanto não era a bola. Era porque. Dormir com o peito tão apertado. Não. Não pode ser. Não se pode dormir assim.
O bloco de notas na mão. Não para tomar notas. Para olhar o céu laranja. Laranja do Sol que desce. E o azul negro do mar furioso. Mas sim. A ideia primeira era escrever. Deitar-me no papel e esquecer. Agora não levo blocos de notas. Escrevo na memória e chego a casa e descarrego no computador. Há um banco de madeira vermelha e branca. Mau agoiro. O cheiro do mar. Tarde moribunda e aquele aperto na garganta apertado não sai não relaxa. Ainda há quem saia lento da praia. Passo impreciso indeciso de quem não quer deixar a areia e o mar. Está agora no céu aquela cor. Azul negro de chumbo. A hora em que o dia é noite.
Rebolam-me os olhos no horizonte. À procura de quê. À procura de quem. Ainda vermelhos ardentes de ontem. Não da bola. Porque se fosse o Sporting. Mas era o Brasil. E a Itália. Je pars. Tu pars. Fais gaffe aux sirènes.
[Bosch - O carro de feno (pormenor do painel central)]
I was lookin' back to see if you were lookin' back at me to see me lookin' back at you (cantado por Massive Attack)
Perseguem-me ainda fantasmas tão velhos tão doces. O dia em que te foste embora. On parlait de sirènes. Je m'en souviens. De sirènes galiciennes. Porque te ias para a Galiza. Que uma sereia galega te enfeitiçaria e não mais deixarias as escarpas da Costa da Morte. Como naquela noite. Lembras-te. Sem luar. O brilho das casas distantes e o murmúrio do mar negro. Tocando apalpando caminho entre pedras negras escondidas nas trevas. E depois o beijo longo salgado das ondas marrando furiosas na pedra negra. Ouvia-te o respirar rápido curto. O cheiro da tua pele mediterrânica. E queria ver-te e não. Não havia Lua. T'as peur. Non.
Voz salgada agita-me o sono. Je pars. Tu pars. E depois apertámos a mão. Pars pas. Bolas. Um aperto de mão. Encore ça. Na plataforma olhando para todos os lados. Devia ter-te pedido uma fotografia. Porque eu perco as caras. E só nos tínhamos visto daquela vez. No comboio. Lembras-te. Est-ce que je peux. Claro que podias. Estava sozinho no compartimento vazio. O teu amigo dormia et toi tu t'embêtais tout seul. Moi aussi je m'embêtais tout seul. Tout seul. J'avais besoin de parler avec quelqu'un. Arrependido de ter vindo. Porque isto não é maneira de. Et puis on a parlé pendant des heures. Et ton ami nous a trouvés. Tu sortais où. Je m'en souviens plus. Burgos peut-être. C'était en Espagne. J'en suis sûr. Depois fiquei outra vez sozinho. Fechei os olhos e dormi dormi. Dá-me sono a meseta. Depois houve cartas longas onde continuámos as conversas daquela noite. A tua caligrafia. Cali. Καλή. Aquelas letras tão castanhas. Sangue seco. Antes de ler olhava bebia a beleza da mancha escrita. E depois lia outra vez. E punha as folhas lado a lado em cima da mesa e ficava a olhar.
Et puis un jour tu m'as invité à venir chez toi. J'ai dit non. Je pouvais pas. Je me souviens plus pourquoi. J'avais pas de fric c'est sur. Ou. Je sais plus. Mas eu queria ouvir-te outra vez. Pedi-te que viesses tu e esperei-te na plataforma e não te via. Porque não me lembrava da tua cara. Que a mim interessam-me pouco caras e corpos. De ti guardara a companhia. As horas que pareceram segundos. Falámos de coisas tantas no compartimento vazio toc toc do comboio. Rimos. Calámo-nos pensativos. Sorrimos. Levantámos a voz entusiasmados pela discussão. Eu lembro-me do livro que tinha na mão. Há catorze anos. Mas eu lembro-me. Contei-te a história da península que se arrancava do continente e lhe virava as costas e navegava sozinha pelo oceano. Lembro-me dos teus olhos brilhantes. Tu sais mon père il est espagnol. O teu doce sotaque mediterrânico. Tão firme na minha memória. Não a cara nem o corpo. Não me lembrava de seres tão alto. Nem do teu sorriso. Quando me viste e pousaste a mala e acenaste. E avançaste de braços meio abertos para um forte abraço mediterrânico. As mãos em posição para me atacarem as costas. Eu estendi-te uma mão fria e um sorriso contido. Depois disseste-me que te parou o coração. Que pensaste que não estava contente de te ver. Ah mas estava. Mais je suis comme ça tu sais. Maintenant je sais maintenant je sais que t'es comme les allemands. Les allemands. Ouais les allemands toujours froids et distants tu sais ma mère elle est allemande et toi t'es comme les allemands. On m'avait jamais dit ça. Quoi que ma mère est allemande. Fais pas le con. Allez je plaisantais ah vous les portugais vous êtes pas faciles heh.
Voz salgada. Je pars. Tu pars. T'as une drôle de voix quand on te réveille. Fais gaffe aux sirènes galiciennes. Fais pas le con. Que vous êtes dificiles les marseillais. Abraço forte apertado longo. Dias tão curtos tão bons. A tua cara séria dura enquanto lias o jornal numa língua que desconhecias. Mais tu sais l'espagnol et le latin ça m'aide beaucoup je comprends presque tout. Agora mal conseguia levantar a cabeça. Dormimos quê. Duas horas. Menos. Uma noite inteira sentados em frente um do outro. Olhos nos olhos. Palavras lentas silêncios longos. A saudade já já já nos toca já nos abraça. Se eu não fosse tão alemão. Tu me manques déjà. Je t'aime fort. Não te disse nada disto. Porque também desta vez não te abracei. Estendi-te a mão. E tu sorriste. Apertaste-ma com tanta força. Mon petit portugais allemand pensaste tu. Fais gaffe aux sirènes. Met de la cire dans tes oreilles. Amarra-te ao mastro do barco. Não te deixes ir.
E eu acreditei. Ó ingénuo. Naquele quarto. Aquele. Onde me esborrachariam mamas contra a cara. Noite branca. O cheiro do álcool fermentado na boca fumada. Depois abria os lábios túmidos e falava sem palavras. Ouvia-lhe o respirar pausado. O hálito nocturno. Empurrava-me bruta louca. Costas queimadas na alcatifa ai ai ai. Devia ser eu por cima de ti. Quer isto dizer alguma coisa. Despe-me doida. Pára. As calça. Pára parva. E eu mordo-lhe os lábios. Húmidos. Tenho de te querer. Mas eu. Tu sabes.
_gostavas de me ver com outra mulher _és doida _não não eu gosto eu queria _tu gostas de mulheres _gosto e tu gostas de homens que eu sei _cala-te _sabes do que é que eu gostava _cala-te _gostava de ter aqui na cama um gajo e uma gaja e eu fazia com ela e tu com ele _cala-te
Depois lembro-me de lhe ver as carnes brancas brancas saltando da camisa desabotoada. E a voz doida que me esfregava queimava as costas na alcatifa. O cheiro da noite. Ronronar rom rom nos meus ouvidos rom rom rom rom e a língua quente quente passando lenta lenta rom rom.
_lambe-mas mama-mas come-mas.
Não sabe o que me pede. Eu não quero. Por mais que queira querer. Esborrachadas contra a minha boca. Mamas brancas quentes molhadas. Suadas. Lambidas. Mama-mas. Pára. Cala-te. Olhos tão grandes que me entram pela alma adentro. Cinzentos encaracolados. E depois suspirei e rebolei para o lado. Não quero. A tua pele tão suave. Doce pêssego. Roça na minha. Roça. Tão suave. Por isso não quero. Se fosse. Sabes. Se me arranhasse a minha. Como arranha a minha a tua.
_anda ali ao quarto para te mostrar uma coisa _o quê _cala-te e anda
[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel direito)]
Desta vez baixava os olhos de vergonha e remorso. Porque ela não me olhava com raiva nem despeito. E eu merecia raiva e despeito. Não se faz. Não se faz. Eu sabia que ela. Fazer isto a uma miúda tão. Deitava-me uns olhos tão ternos tão cheios de amo-te apesar de tudo. Tão tão. Como se a tivesse amado.
Depois ela mordia-me a orelha e gemia. Tira-me a virgindade. E eu. O que se diz a isto. Quando uma mulher nos morde a orelha e nos pede que lhe tiremos a virgindade. Que esteja calada. Que tenha juízo. Foi o que lhe disse. E ela ria. Não percebeu. Ou estaria a rir-se dele. Que não dizia nada. Mas gemia e arfava. Não sei. Não quis saber o que fazia. E eu disse que não tirava virgindades a ninguém. Que se calasse com os gemidos. Que me deixassem dormir. Que não queria ter sexo com ela. Nem com ele. Nem comigo. Que estava tão cansado. Que aceitara vir dormir com dois amigos. Não com dois amantes. Que me arrependia de os ter beijado. Que me deixassem em paz. Eu tinha dezanove anos. Hercle.
Foi tudo um erro grande. Não devia. Porque era só beber um café. Mas quem bebe um café. Bebe um gin. Ou não. Ou uma cerveja. E a noite tão amena. Quando se tem dezanove anos e não se sabe para onde ir. Depois vai-se para um bar no Bairro Alto com dois amigos.
Ela é bonita. Há entre nós uma química, como se diz nos romances pirosos. Vinte anos. Ou vinte e um. É mais velha do que eu. Não sei. Isto de querer saber a idade. Vem da aldeia. É virgem. Orgulhosamente. Aquela ingenuidade tão cativante. Olha-me com devoção. O miúdo da cidade. Tão cheio de brincos e roupa estranha. Não sabe que mais ingénuo sou eu. Que não sei o que quero. Ou sei. Mas não quero. Porque tenho medo. Porque. E ri-se. Ri-se como se dissesse ama-me. E se eu pudesse amava-a. Como amei e desejei a C. Aquelas noites loucas. Quando se lançava para cima de mim e me esfregava na cara as mamas violentas. Faz de mim o que quiseres. E eu não. Bom. Sim. Não sei. Eu tenho dezanove anos. Não sei para onde quero ir.
Ele é estranho. Efeminado. Detesto homens efeminados. Não suporto o teu riso maricas. E a maneira como me olhas. Eu sei o que tu queres. O que eu quero. Mas afasta-te de mim. Noli me tangere. Porque eu não sei não sei. O teu corpo. Não. Essa barba de vários dias. Eu não sou maricas. Sabes. Porque é verdade que ainda há meses. Sim. No Frágil. Um beijo. Mas isso não faz de mim um maricas. Ou faz. Faz faz. Porque não é o beijo. É o que vem atrás. O desejo. Não era preciso dar o beijo para ser maricas. Bastava desejá-lo. Pensar nele. Mas que digo eu. Afasta-te de mim por favor. Noli me tangere. Aprende latim. Eu tenho dezanove anos. Não sei para onde quero ir.
Beija-me. Não o diz. Ou diz. Com os olhos. Quem. Ele ou ela. Os dois. Eu estou no meio. E não sei. O cheiro suave de mulher. A pele arranhada da barba. Não sei. Porque eu sempre beijei mulheres. Mas. Não era só curiosidade. Desejo. Mas a coragem. E depois aconteceu no Frágil. O beijo. E eu tinha decidido deixar de viver a minha mentira. Não é fácil.
Não me lembro. Beijava-me furiosamente. E eu deixei. Correndo-lhe o corpo com as mãos frenéticas. Outra vez aquele sensação tão estranha. Barba. Adeus adeus. Adeus mentira. E depois olhei-a e vi-lhe tanta tristeza naqueles olhos. E dei-lhe um beijinho. Na cara. E depois agarrei-a e abri-lhe a boca e beijei-a com todas as minhas forças. Ela gemia de prazer. E eu larguei-a e sentei-me. E olhei para os dois e odiei. A mim. Aos dois.
[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel esquerdo)]
«En algún tomo de las Cartas edificantes y curiosas que aparecieron en París, durante la primera mitad del siglo XVIII, el P. Zallinger, de la Compañía de Jesús, proyectó un examen de las ilusiones y errores del vulgo de Cantón; en un censo preliminar anotó que el Pez era un ser fugitivo y resplandeciente que nadie había tocado, pero que muchos pretendían haber visto en el fondo de los espejos. El P. Zallinger murió en 1736 y el trabajo iniciado por su pluma quedó inconcluso: ciento cincuenta años después Herbert Allen Giles tomó la tarea interrumpida. Según Giles, la creencia del Pez es parte de un mito más amplio, que se refiere a la época legendaria del Emperador Amarillo.
En aquel tiempo, el mundo de los espejos y el mundo de los hombres no estaban, como ahora, incomunicados. Eran, además, muy diversos: no coincidían ni los seres ni los colores ni las formas. Ambos reinos, el especular y el humano, vivían en paz, se entraba y salía por los espejos. Una noche, la gente del espejo invadió la tierra. Su fuerza era grande, pero al cabo de sangrientas batallas las artes mágias del Emerador Amarillo prevalecieron. Éste rechazó a los invasores, los encarceló en los espejos y les impuso la tarea de repetir, como en una especie de sueño, todos los actos de los hombres. Los privó de su fuerza y de su figura y los redujo a meros reflejos serviles. Un día, sin embargo, sacudirán ese letargo mágico.
El primero que despertará será el Pez. En el fondo del espejo percibiremos una línea muy tenue y el color de esa línea será un color no parecido a ningún otro. Después, irán despertando las otras formas. Gradualmente diferirán de nosotros, gradualmente no nos imitarán. Romperán las barreras de vidrio o de metal y esta vez no serán vencidas. Junto a las criaturas de los espejos combatirán las criaturas del agua.
En el Yunnan no se habla del Pez, sino del Tigre del Espejo. Otros entienden que antes de la invasión oiremos desde el fondo de los espejos el rumor de las armas.»
Jorge Luis Borges, Margarita Guerrero, El Libro de los seres imaginarios. Ed. Alianza Editorial
«She raised herself up on one elbow to get a better view of his face, and they held each other's gaze. It was still a novel and vertiginous experience for them, to look for a minute on end into the eyes of another adult, without embarrassment or restraint. It was the closest they came, he thought, to making love.»
Ian McEwan, On Chesil beach
Porque eu baixava os olhos e não sabia porquê. Mesmo quando te vi entrar e não sabia quem eras. Podia ter-te seguido com o olhar. Mas não. Porque. Não sei. Olhei para ti. Não foram os teus olhos. Não foi o teu corpo. Não é o teu corpo. És tu. E depois olhavas-me e rias o teu riso lindo. Eu ficava vermelho e ria pateta. Baixava os olhos e não sabia porquê. Sabes que eu tenho medo dos olhos das pessoas. Medo de que me dispam. E portanto baixo os olhos. Mas eu não tinha medo de que me despisses. Não tenho. Por isso não sei porque baixava os olhos quando me olhavas.
Então decidi deixar de viver a minha mentira. Aqueles lábios beijavam beijos diferentes. Não eram mais doces. Nem mais quentes. Havia outra coisa. Não era só o beijo. Não era a barba que me arranhava a pele habituada a doce penugem de pêssego mulheril. Não não. Nem isso. Não estávamos abraçados. Não podia senti-lo. Só as mãos e os braços e a cara. E o beijo. Nem o cheiro de homem. Porque o homem cheira a homem. E era um cheiro novo nos meus dezoito anos que até então só tinham sentido cheiro de mulher. Mas não era isso. Então o que era. Não me perguntes. Não sei. E enquanto me sentava e pegava no copo de porto e passava a mão pela cara arranhada. E sentia o calor da mão dele na minha e do hálito doce. Doce doce. E enquanto serenava o coração destrambelhado. Deitava-lhe os olhos e via-lhe o perfil rude e os lábios que se abriam num riso de miúdo. Então decidi deixar de viver a minha mentira. Ganhar coragem. Ser homem. Agarrar a vida. E viver aquilo que eu era que eu sou.
[Pieter Bruegel o Velho - Brincadeiras de crianças (pormenor)]
I am the passenger and I ride and I ride I ride through the city's backside I see the stars come out of the sky yeah they're bright in a hollow sky you know it looks so good tonight (cantado por Iggy Pop)
André ao seu Ρ.Α.
Tive medo sim. Eu tive medo de ti. Tive medo de mim. Porque sim eu estendia a mão e logo a recolhia. Com medo. E eu só queria abraçar-te. Sabes. Apertar-te nos meus braços e dizer-te gosto de ti. Sim eu sei. Abracei-te muitas vezes. Mas nunca te disse gosto de ti. Não era preciso.
E agora não sei se abrace se diga se faça. Porque eu gosto. Muito. E eu queria abraçá-lo e dizer gosto de ti. Passar-lhe a mão pelo cabelo pela cara e dizer gosto de ti. Mas sigo. Amando olhando não tocando. Com medo. Sempre com medo. Não tenho emenda. Não tenho mesmo emenda.
Eu lembro-me. Eu sei que tu me sentiste. E eu senti-te. E suei. E fiquei tão vermelho. Mas não me mexi. Nem tu. Ficámos. E mais nada. Estou a ficar vermelho. Não falemos mais disto. Há tanta gente a ver. E há coisas que. Tu sabes.
tú gitana que adevinhas me lo digas pues no lo sé si saldré desta aventura o si nela moriré
o si nela perco la vida o si nela triunfaré tú gitana que adevinhas me lo digas pues no lo sé
(anónimo renascentista cantado por Zeca Afonso e Luar na Lubre)
Ρ.Α. ao seu André
Não tens emenda. Olhas. Amas. E não tocas. Tiveste medo de mim. Não digas que não. Porque eu li-to nos olhos. E nas mãos. Que se erguiam para me tocarem. E depois desciam medrosas. Medo de quê. Consomes-te. Se me tivesses tocado. Mas não. Tu tocaste-me. Lembras-te. Eu senti-te. Sim sim. Não fiques já tão vermelho. Não vou contar. Tu sabes que eu te senti. E eu não te afastei. Podia ter-te empurrado. Questamerda. Ainda assim. Olhavas amavas. E não tocavas. Mesmo quando. Lembras-te. Quando me beijaram. E tu viste como eu reagi. Ou não. Não viste. Porque eu não reagi. Tão novos. Aqueles lábios nunca eu tinha provado. Tu lembras-te do outro. Que era igual só que. Esquece. Não fica bem aqui. Desculpa. É que isto é difícil. Porque eu nunca. E de repente. Mas sabes. Não. Esquece. Depois perguntei-te. Vistemogajo. E depois perguntei-te coisas sobre ele. E o ciúme nos teus olhos. Não. Não era ciúme. Raiva. De ti mesmo. Dos teus medos. Das tuas inseguranças. Porque ele foi capaz e tu não. E eu não lhe disse questamerda nem o empurrei. Em vez disso quis saber coisas sobre ele. Eu não o conhecia bem. A ti sim. Tão bem. Tu sabes que eu gostava muito de ti. Nunca saberás se. Porque nunca to disse. E não é agora que to vou dizer. Diante desta gente toda.
Eu lembro-me do teu beijo na minha cara. Não era a mesma coisa. O do outro era um beijo sensual. No teu havia tanto carinho. Eu sei. Eu sabia. Mas no teu beijo não havia desejo. E por isso ri. Olhei-te e ri. E tu ficaste vermelho. Gaguejaste. Sabes que gaguejas quando estás nervoso. E as pessoas ficam a olhar para ti comiseradas. Coitadinho é tonto. Mas eu sabia que tu não eras tonto. Tonto sim de amor. Isso eu sabia. Mas eu não podia. E aquele teu beijo. Na cara. Não era um beijo de amor. Respeitavas-me tanto. Demasiado. Pedias-me desculpa quando achavas que invadias a minha intimidade. E eu ria. Tonto. És tão tonto. O teu beijo. Beijo de irmão.
Se eu fosse alguma coisa se eu fosse alguém também teria tantas saudades tuas também te quereria tanto. Mas eu sou nada. Eu não sou. Sou imagem na tua memória. Sou memória.
Stately, plump Buck Mulligan came from the stairhead bearing a bowl of lather on which a mirror and a razor lay crossed. A yellow dressinggown, ungirdled, was sustained gently behind him by the mild morning air. He held the bowl aloft and intoned:- Introibo ad altare Dei. Halted, he peered down the dark winding stairs and called out coarsely: - Come up, Kinch! Come up, you fearful jesuit!
James Joyce, Ulysses
Dezasseis de Junho de dois mil e sete em Lisboa.
Rectas facite semitas eius. Mais direitas ainda. Mais ainda. E esta chuva triste. Porque nunca se viu Junho assim. Eu nunca vi. Junho de chumbo. Sol atrás. Se lhe dissesse. Não sei. Talvez. É que isto não é vida. Outra vez. Outra vez não. É tão fácil. Dizer. O não é o presente. O não já eu tenho. Ainda bem que não trouxe os sapatos de sola gasta. Pneus carecas. Como daquela vez. Escadas molhadas e pum. Pum pum pum. Podia ter partido a coluna. Ainda pensei calçá-los hoje. Mas com este tempo. Maldito tempo. Maldita calçada portuguesa. Porque no alcatrão ou no cimento não. É só na pedra lisa. Não me sai do pensamento. Na altura certa. Arrebatado. E agora é diferente. É sempre diferente. Se eu pudesse escolher. Escolhia a mesma coisa. Digo eu. Porque não posso escolher. Porque só conheço isto. Antes mal com o que conheço. E se não. Não não.
Este já tenho este já tenho. Este não quero. Este já tenho. Este é chato. Este já tenho. Este deve ser daqueles. Daqueles para ler no metro. Eu leio Joyce no metro. Percebes o que quero dizer. Percebo. Daqueles que não obrigam a pensar. Este é bom. Mas não vou ter tempo. Quando olho para as minhas estantes e vejo quantos me falta ler. Nunca conseguirei. Vivesse eu duzentos anos. Este já tenho. Este quero se encontrar o original inglês. Este deve ser insuportável. Porque traduções só de língua que não saiba. Alemão ou chinês ou russo. Ainda podia ir ver a Gaivota outra vez. Havia alguém que dizia que. Tanto que. Que em férias só lia coisas que. Outro que. Que não obrigassem a pensar. Eu não consigo entender isto. Porque se não obrigar a pensar. De que serve. Um livro que não obrigue a pensar. Um livro para o lixo. Quem pode tirar prazer de não pensar. Gay & lesbian. Uma idiotice. Morte em Veneza será gay. Platão. De que serve um livro para gay & lesbian. Bom bom. É como os desfiles. Sum quod sum es quod es. E os outros nada têm que ver com isso. É que se eu quero esquecer-me dos problemas do dia não faz sentido que leia algo que não faça pensar. Porque se não faz pensar então eu volto a pensar nos problemas do dia. Este. They were young, educated, and both virgins on this, their wedding night, and they lived in a time when a conversation about sexual difficulties was plainly impossible. McEwan. Vou levar este. Onde estás. O que estás a fazer agora. Estou a pensar em ti. Queria estar contigo. Gostei tanto do In Between the Sheets. Aquelas noites frias em Queluz. À espera dos Contos do Imprevisto. Não encontro o Dahl. Bolas.
Onde está a Lhasa não está tem de estar. Lisa Gerrard. Bom bom bom. Tinha de ser antes. E se levasse a Lisa. My precious love. Mensagem tua será. É que o não está garantido. Sim sim. Não há Lhasa. Impossível. Melhor não entrar na clássica. Ir embora. Quando ia todos os dias àquela discoteca tão pequenina. Havia sempre uma caixa de música antiga. Ora muito bom dia tenho aqui coisas novas tão boas quer ver. Não não. Vou-me embora. Já chega. Ora adeus. Quantos terei comprado. Uns trezentos. Depois quando me fui embora achei que devia ir avisá-lo. Porque o senhor mandava vir coisas a pensar em mim. Estarás a pensar em mim. E eu fui lá e disse bom dia é só para dizer que me vou embora não mande vir mais coisas a pensar em mim.
Não devia. Faz mal. Engorda. Hm. Bira بيرة . Gostava de saber mais árabe. Como se dirá quero uma cerveja preta. Preta é 'asswada أسودة . É melhor não inventar. Porque os franceses dizem vinho vermelho e a gente vinho tinto e os gregos vinho preto. Os teus olhos são parecidos com os dele. Os dele são mais bonitos. Se calhar não são. Mas de ti não gosto não te conheço. E dele tanto tanto tanto. Por isso os dele são mais bonitos mesmo que não sejam. E estás a olhar para mim porquê. Não não. Agora não. Agora não tenho olhos para mais ninguém. Vou escrever-lhe. Dizer-lhe. Mas estas coisas não se dizem numa mensagem. Mais uma por favor. Já está. Já já. Já está. Não posso. Não devia. E agora.
Tanta noite na chuva. O caminho não acaba. Não me doem as pernas. Andaria mais duas dezenas de quilómetros. Arena tan suave. No es blanca sino amarilla. Amariblanca. Pero da igual. Iria por aqui. Agora não parava agora continuava. E chegava a meio da noite. Que importaria. Bom bom deixemo-nos de sonhos. Nunc est dormiendum. Talvez amanhã. Não sei. Já não sei nada. Só sei que. Sim.
Não sei se. Se calhar não devia. Não sei como. E foram só palavras. Não diziam nada. Ou diziam. Diziam tanto. Tudo. Não são precisas. Porque os olhos e as mãos. Foi um impulso. Escrevi o que me ia na alma. Três palavras. Que querem dizer apenas duas. Quais. Já as viste. Nos meus olhos nas minhas mãos.
Não sei. Não sou. E se um dia me perguntarem. Se um dia me disserem. Eu não acreditarei. Porque nada disto é real. E eu vivo num sonho que vai acabar quando eu acordar quando me acordarem. E enquanto não acordar. Não sei. Não sou. Vou sonhando. Mão estendida para te tocar. Que os meus dias são tão cheios. E um dia. Abraçar-te-ei um dia. Terei coragem. Perderei o medo. Σ'αγαπώ.
outra vez me agita Eros o coração vento pela montanha lançando-se sobre os carvalhos (Safo)
Há o vento e há a chuva e há o quente quente da noite. Há esta luz que me inunda o peito. Não são precisas palavras quando os olhos dizem. E os meus olhos dizem que. Não vês. Vês. Devia dizer-to por palavras. Tenho medo. De te perder.
«La sábana te cubre a medias, mis dedos empiezam a bajar por el terso dibujo de tu garganta, inclinándome respiro tu aliento que huele a noche y a jarabe, no sé cómo mis brazos te han enlazado, oigo una queja mientras arqueas la cintura negándote, pero los dos conocemos demasiado ese juego para creer en él, es preciso que me abandones la boca que jadea palabras sueltas, de nada sirve que tu cuerpo amodorrado y vencido luche por evadirse, somos a tal punto una misma cosa en ese enredo de ovillo donde la lana blanca y la lana negra luchan como arañas en un bocal.»
[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel esquerdo)]
breathe life into this feeble heart lift this mortal veil of fear take these crumbled hopes, etched with tears we'll rise above these earthly cares Loreena McKennitt
André ao seu querido Ρ.Α.
Eu respondo-te todos os minutos todos os momentos. Mesmo quando não respondo. Porque tu não deixas o meu pensamento. E a tua memória vive na minha. Por isso não te zangues. Embala-me sim nos teus braços de nada enquanto de novo me enredo em doce paixão. Platónica. Outra vez.
Eu não tenho medo. Não me digas que tenho medo. Porque olhar amar não tocar. Não não. Não tenho medo. Eu quero tocar. Mas tu sabes. Se eu toco e me diz pára. Se eu toco e não me toca. Porque me é mais fácil não tocar. Porque se não tocar. É que se não tocar não sou rejeitado. E se não for rejeitado não sofro. Percebes. Não. Tu não percebes. Porque se não me quer. Excrucior. Tenho medo. Tenho medo outra vez. Tanto medo.
E não passo disto. Olhar amar não tocar. Um dia toquei-te. Lembras-te. E tu riste. E eu fiquei tão vermelho. Tinha bebido. E depois cruzámo-nos na pista de dança. Eu tinha ido buscar mais um copo. Abracei-te com tanta força. E dei-te um beijo na cara. Naquele momento a minha vida parou. Porque era tudo o que eu queria. Ter-te nos meus braços. Não era o beijo. Não era o calor do teu corpo apertado contra o meu. Porque eu não sou corpo. Tu sabes. Eu não sou carne.
Ter-te nos meus braços. O teu ser no meu. A minha vida parou naqueles momentos em que te senti tan cerca tan cerquita de mi. Y no me lo pude evitar. Porque te. Y entonces te miré en los ojos y te pregunté si te enfadaras. Que no pasaba nada me dijiste. Pero sí. Había pasado algo. A mi se me había pasado algo.
E agora não sei. Já não sei nada. Sabes. Há dias assim. Tão belos. Que não queremos acabem nunca.
En esta casa hay algunas biblias inglesas, incluso la primera, la de John Wiclif. Tengo asimismo la de Cipriano Valera, la de Lutero, que literariamente es la peor, y un ejemplar latino de la Vulgata. Como usted ve, no son precisamente biblias lo que me falta.
Jorge Luis Borges, El libro de arena
Ρ.Α. ao seu André
Não me respondeste à minha última carta. Não. Eu sei. Respondeste. Afinal foste tu que a escreveste. Mas deixa-me repreender-te ainda assim. Deixa-me dizer-te que sinto a tua falta. Escrever e não ter resposta. Mas eu sei. Eu sei. E não sei se. Porque tu. Os teus olhos. Tanta luz. Não cegues. Não sabes se.
Amens amansque. Em português não funciona. Outra vez te vejo os olhos dançantes. Outra vez te vejo conformado. Olhar amar. Não tocar. Porquê. Tens medo de quê. Eu sei. Não respondas. Eu sei. Já nos conhecemos há tanto tempo. Mesmo antes de nos conhecermos. E eu sei. Não fujas. Não fujas outra vez. Não tenhas medo.
La curiosidad pudo más que el miedo y no cerré los ojos. Jorge Luis Borges, There are more things
Los días las horas todo pasa fluye. Tan despacio despacito. Te echo tanto de menos. Tanto. Y a tus ojos. Tu sonrisa. Si supieras tú. Ayer. No sé cómo lo hice. Por qué lo hice. Tan cerca tan cerquita de ti. No me lo pude evitar. Cerré los ojos. Para no ver los tuyos. Con miedo. De que te hubieras enfadado. Sabes. No se lo digas a nadie. Pero.
[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel central)]
La línea consta de un número infinito de puntos; el plano, de un número infinito de líneas; el volumen, de un número infinito de planos; el hipervolumen, de un número infinito de volúmenes... No, decididamente no es éste, more geometrico, el mejor modo de iniciar mi relato.
Jorge Luis Borges, El libro de arena
E ainda há tão pouco tempo. Não não. Agora é tão diferente. Tão como. É como. Sim. Há dez anos. Mas mais. Tão mais.
utinam te brachiis meis tenerem utinam labeis oscula tuis ponerem utinam me tuos in oculos mergerem utinam انشاء الله قلبي لك
[Bosch - Jardim das delícias terrenas (pormenor do painel central)]
Ahogarme en tu cuerpo quiero (Tito Mejía Sarmiento)
glosa mía
ahogarme en tu cuerpo olvidarme en tus manos en tus manos de arena en tus manos mis sueños en tus brazos en tus brazos de concha en tus brazos caerme dormido en tus brazos perdido en tus cabellos hilos de alga dorada en tus cabellos liarme enlazarme prisionero en tus labios en tus labios dejar mi vida en tu piel perder mis dedos en tu piel de perla salvaje ay en tus labios en tus labios beberte en tus ojos cielo de estrellas calientes en tus ojos en tu cuerpo ahogarme
Cerrar podrá mis ojos la postrera sombra, que me llevaré el blanco día; y podrá desatar esta alma mía hora, a su afán ansioso linsojera; mas no de esotra parte en la ribera dejará la memoria en donde ardía; nadar sabe mi llama la agua fría, y perder el respeto a ley severa:
Alma a quien todo un Dios prisión ha sido, venas que humor a tanto fuego han dado, medulas que han gloriosamente ardido, su cuerpo dejarán, no su cuidado; serán ceniza, mas tendrán sentido. Polvo serán, mas polvo enamorado.
my precious love can only come from above in unity is born a kiss of dignity
(cantado por Lisa Gerrard)
Se me perguntas porquê. Não sei. Pudesse eu dar-te uma resposta. É que não sei. E quando não sei. Eu sei. Tus ojos de acero. Ya lo ves. E o dia segue lento lento lentinho.
No acabo de entender lo de los arquetipos platónicos. Nadie recuerda la primera vez que vio el amarillo o el negro o la primera vez que le tomó el gusto a una fruta, acaso porque era muy chico y no podía saber que inauguraba una serie muy larga.
Jorge Luis Borges, La noche de los dones
Tal vez no sea nada. A lo mejor. Pero ojalá que sí. Ahogarme. En tus ojos. Y si. Anda. Bueno. Ya no sé. Pero es tan. Es tan bueno estar aquí. يَا رَبُّ، مَا أَحْسَنَ أَنْ نَبْقَى هُنَا. Ya rabbu, mâ ahhsana an nabqâ hunâ. Si supiera un poquito más de árabe. Podría decírtelo y no lo entenderías tú. Aunque ya lo has entendido. ¿O no?
gracias a tus brazos doy por haberme alcanzado (cantado por Lhasa de Sela)
Cheira a algas e a peixe e a maresia. A maresia forte. Porque o cheiro a maresia não tem tantas algas não tem tantos peixes. E eu não sei se é cheiro. Se é o mar que me abraça. Um dia fiquei a ver o mar. Mas agora é o mar que. E o vento fresco. Não sei. Ainda não sei. Porque daqui a pouco. As gaivotas calar-se-ão. E o vento sossegará. Pectus tantum meum audies.
A tarde cai para dentro do mar e eu deito os olhos no cerúleo. À procura não sei de quê. Ainda. Porque daqui a pouco. Daqui a pouco saberei. É que tive de me perder. Para te me encontrar.
«E quando chegarom aa Seda Perigosa, acharom i leteras novamente fectas, que diziam: 'A CCCCLIII anos compridos de morte de Jhesu Cristo, em dia de Pinticoste, deve haver esta seeda senhor'. Par Deus, disse Lançalot, quando esta maravilha ouvio: pois hoje deve haver senhor, ca da morte de Jhesu Cristo a este Pinticoste há CCCCLIII anos. E bem querria se podesse que estas leteras nom visse niũũ atee que veesse aquele que a há d'acabar.»
A Demanda do Graal, 8 (tradução portuguesa do século XIII)
Ρ.Α. ao seu André
Assim sim. Sim. Sinto-te tão tão. Outra vez. Como as coisas são tão. Tão mais. Quando te dizia que não te agarrasses a mim morto. Agora não precisas. .أحبه ويحبك إنشاء الله Gosto tanto de te ver assim. O mundo não acabou. Vês. Assim. De repente. Preso naqueles olhos. Ai ai. E eu escrevo e leio e sinto. E é como se fosse eu. Porque eu sou eu. Porque eu sou tu. E quando. Não não. Deixa correr. Porque mesmo que não. Mesmo que. Assim estás tão bem. Assim eu.
Tão bom tão estranho. Et Salmanticae tu. Iterum. Estava lá o Tormes. E a Fonda Lisboa. Lembras-te. Eu não. Porque eu não estava lá contigo. Mas eu sei. O clac clac abafado das cegonhas cortando o calor da tarde. O corpo molhado debaixo do duche tão fresco. E a noite quente quente. Um dia voltarás a contar isto tudo. Eu não me lembro. Mas sei. Tão miúdo. Vinte e um anos curso acabado. Cabelo comprido tantos brincos. Óculos redondos pequeninos. Calças rotas botas militares. Bebendo sangria tanta tanta fumando cigarros. Havia o Edward e o amigo e a holandesa avantajada. Parvo. Dá Deus nozes a quem não tem dentes. Os outros holandeses. Quantos eram. Não te lembras. Eu também não.
E agora. Tantos anos depois. Tão diferente. Tu. Porque o Tormes ainda lá está. Igual. Mas tu. Cabelo curto com cãs. Os brincos sim. Mas menos. E a roupa roupinha tão bonita bonitinha. Não há holandesas avantajadas nem ingleses de olhar penetrante. Há respeitáveis académicos espanhóis e portugueses. E tu académico. Quem te diria. Quem te via. Quem te sente. Tão calmo sempre tão calmo.
Sinto que não me queres ler. Ouvir. Porque tens a tua cabeça noutro lugar. E eu gosto de te ver assim. De te sentir. Porque quando te sentes. Eu também te sinto. Me sinto. Deixo-te mergulhado nos olhos cerúleos que te aprisionaram. Não te afogues.
«Según un pasaje de Séneca, Tales de Mileto enseñó que la tierra flota en el agua, como una embarcación, y que el agua, agitada por las tormentas, causa los terremotos. Otro sistema sismológico nos proponen los historiadores, o mitólogos, japoneses del siglo VIII. En una página famosa se lee: "Bajo la Tierra -de llanuras juncosas- yacía un Kami (un ser sobrenatural) que tenía la forma de un barbo y que, al moverse, hacía que temblara la tierra hasta que el Magno Dios de la Isla de Ciervos hundió la hoja de su espada en la tierra y te atravesó la cabeza. Cuando el Kami se agita, el Magno Dios se apoya en la empuñadura y el Kami vuelve a la quietud". (El pomo de la espada, labrado en piedra, sobresale del suelo a unos pocos pasos del templo de Kashima. Seis días y seis noches cavó en el siglo XVIII un señor feudal, sin dar con el fin de la hoja.) Para el vulgo, el Jinshin-Uwo, o Pez de los Terremotos, es una anguila de setecientas millas de largo que lleva el Japón en el lomo. Corre de norte a sur; la cabeza viene a quedar bajo Kyoto, la punta de la cola bajo Awomori. Algún racionalista se ha permitido invertir ese rumbo, porque en el sur abundan los terremotos y resulta más fácil imaginar un movimiento de la cola. De algún modo, este animal es análogo al Bahamut de las tradiciones arábigas y al Midgardsorm de la Edda. En ciertas regiones lo sustituye sin ventaja apreciable el Escarabajo de los Terremotos, el Jinshin-Mushi. Tiene cabeza de dragón, diez patas de araña y está recubierto de escamas. Es bestia subterránea no submarina.»
Jorge Luis Borges, Margarita Guerrero, El Libro de los seres imaginarios.