31.5.07
Pertundo tunicamque palliumque
Por favor, minha doce Ipsitila,
minha linda, minha doçura,
manda te visite à hora da sesta.
E se o mandares bom será que
ninguém ponha tranca na porta,
nem te apeteça ir à rua,
mas que fiques em casa e nos prepares
nove fodas seguidas.
A sério, se te apetece mesmo, manda depressa,
pois, almoçado e cheio, de barriga para o ar
já rasgo e a túnica e o pálio!
(Catulo, carme 32)
amabo mea dulcis Ipsitilla
meae deliciae mei lepores
iube ad te ueniam meridiatum
et si iusseris illud adiuuato
ne quis liminis obseret tabellam
neu tibi lubeat foras abire
sed domi maneas paresque nobis
nouem continuas fututiones
uerum si quid ages statim iubeto
nam pransus iaceo et satur supinus
pertundo tunicamque palliumque
Epistolário XV
«Is it true? I lie in the dark... it is true, I think it is over. She sleeps, there was no end, the suspension came unnoticed like sleep itself. Yes, the ancient to and fro rocked her sleep, and in sleep she drew me to her side and placed her leg over mine. The dark grows blue and grey and I feel on my temple, beneath her breast, the ancient tread of her heart to and fro.»
Ian McEwan, To and Fro
Queria saber o que é ser nada. Não não não ralhes comigo. Porque ser nada é tão melhor do que ser isto. Tu sabes. É que ser isto. Ver os dias caindo uns sobre os outros. Iguais. Chumbados. Noites pegajosas lambem-me com línguas de sal as feridas do corpo partido. Et excrucior. As horas choradas à espera do fim. Eu quero saber o que é ser nada. Porque eu sei nada. Senão os dias de chumbo rebolando sobre as noites de visco. Et excruciabor. Não sei o ser corpo frio descarnado em caixa escura. Mas sei o ver corpo frio amado sem vida. Sei o ouvir a terra cair pesada sobre corpo frio amado sem vida. Não sei a dor horrenda que te arranca as entranhas e te mata devagar devagarinho com data marcada. Mas sei a dor medonha que me devora a alma e ma mata devagar tão devagarinho. Não ralhes não por favor. Porque eu sei. A tua dor não tem igual na minha. Porque a tua rasgou-te e sangrou-te e comeu-te a carne e matou-te. E a minha não rasga nem sangra nem come nem mata. Porque a minha está na alma não está no corpo. Tu sabes. Mas tenho esta outra dor que tu não sabes. O ver-te estendido quase invisível branco sem vida. E nem esta mata nem come nem sangra nem rasga. Mas dói dói tanto e nunca mais pára nunca mais morre. Assombra-me as noites e os dias e os sonhos. E eu sei que não me deixa a alma enquanto tem corpo que a alimente. Por isso, amigo, às vezes gostava de ser nada. Porque ser isto.
Eras Sol forte quente que me ardia o corpo. Não Lua statu uariabilis que vai minguando com o passar dos. E um dia será Lua Nova. Sabes. Invisível. Está lá mas a gente não a vê envolta em sombra. Como se ali não estivesse. Agora vai minguando minguando já quase não se vê. Porque quer. Podia ser astro quente tão quente como os. Mas enrola-se conformado derrotado no seu leuis status uariabilis. Porque eu sei. Um dia breve breve ser-me-á status indifferens. Et exultabit anima mea. Até lá vou virando lento as costas e olhando para o horizonte de onde nascerás tu Sol forte quente. Statu stabilis. Não sei para quem escrevo. Não sei quem és tu. Não sei quem espero. Porque tu não voltas a nascer. E tu morreste.
Et excrucior
Odeio e amo. Porque o faço, talvez perguntes.
Não sei. Mas sinto-o. E morro-me.
(Catulo, carme 85)
odi et amo quare id faciam fortasse requiris
nescio sed fieri sentio et excrucior
30.5.07
Epistolário XIV
my precious love can only come from above
in unity is born a kiss of dignity
(cantado por Lisa Gerrard)
Ρ.Α. ao seu André
Não fales de cinzas tu que não sabes o que é ser pó. Não fales de frascos negros de ferro. Tu não sabes o que é caixa negra comprida fechada. E o peso da terra que não me foi leve. E a carne seca colada aos ossos. E os olhos vazios e a boca partida. E agora nem dois nem um nenhum. Por isso não fales. Não fales. Cala-te. É que tu não sabes o que é ser nada.
Não te agarres a mim morto. Não te deites lançado na minha sepultura. Não te amarres à minha memória. Porque eu. Tu sabes. Eu não te traí. Não te menti. Não te enganei. Não neguei hoje o que afirmei ontem e não afirmei hoje o que neguei ontem. Nunca te magoei. Eu estou morto. E os mortos não traem nem mentem nem enganam nem magoam. Nem contradizem. Os mortos são confortáveis. Mas não te agarres a mim confortável. Porque eu não te posso dar nada. Porque eu sou nada.
Que queres dizer com passares pelo fogo. Não digas. Cala-te. Porque tu não sabes o que dizes. Dimittite illi: non enim scit quid dicit. Qual fogo. Tu não sabes o que é o fogo da dor que nos arde queima por dentro. Tu não sabes nada. Porque saber latim e grego e árabe não te dá o direito de saberes o que é o fogo IGNIS ΠΥΡ نار não te dá o direito de saberes nada. Por isso não fales de fogo e de cinzas. Que de fogo e de cinzas e de pó sei eu. E tu não sabes nada.
Se te parece que te ralho. Se te ralho é porque te adoro. Se não não te ralhava. Se não te ralhasse eras-me indiferente. Se me fosses indiferente não te morava a alma dia e noite. Se te parece que te ralho. Se te ralho. Tu sabes.
Quem te viu gordo fraco indolente. E agora levantas trinta e dois quilos. E repetidamente. Não te iludas. Não é nada de extraordinário. Eu se calhar levantava mais do que isso. Mas é tão bom ver-te tão diferente. Já não és gordo. Pela primeira vez na tua vida não és gordo. Nem há dez anos. Quando te lancei o braço e te levantei. E quando foste à inspecção e acharam que fingias fraqueza que não tinhas. Lembras-te. Que vergonha. E tu preferiste sorrir e admitir o que não era verdade. Agora vejo-te tão diferente. Já não te poderia chamar gordo. Nem preguiçoso. Já não te acordaria. Waky waky rise and shine. Because you shine by yourself. Shine up. I know you'll be strong as a ship and wise as a whale. Lhasa. Sempre Lhasa.
Adoro-te. Ainda que aqui seja o nada.
Não te agarres a mim morto. Não te deites lançado na minha sepultura. Não te amarres à minha memória. Porque eu. Tu sabes. Eu não te traí. Não te menti. Não te enganei. Não neguei hoje o que afirmei ontem e não afirmei hoje o que neguei ontem. Nunca te magoei. Eu estou morto. E os mortos não traem nem mentem nem enganam nem magoam. Nem contradizem. Os mortos são confortáveis. Mas não te agarres a mim confortável. Porque eu não te posso dar nada. Porque eu sou nada.
Que queres dizer com passares pelo fogo. Não digas. Cala-te. Porque tu não sabes o que dizes. Dimittite illi: non enim scit quid dicit. Qual fogo. Tu não sabes o que é o fogo da dor que nos arde queima por dentro. Tu não sabes nada. Porque saber latim e grego e árabe não te dá o direito de saberes o que é o fogo IGNIS ΠΥΡ نار não te dá o direito de saberes nada. Por isso não fales de fogo e de cinzas. Que de fogo e de cinzas e de pó sei eu. E tu não sabes nada.
Se te parece que te ralho. Se te ralho é porque te adoro. Se não não te ralhava. Se não te ralhasse eras-me indiferente. Se me fosses indiferente não te morava a alma dia e noite. Se te parece que te ralho. Se te ralho. Tu sabes.
Quem te viu gordo fraco indolente. E agora levantas trinta e dois quilos. E repetidamente. Não te iludas. Não é nada de extraordinário. Eu se calhar levantava mais do que isso. Mas é tão bom ver-te tão diferente. Já não és gordo. Pela primeira vez na tua vida não és gordo. Nem há dez anos. Quando te lancei o braço e te levantei. E quando foste à inspecção e acharam que fingias fraqueza que não tinhas. Lembras-te. Que vergonha. E tu preferiste sorrir e admitir o que não era verdade. Agora vejo-te tão diferente. Já não te poderia chamar gordo. Nem preguiçoso. Já não te acordaria. Waky waky rise and shine. Because you shine by yourself. Shine up. I know you'll be strong as a ship and wise as a whale. Lhasa. Sempre Lhasa.
Adoro-te. Ainda que aqui seja o nada.
Da mi basia mille
Vivamos, Lésbia minha, e amemos.
A má-língua dos velhos mais sisudos
não mais do que um tostão nos valha.
Podem os dias morrer e nascer:
quando a breve luz de vez morrer
noite perpétua devemos juntos dormir.
Dá-me beijos mil, e depois cem,
e depois mil outros, e depois mais cem,
e depois ainda mais mil, e depois cem.
Depois, quando muitos dermos,
baralhá-los-emos para não sabermos quantos,
ou não possa homem mau invejar-nos,
ao saber quantos beijos démos.
(Catulo, carme V)
uiuamus mea Lesbia atque amemus
rumoresque senum seueriorum
omnes unius aestimemus assis
soles occidere et redire possunt
nobis cum semel occidit breuis lux
nox est perpetua una dormienda
da mi basia mille deinde centum
dein mille altera dein secunda centum
deinde usque altera mille deinde centum
dein cum milia multa fecerimus
conturbabimus illa ne sciamus
aut ne quis malus inuidere possit
cum tantum sciat esse basiorum
O miselle passer
Chorai, ó Vénus e Cupidos,
e quantos homens há sensíveis:
morreu o pardalito da minha miúda,
o pardalito, o mais-que-tudo da minha miúda,
que ela mais do que os seus olhos amava.
Era na verdade doce, e a dona conhecia
tão bem como menina a sua mãe.
E não saía do seu colo,
mas, saltitando ora para aqui ora para ali,
só para a sua dona pipilava sem parar.
Vai ele agora por caminho tenebroso
para esse lugar, donde dizem nunca ninguém voltou.
Malditas vós, trevas funestas
do Orco, que todas as coisas belas devorais:
tão belo pardalito me arrebatastes!
Ó maldade! Ó pobrezito pardalito!
Por tua causa vermelham de chorar
os olhinhos inchadinhos da minha miúda!
(Catulo, carme III)
lugete o Veneres Cupidinesque
et quantum est hominum uenustiorum
passer mortuus est meae puellae
passer deliciae meae puellae
quem plus illa oculis suis amabat
nam mellitus erat suamque norat
ipsam tam bene quam puella matrem
nec sese a gremio illius mouebat
sed circumsiliens modo huc modo illuc
ad solam dominam usque pipiabat
qui nunc it per iter tenebricosum
illuc unde negant redire quemquam
at uobis male sit malae tenebrae
Orci quae omnia bella deuoratis
tam bellum mihi passerem abstulistis
o factum male o miselle passer
tua nunc opera meae puellae
flendo turgiduli rubent ocelli
(Catulo, carme III)
al-mathal - المثل
إذا فرغ الفؤاد ذهب الرقاد
(provérbio árabe)
Coração vazio. Porque sabes. Acabou-se. O tempo. E agora. Cansado de. Tu sabes. É que os dias há muito não são dias. E as noites sufocam. Assim devagarinho. Almofada posta sobre a cara. Calígula. Sapatinho. Já não consigo respirar. Vazou. Agora está nada. É nada. Mas há dias em que ainda bate. Qualquer coisa ainda anda por lá. Semente. Pólen. Grão de areia. Depois suspira resfolega e pára. São tão poucos já os dias em que bate. Tão devagarinho. Chegará o dia. Em que. E depois. Queres saber o que diz o provérbio. Está traduzido nestas linhas. Procura. Tolle. Lege. E o que fica em breve partirá.
Um dia acordei
Um dia acordei e pensei que não. Porque não. Não posso. Não quero. Não digo. E depois fechei os olhos e voltei a dormir.
Eπήγα
[Hippolyte Flandrin, 1837 - Jovem junto ao mar]
Eπήγα
Δεν εδεσμεύθηκα. Τελείως αφέθηκα κ’ επήγα.
Στες απολαύσεις, που μισό πραγματικές,
μισό γυρνάμενες μες στο μυαλό μου ήσαν,
επήγα μες στην φωτισμένη νύχτα.
Κ’ ήπια από δυνατά κρασιά, καθώς
που πίνουν οι ανδρείοι της ηδονή.
Κωνσταντίνος Π. Καβάφης (1913)
Fui
Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.
E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.
Eπήγα
Δεν εδεσμεύθηκα. Τελείως αφέθηκα κ’ επήγα.
Στες απολαύσεις, που μισό πραγματικές,
μισό γυρνάμενες μες στο μυαλό μου ήσαν,
επήγα μες στην φωτισμένη νύχτα.
Κ’ ήπια από δυνατά κρασιά, καθώς
που πίνουν οι ανδρείοι της ηδονή.
Κωνσταντίνος Π. Καβάφης (1913)
Fui
Não me manietei. Dei-me totalmente e fui.
Aos deleites, que metade reais,
metade volteantes dentro da minha cabeça estavam,
fui para dentro da noite iluminada.
E bebi dos vinhos fortes, tal
como bebem os denodados do prazer.
Konstandinos Kavafis (1913)
Tradução: Joaquim Magalhães e Nikos Pratsinis,
in KONSTANDINOS KAVAFIS, 25 Poemas, Cotovia, Lisboa, 1988
in KONSTANDINOS KAVAFIS, 25 Poemas, Cotovia, Lisboa, 1988
Tείχη
Tείχη
Χωρίς περίςκεψιν, χωρίς λύπην, χωρίς αιδώ
μεγάλα κ’ υψηλά τριγύρω μου έκτισαν τείχη.
Και κάθομαι και απελπίζομαι τώρα εδώ.
Άλλο δεν σκέπτομαι: τον νουν μου τρώγει αυτή η τύχη·
διότι πράγματα πολλά έξω να κάμω είχον.
A όταν έκτιζαν τα τείχη πώς να μην προσέξω.
Aλλά δεν άκουσα ποτέ κρότον κτιστών ή ήχον.
Aνεπαισθήτως μ’ έκλεισαν από τον κόσμον έξω.
Κωνσταντίνος Π. Καβάφης
Muros
Sem circunspecção, sem mágoa, sem pejo
grandes e altos em redor de mim construíram muros.
E fico e desespero agora no que vejo.
Não penso noutra coisa: na minha mente esta sina rasga furos;
porque tantas coisas havia a fazer lá for por ti.
Quando construíram os muros como é que não reparei, ah.
Mas nunca o estrondo de pedreiros ou som ouvi.
Imperceptivelmente cerraram-me do mundo que está lá.
Konstandinos P. Kavafis
Tradução: Joaquim Magalhães e Nikos Pratsinis,
in KONSTANDINOS KAVAFIS, 25 Poemas, Cotovia, Lisboa, 1988
in KONSTANDINOS KAVAFIS, 25 Poemas, Cotovia, Lisboa, 1988
Tα Παράθυρα
[Goya - O gigante]
Tα Παράθυρα
Σ’ αυτές τες σκοτεινές κάμαρες, που περνώ
μέρες βαρυές, επάνω κάτω τριγυρνώ
για νάβρω τα παράθυρα.— Όταν ανοίξει
ένα παράθυρο θάναι παρηγορία.—
Μα τα παράθυρα δεν βρίσκονται, ή δεν μπορώ
να τάβρω. Και καλλίτερα ίσως να μην τα βρω.
Ίσως το φως θάναι μια νέα τυραννία.
Ποιος ξερει τι καινούρια πράγματα θα δείξει
Κωνσταντίνος Π. Καβάφης
As janelas
Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas. - Uma janela
quando abrir será uma consolação. -
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.
Konstandinos P. Kavafis
Tα Παράθυρα
Σ’ αυτές τες σκοτεινές κάμαρες, που περνώ
μέρες βαρυές, επάνω κάτω τριγυρνώ
για νάβρω τα παράθυρα.— Όταν ανοίξει
ένα παράθυρο θάναι παρηγορία.—
Μα τα παράθυρα δεν βρίσκονται, ή δεν μπορώ
να τάβρω. Και καλλίτερα ίσως να μην τα βρω.
Ίσως το φως θάναι μια νέα τυραννία.
Ποιος ξερει τι καινούρια πράγματα θα δείξει
Κωνσταντίνος Π. Καβάφης
As janelas
Nestas salas escuras, onde vou passando
dias pesados, para cá e para lá ando
à descoberta das janelas. - Uma janela
quando abrir será uma consolação. -
Mas as janelas não se descobrem, ou não hei-de conseguir
descobri-las. E é melhor talvez não as descobrir.
Talvez a luz seja uma nova subjugação.
Quem sabe que novas coisas nos mostrará ela.
Konstandinos P. Kavafis
Tradução: Joaquim Magalhães e Nikos Pratsinis,
in KONSTANDINOS KAVAFIS, 25 Poemas, Cotovia, Lisboa, 1988
in KONSTANDINOS KAVAFIS, 25 Poemas, Cotovia, Lisboa, 1988
29.5.07
Ceci n'est pas une lettre
[China, século XIII]
C'est moi, ton ami absent. Ça fait quoi, dix ans? Tu ne m'as plus écrit. Moi je ne t'ai plus écrit. Je sais que tu penses à moi souvent. Et moi, est-ce que je pense à toi? Franchement, je ne sais plus. C'est toi qui écris, pas moi. J'avais une belle caligraphie, tu t'en souviens? Tu te dis désert tu te dis mort tu te dis bateau sans capitaine. Qu'est-ce que on t'a fait? Qu'est-ce que tu t'es fait? Tu ne me répondras pas. Bien sûr. Ça serait idiot. Trop idiot. Pourtant je te pose une autre question. Ou peut-être pas. Tu sais ce que je veux savoir. Es-tu prêt? Seras-tu capable cette fois-ci? Tu ne me répondras pas. Ce n'est pas grave. C'est à toi même qu'il te faut répondre. Je te manque, je sais. Et pourtant.
Vox clamantis
[Bosch - Ecce homo]
Sem nenhum barco - a rouca
lenta respiração do deserto.
Eugénio de Andrade
lenta respiração do deserto.
Eugénio de Andrade
Lenta me invade o corpo areia quente que pensava longe morta. Enche cada cantinho abre caminho por entre veias músculos e nervos. E deixa-se ficar quente caída. É tanta tanta que não chega não enche não cabe. Come carne bebe sangue. Lenta lentinha. Cada grão devagarinho pousando sobre outro e sobre outro e sobre. Tão devagarinho. E eu vou deixando de ser homem de sangue e carne. Serei estátua de areia dura. Antes fosse de sal.
Em toda a noite o sono não veio
[George Romney - The lappish witch watching a shipwreck in a storm]
Em toda a noite o sono não veio. Agora
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigília
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor -
Um dia igual aos outros, da eterna família
De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era,
Para quem
Por tantas vezes ter sempre 'sperado em vão,
Já nada 'spera.
Fernando Pessoa
Raia do fundo
Do horizonte, encoberta e fria, a manhã.
Que faço eu no mundo?
Nada que a noite acalme ou levante a aurora,
Coisa séria ou vã.
Com olhos tontos da febre vã da vigília
Vejo com horror
O novo dia trazer-me o mesmo dia do fim
Do mundo e da dor -
Um dia igual aos outros, da eterna família
De serem assim.
Nem o símbolo ao menos vale, a significação
Da manhã que vem
Saindo lenta da própria essência da noite que era,
Para quem
Por tantas vezes ter sempre 'sperado em vão,
Já nada 'spera.
Fernando Pessoa
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Verba aliena
Isto foi verdadeiramente eficaz milhões de vezes
«Fórmula para tomar o aspecto de uma fénix.
Palavras ditas por N.:
Eu voei como um deus primordial, eu vim à existência como Khepri, eu cresci como uma planta, eu protegi-me com uma carapaça como uma tartaruga. Eu sou o fruto de cada deus. Eu sou a sétima destas sete uraeus que se encontram no Ocidente, o Hórus que se torna luminoso ele próprio, este deus (que julgou) contra Set, o Tot que se colocou no meio deles neste julgamento do chefe de Letópolis com as Almas de Heliópolis, a água que correu entre elas. Eu vim neste dia, tendo aparecido na procissão dos deuses. Eu sou khonsu, aquele que se opõe aos senhores.
Quem conheça esta fórmula sendo puro, pode sair à luz do dia depois da sua morte e tomar os aspectos que o seu coração pode desejar tomar; (pode) estar entre os seguidores de Uen-nefer, alimentar-se dos alimentos de Osíris, ter a oferenda funerária, ver o disco solar, ser próspero sobre a terra junto de Ré, e justificado junto de Osíris, e nenhum mal tem poder sobre ele. Isto foi verdadeiramente eficaz milhões de vezes.»
Quem conheça esta fórmula sendo puro, pode sair à luz do dia depois da sua morte e tomar os aspectos que o seu coração pode desejar tomar; (pode) estar entre os seguidores de Uen-nefer, alimentar-se dos alimentos de Osíris, ter a oferenda funerária, ver o disco solar, ser próspero sobre a terra junto de Ré, e justificado junto de Osíris, e nenhum mal tem poder sobre ele. Isto foi verdadeiramente eficaz milhões de vezes.»
O Livro dos Mortos do Antigo Egipto, cap. 83,
tradução de Maria Helena Trindade Lopes, ed. Assírio e Alvim
tradução de Maria Helena Trindade Lopes, ed. Assírio e Alvim
Oh dear...
«The door opened, and Lucy and Pauline carried in a small, low table. Through his fear O'Byrne felt excitement once more, horrified excitement. They arranged the table close to the bed. Lucy bent low over his erection. 'Oh dear... oh dear', she murmured. With tongs Pauline lifted instruments from the boiling water and laid them out in neat silver rows on the starched white tablecloth she had spread across the table. The leather noose sliped forwards fractionally. Lucy sat on the edge of the bed and took the large hypodermic from the bowl. 'This will make you a little sleepy', she promised. She held it upright and expelled a small jet of liquid. And as she reached for the cotton wool O'Byrne's arm pulled clear. Lucy smiled. She set aside the hypodermic. She leaned forwards once more... warm scented... she was fixing him with wild red eyes... her fingers played over his tip... she held him still between her fingers. 'Lie back, Michael, my sweet'. She nodded briskly at Pauline. 'If you'll secure that strap, Nurse Shepherd, then I think we can begin.'»
Ian McEwan, Pornography
Ian McEwan, Pornography
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Verba aliena
28.5.07
O rem ridiculam
Ó coisa risível, Catão, e divertida,
e digna do teu ouvido e da tua gargalhada!
Ri, Catão, se realmente gostas do Catulo.
É coisa risível e muito engraçada:
apanhei há pouco um miúdo a dar
numa miúda. Ora eu, com a ajuda de Dione,
caí sobre ele com a minha tusa como arma!
(Catulo, carme 56)
o rem ridiculam Cato et iocosam
dignamque auribus et tuo cachinno
ride quidquid amas Cato Catullum
res est ridicula et nimis iocosa
deprendi modo pupulum puellae
trusantem hunc ego si placet Dionae
pro telo rigida mea cecidi
Epistolário XIII
he venido a ese centro
de la nada pa' gritar
que tu nunca mereciste
lo que tanto quise dar
(cantado por Lhasa de Sela)
de la nada pa' gritar
que tu nunca mereciste
lo que tanto quise dar
(cantado por Lhasa de Sela)
André ao seu querido Ρ.Α.
Leio e releio a tua última carta. No meu frasco negro de ferro não tenciono levar mais do que as minhas cinzas e algum pólen e alguma semente perdida. O remorso e a culpa e a mágoa e o medo e o amor. E a dor. Não me assombrarão. Não os levo comigo. Ficam nestas terras. Para se lançarem sobre quem descuidado passe perto. Enquanto não, devoram-me as entranhas. E tornam-me tão pesada a vida. Tão tão. Que às vezes. Tu sabes. Tu sempre soubeste. E olhavas para mim e dizias não não por favor não. E eu não. Porque tu estavas. Porque tu eras. Levantado do chão. Tinhas tanta força. Sabes que hoje levantei trinta e dois quilos. Sim. Trinta e dois. Mas tu eras mais forte. Estendias-me o braço e eu agarrava-te e. Agora não estás nem és.
Não escrevas mais que te fugi. Não escrevas mais que não te dei tempo. Não escrevas mais que te troquei. Não escrevas mais que te deixei. Não escrevas mais que te abandonei. Não escrevas mais que. Não escrevas. Porque eu não esqueci. Porque me dói tanto. Porque se eu pudesse voltar no tempo. Porque se eu não fosse tão estúpido. Porque me dói tanto tanto. Porque eu estou. Porque eu sou. Ainda. E assombram-me os dias e sufocam-me as noites. E não vejo porta de saída senão. Rodar devagarinho a maçaneta. Tão devagarinho. Até lá agarro-me a ti morto. Porque morto me dás mais do que os vivos. Porque tu não me desiludes. Porque tu nunca me foste inconstante. Nunca me negaste num dia aquilo que dizias no anterior. Nunca me disseste num dia aquilo que negavas no anterior. Nunca inventaste histórias para justificares as tuas decisões mais difíceis. Sempre disseste claramente. Tudo. E por isso nunca me magoaste. Nunca me magoarás. Porque tu. Por isso me agarro a ti morto e me deito lançado desesperado na tua sepultura.
Voltarei. Mais forte do que nunca. Mas antes vou passar pelo fogo. E deixar nestas terras o que me mata me come por dentro. E um dia voltarei. Com tanta força. E então levantarei muito mais do que trinta e dois quilos. Já viste. Trinta e dois quilos.
A cada dia mais me apetece não estar não ser não ver. Si un día me voy e ya no vuelvo yo. Ayer te tuve en mis brazos y hoy, como un grano de arena, estás escondido de mi. Lhasa.
Adoro-te.
Não escrevas mais que te fugi. Não escrevas mais que não te dei tempo. Não escrevas mais que te troquei. Não escrevas mais que te deixei. Não escrevas mais que te abandonei. Não escrevas mais que. Não escrevas. Porque eu não esqueci. Porque me dói tanto. Porque se eu pudesse voltar no tempo. Porque se eu não fosse tão estúpido. Porque me dói tanto tanto. Porque eu estou. Porque eu sou. Ainda. E assombram-me os dias e sufocam-me as noites. E não vejo porta de saída senão. Rodar devagarinho a maçaneta. Tão devagarinho. Até lá agarro-me a ti morto. Porque morto me dás mais do que os vivos. Porque tu não me desiludes. Porque tu nunca me foste inconstante. Nunca me negaste num dia aquilo que dizias no anterior. Nunca me disseste num dia aquilo que negavas no anterior. Nunca inventaste histórias para justificares as tuas decisões mais difíceis. Sempre disseste claramente. Tudo. E por isso nunca me magoaste. Nunca me magoarás. Porque tu. Por isso me agarro a ti morto e me deito lançado desesperado na tua sepultura.
Voltarei. Mais forte do que nunca. Mas antes vou passar pelo fogo. E deixar nestas terras o que me mata me come por dentro. E um dia voltarei. Com tanta força. E então levantarei muito mais do que trinta e dois quilos. Já viste. Trinta e dois quilos.
A cada dia mais me apetece não estar não ser não ver. Si un día me voy e ya no vuelvo yo. Ayer te tuve en mis brazos y hoy, como un grano de arena, estás escondido de mi. Lhasa.
Adoro-te.
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Lhasa de Sela
I can see now
[Caravaggio - Conversão na estrada de Damasco]
if you were a sailor
I'd raise the anchor
to sail the sea
in search of you and me
(cantado por Dead Can Dance)
I'd raise the anchor
to sail the sea
in search of you and me
(cantado por Dead Can Dance)
Não é memória. Porque memória é passado. E tu és presente. O que era presente passou passado. Tant pis pour lui.
O suspiro do comboio suave suave nos carris. Suspirava sim. Parecia morrer. Esticão mole. Como se se engasgasse e tossisse com preguiça. E depois parava e calava. Suspirava de novo agora com mais força. Abria a porta. Resfolegante. Pus um pé no chão de cimento. Tu estavas ali. Em pé olhando para ti. Caiu-me uma lágrima nervosa e vejo que nunca saí daqui.
O suspiro do comboio suave suave nos carris. Suspirava sim. Parecia morrer. Esticão mole. Como se se engasgasse e tossisse com preguiça. E depois parava e calava. Suspirava de novo agora com mais força. Abria a porta. Resfolegante. Pus um pé no chão de cimento. Tu estavas ali. Em pé olhando para ti. Caiu-me uma lágrima nervosa e vejo que nunca saí daqui.
Id redde
As coisas são o que são. É o que dizem os senhores nos cafés arrotando bagaço. E coçando o que tem de ser coçado. E quando as coisas são o que são não há nada a fazer senão deixar que sejam ou que deixem de ser. E se deixam de ser então não há nada a fazer. E às vezes choramos quando as coisas deixam de ser e pensamos porquê porquê porquê. E dizemos que a vida não justifica ser vivida. E depois um dia acordamos e abrimos os olhos e vemos. E ficamos com vontade de voltar atrás e recuperar as lágrimas vertidas em vão. É que nós somos tão melhores. Tão. Mas tão.
Hic sunt leones
à memória do Rui
27.5.07
Omnia si facias
Até aqui desceu por culpa tua minha alma, Lésbia,
e de tal maneira se perdeu ela do seu mester
que já não pode bem querer-te, tornasses-te tu a melhor,
nem deixar de te amar, ainda que por isso tudo faças.
(Catulo, carme 75)
huc est mens deducta tua mea Lesbia culpa
atque ita se officio perdidit ipsa suo
ut iam nec bene uelle queat tibi si optima fias
nec desistere amare omnia si facias
Bene uelle minus
Dizias tu outrora que só Catulo conhecias,
Lésbia, que nem Júpiter em vez de mim querias.
Amei-te então não como homem a amante,
mas como ama pai filhos e genros.
Agora conheço-te. Por isso, se mais muito mais ardo,
para mim és tão mais vulgar e inconstante.
Como é possível? - perguntas. É que injúria tal
obriga o amante a amar mais, mas a querer bem menos.
(Catulo, carme 72)
dicebas quondam solum te nosse Catullum
Lesbia nec prae me uelle tenere Iouem
dilexi tum te non tantum ut uulgus amicam
sed pater ut gnatos diligit et generos
nunc te cognoui quare etsi impensius uror
multo mi tamen es uilior et leuior
qui potis est inquis quod amantem iniuria talis
cogit amare magis sed bene uelle minus
O beijo
O silêncio é a água destas pedras
onde a noite se estende para morrer.
Eugénio de Andrade
Morre-me lenta a noite nos braços que ainda há tão pouco. Estendida dolente morta de cansaço. Tão bela tão louca. Os beijos que trocámos e a minha mão na tua pele. Quando eram as noites. E os dias. Tudo morto. Morre-me lenta morta. Abro os braços e cais no chão corpo desamparado. Baixar-me de novo. Depor-te beijo último nos lábios secos de amor. Levantar-te da terra num abraço derradeiro forte como. E a última lágrima. E sentir a tua indiferença tão fria. Tu não precisas de mim. Morre-me tão bela tão lenta a noite nos braços cansados.
أحبك
ذائماً
ذائماً
26.5.07
Verumst
Lésbia jura que nunca foi fodida de graça.
É verdade. Quando quer ser fodida, costuma pagar ela.
(Marcial, IX, 62)
Lesbia se iurat gratis numquam esse fututam
uerumst cum futui uult numerare solet
(Marcial, IX, 62)
Diuinus
A pérola
Comprar livros em alfarrabistas tem destas coisas. Às vezes viramos uma página e. Como quando folheava uma gramática de grego moderno e me caiu nas mãos esta pérola.
Com seus melhores cumprimentos para toda a estimada familia; e tendo-lhe constado que a prezada Maria Eugenia recentemente diplomada em Altos Estudos Eclesiasticos se especializou em analyses clinicas de urinas e fezes, vem-lhe pedir que examine cuidadosamente o cagalhão que obrou no passado dia 27, para se certificar se não estava sendo envenenado pelos sacerdotes a favor de quem fez testamento recentemente
Com seus melhores cumprimentos para toda a estimada familia; e tendo-lhe constado que a prezada Maria Eugenia recentemente diplomada em Altos Estudos Eclesiasticos se especializou em analyses clinicas de urinas e fezes, vem-lhe pedir que examine cuidadosamente o cagalhão que obrou no passado dia 27, para se certificar se não estava sendo envenenado pelos sacerdotes a favor de quem fez testamento recentemente
In abyssum
Dicis cor in abyssum descendisse tuum.
Forsan ibi meum inuenias.
Et si meum inuenies.
Et si meum inuenies noli id tangere.
Et ictum est.
Et uulneribus confectum.
Et scissum in partes multas.
Noli id tangere.
Quia etiam dolet.
Valde.
Quia tam amatus fuisti.
Vt numquam a nemine.
Vbi anima mea
with your feet in the air and your head on the ground
try this trick and spin it, yeah
your head will collapse
if theres nothing in it
and youll ask yourself
where is my mind
(cantado por Pixies)
De costas para o mar para a onda que se mata esborrachada na areia rija. Costas nuas contra o vento beijadas pela espuma fria. Língua salgada que me arrepia e mata. Não sinto já a areia rija dura negra. Só a água salgada que me envolve. Sobe devagar pernas cintura peito. Puxa-me com tanta força tanta. E eu não tenho força para a vencer.
Há este frio salgado que me puxa e me envolve e me puxa. Sabor salgado forte. E este gelo gelado. Que me arranca a pele. As entranhas sugadas salgadas. O sangue que me foge. Et tu. Eu salgado branco exangue. Já não lavo os olhos na onda morta. Já não fecho a boca. E engulo sôfrego. Se eu quero sentir o sabor do sal. Mesto tão mesto mestíssimo. Morto. Amanhã estará gaivota branca sobre mim. Penetrando-me a carna batida pelas ondas. E não achará sangue. Nem alma.
Há este frio salgado que me puxa e me envolve e me puxa. Sabor salgado forte. E este gelo gelado. Que me arranca a pele. As entranhas sugadas salgadas. O sangue que me foge. Et tu. Eu salgado branco exangue. Já não lavo os olhos na onda morta. Já não fecho a boca. E engulo sôfrego. Se eu quero sentir o sabor do sal. Mesto tão mesto mestíssimo. Morto. Amanhã estará gaivota branca sobre mim. Penetrando-me a carna batida pelas ondas. E não achará sangue. Nem alma.
Epistolário XII
Não leves para o teu frasco negro de ferro nada senão cinzas. As tuas. Não leves remorso nem culpa nem mágoa. Nem esperança. Nem medo. Nem amor. Nem dor. Não te leves. Só as cinzas. As tuas.
Não há tristeza a pingar dos meus olhos. Porque eu não tenho olhos. Nem tristeza. Nem amor. Nem dor. Mas chorei. Flebam amarissima contritione cordis mei. Sem soluço nem lágrima. E cada dia te via mais longe. E estendia-te a mão e tu davas-me as costas. As tuas. Já perdoei. Já esqueci. Ainda que me lembre todos os dias. Os meus dias. Que não são dias.
Não escrevas mais que me deixaste. Não escrevas mais que te arrependeste. Não escrevas mais que não me deste o tempo de que eu precisava. Não escrevas mais que aquilo que pensaste ser amor. Não escrevas mais que eu sabia. Não escrevas mais que foste cego como o maior dos cegos. Não escrevas. Não escrevas mais. Porque agora já não dói. E eu não estou. Nem sou. Não escrevas mais.
Não há tristeza a pingar dos meus olhos. Porque eu não tenho olhos. Nem tristeza. Nem amor. Nem dor. Mas chorei. Flebam amarissima contritione cordis mei. Sem soluço nem lágrima. E cada dia te via mais longe. E estendia-te a mão e tu davas-me as costas. As tuas. Já perdoei. Já esqueci. Ainda que me lembre todos os dias. Os meus dias. Que não são dias.
Não escrevas mais que me deixaste. Não escrevas mais que te arrependeste. Não escrevas mais que não me deste o tempo de que eu precisava. Não escrevas mais que aquilo que pensaste ser amor. Não escrevas mais que eu sabia. Não escrevas mais que foste cego como o maior dos cegos. Não escrevas. Não escrevas mais. Porque agora já não dói. E eu não estou. Nem sou. Não escrevas mais.
Não lances os teus olhos nos meus. Não me digas o que não me pudeste nunca dizer. Não me digas que. Porque agora é tarde. Agora passou. Não te agarres a mim morto. Não te deixes lançado desesperado sobre a minha sepultura. Porque eu morri. Eu não estou. Eu não sou. Eu sou duro. Tu sabes. Eu disse-te sempre tudo o que me ia no coração. Quase tudo. Porque havia coisas. Mesmo quando te doía. Nunca te disse aquilo que querias ouvir. O que não querias e o que não podias. Porque eu. Deixa estar.
Eu não quero estar sozinho no teu coração. Eu queria. Eu sei. Ainda no outro dia te dizia que queria. Mas já não quero. Porque tens o coração tão frio. Está tão frio. Estás tão frio. Não há sangue no teu coração. Para mo dares só a mim arrancaste e sangraste. E eu não quero coração frio arrancado sangrado. Queria deixar-me abraçar no teu corpo quente. Voltar a deitar a cabeça no teu colo. Sentir o teu calor. Porque aqui está tanto frio. E tu estás ainda mais frio.
Eu quero o teu desconforto. Sempre quis. E tu não viste. E quem não quer o teu desconforto não te merece. Mete isso na tua cabeça coberta de cãs. Estás bonito. Mais do que eras. Não tenhas medo da idade. Não tenhas medo do tempo. Porque não é o corpo que te vale. Tu não és corpo.
Adoro-te
Ρ.Α.
--------------------
Imagem:
Moralia in Iob de Gregório Magno - manuscrito francês do século XII
Eu não quero estar sozinho no teu coração. Eu queria. Eu sei. Ainda no outro dia te dizia que queria. Mas já não quero. Porque tens o coração tão frio. Está tão frio. Estás tão frio. Não há sangue no teu coração. Para mo dares só a mim arrancaste e sangraste. E eu não quero coração frio arrancado sangrado. Queria deixar-me abraçar no teu corpo quente. Voltar a deitar a cabeça no teu colo. Sentir o teu calor. Porque aqui está tanto frio. E tu estás ainda mais frio.
Eu quero o teu desconforto. Sempre quis. E tu não viste. E quem não quer o teu desconforto não te merece. Mete isso na tua cabeça coberta de cãs. Estás bonito. Mais do que eras. Não tenhas medo da idade. Não tenhas medo do tempo. Porque não é o corpo que te vale. Tu não és corpo.
Adoro-te
Ρ.Α.
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Imagem:
Moralia in Iob de Gregório Magno - manuscrito francês do século XII
Qui habet aures audiendi audiat
[Cantigas de Santa Maria, manuscrito castelhano do século XIII]
Através do teu coração passou um barcoQue não pára de seguir sem ti o seu caminho
Sophia de Mello Breyner Andresen
Pántes gar hoi labóntes mákhairan en makháirêi apoloûntai
Poderia dizer agora sabes como que é. πάντες γὰρ οἱ λαβόντες μάχαιραν ἐν μαχαίρῃ ἀπολοῦνται. Mateus vinte e seis cinquenta e dois. Ou em língua de gente omnes enim qui acceperint gladium gladio peribunt. Ou ainda qui gladio ferit gladio perit. Mas não. Porque tu ainda não sabes como é. Porque não quero que venhas a saber nunca como é. Porque me és demasiado querido. E ver-te sofrer. Não consigo.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
Lesbia nostra Lesbia illa
A nossa Lésbia, Célio, aquela Lésbia,
aquela Lésbia, a única que Catulo
mais do que a si mesmo e aos seus amou,
agora em esquinas e vielas
esfrega os netos do nobre Remo.
(Catulo, carme 58)
Caeli Lesbia nostra Lesbia illa
illa Lesbia quam Catullus unam
plus quam se atque suos amauit omnes
nunc in quadriuiis et angiportis
glubit magnanimi Remi nepotes
Noites brancas
Fa freddo nello scriptorium, il pollice mi duole. Lascio questa scrittura, non so per chi, non so più intorno a che cosa: stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus.
Umberto Eco, Il Nome della Rosa
Eu sei as noites brancas vazias e os pesadelos que as assombram. E os monstros que mugem atrás da porta trancada. E o terror da cama que me rasga a alma. Eu sei as noites que não acabam. E os dias vazios que se lhes seguem.
25.5.07
Epistolário XI
Difícil é saber de frente a tua morte
E não te esperar nunca mais nos espelhos da bruma.
Sophia de Mello Breyner Andresen
André ao seu Ρ.Α.
Eu não sou corpo. Nem espírito. Não nada. Nada. Não tenho nada. Não te fui corpo. Não te fui espírito. Não te fui nada. E achei que te deixava para me entregar a quem. Sim. Levarei esta culpa para o meu frasco de ferro negro. Olhar-te nos olhos e ver-te a tristeza pingar. E eu impiedoso. Que voltava para quem amava. Vinte e seis anos. Quando se pensa que se sabe já tudo. Para quê. Para nenhum de nós. Sabes que é isso que me dói tanto tanto. E por isso não deixo de o escrever. Até me cansar. Da minha cegueira. Passaste à minha frente. E eu não te vi.
Virei as costas ao mar à praia. Adeus. Vale. Porque eu estou farto. Já me arrastei tanto. E eu não mereço. Tu tinhas razão. Tu tens sempre razão. Quando eu te dizia eu amo e tu me dizias não tu não sabes o que é amar. E me dizias daqui a uns anos falamos. E tu tinhas razão. Mas não falámos. Porque me morreste. Olho para trás e não te vejo. Queria lançar os meus olhos nos teus. Dizer-te que. Não adianta. Já foi. Dicebam haec et flebam amarissima contritione cordis mei. Agostinho. Santo. Um dia falo-te dele. Porque agora não é tempo. Agora é tempo de estares sozinho no meu coração.
A janela do meu quarto aberta escancarada para fazer sair o ar que me inebria. E não mais me voltarei na cama para lançar os braços a quem mos recusou. E se o fizer sei que vais estar lá para me acordares e dizeres em bom latim miser misercule desinas ineptire. Porque agora só tu és dono das minhas noites. Expulsei quem não precisava de mim. É que eu não preciso de quem não precisa de mim. E agora tranco a porta. Por fim. E cá dentro só estamos nós os dois. Tant pis pour. Porque o dia é nosso. E a noite de ninguém. E um dia também eu serei nada. Cinza num frasco.
Eu canso. Eu não existo. Eu sei. Eu sou desconfortável. Eu perturbo. E tu amparas-me o meu desconforto. Porque eu não quero ser confortável. Quem não gosta do meu desconforto não me merece. E eu sofri tanto para me tornar desconfortável. Tanto. E eu pensava que nunca me. Não. Não vou deixar de ser desconfortável só porque me torno desconfortável para quem não consegue chegar-me. Il choisissent le plus confortable? Bon, tant pis pour eux. Mois, franchement, je m'en fous. Toi, par contre, tu n'as pas eu peur de moi. Tu ne craignais rien. E eu. Eu não tenho medo de nada. Nem de ninguém. Só de mim.
Je t'adore. Tu me manques. Follement.
André
Virei as costas ao mar à praia. Adeus. Vale. Porque eu estou farto. Já me arrastei tanto. E eu não mereço. Tu tinhas razão. Tu tens sempre razão. Quando eu te dizia eu amo e tu me dizias não tu não sabes o que é amar. E me dizias daqui a uns anos falamos. E tu tinhas razão. Mas não falámos. Porque me morreste. Olho para trás e não te vejo. Queria lançar os meus olhos nos teus. Dizer-te que. Não adianta. Já foi. Dicebam haec et flebam amarissima contritione cordis mei. Agostinho. Santo. Um dia falo-te dele. Porque agora não é tempo. Agora é tempo de estares sozinho no meu coração.
A janela do meu quarto aberta escancarada para fazer sair o ar que me inebria. E não mais me voltarei na cama para lançar os braços a quem mos recusou. E se o fizer sei que vais estar lá para me acordares e dizeres em bom latim miser misercule desinas ineptire. Porque agora só tu és dono das minhas noites. Expulsei quem não precisava de mim. É que eu não preciso de quem não precisa de mim. E agora tranco a porta. Por fim. E cá dentro só estamos nós os dois. Tant pis pour. Porque o dia é nosso. E a noite de ninguém. E um dia também eu serei nada. Cinza num frasco.
Eu canso. Eu não existo. Eu sei. Eu sou desconfortável. Eu perturbo. E tu amparas-me o meu desconforto. Porque eu não quero ser confortável. Quem não gosta do meu desconforto não me merece. E eu sofri tanto para me tornar desconfortável. Tanto. E eu pensava que nunca me. Não. Não vou deixar de ser desconfortável só porque me torno desconfortável para quem não consegue chegar-me. Il choisissent le plus confortable? Bon, tant pis pour eux. Mois, franchement, je m'en fous. Toi, par contre, tu n'as pas eu peur de moi. Tu ne craignais rien. E eu. Eu não tenho medo de nada. Nem de ninguém. Só de mim.
Je t'adore. Tu me manques. Follement.
André
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Epistularium,
Sophia de Mello Breyner Andresen
Ganhar a vida
Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor
Sophia de Mello Breyner Andresen
A minha solidão vê-se melhor
Sophia de Mello Breyner Andresen
Não se perde não o que não se tem. Nunca. É que às vezes. Viste a cena final. Não viste. Estavas a olhar para onde. Ela chega-se ao parapeito da ponte. Debruça-se. E depois passam carros e carrinhas e a gente deixa de a ver. E quando voltamos a vê-la ela já não está lá. Nunca esteve. Eu olhei e tu estavas ali. E depois fechei os olhos por um instante. E um dia eu vou abri-los de novo e descobrir que tu nunca estiveste. E agora adeus. Porque eu fechei os olhos por um instante um instantinho.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
Noite escura
[Fotograma de Noite Escura, de João Canijo]
Não há para mim outro amor nem tardes limpas
A minha própria vida a desertei
Só existe o teu rosto geometria
Clara que sem descanso esculpirei.
E noite onde sem fim me afundarei.
Sophia de Mello Breyner Andresen
A minha própria vida a desertei
Só existe o teu rosto geometria
Clara que sem descanso esculpirei.
E noite onde sem fim me afundarei.
Sophia de Mello Breyner Andresen
A minha noite é escura. No tecto do meu quarto há estrelas que brilham. Não é figura de estilo. Eu não escrevo poesia. Eu não leio poesia. É a sério. Há estrelas que brilham. Daquelas que se compram e se colam e brilham como as nossassenhorasdefátima. É nome de mulher árabe. Fatimah. Aquele t tem de ser dito com a boca cheia فاطمة . Eu tinha uma nossassenhoradefátima quando era miúdo e acreditava em deuses e ovnis e civilizações perdidas. Se eu pudesse escolher um nome árabe seria Raxid راشد . E quando me deito elas bebem a luz do candeeiro enquanto leio e depois brilham e quando apago a luz enchem-me o quarto de luz. E agora vou-lhes dar de beber. Que me esperam na cama quatro miniaturistas turcos um deles a cegar. E não há estrela nossassenhoradefátima que ma ilumine.
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Sophia de Mello Breyner Andresen
24.5.07
A black iron pot
[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel central]
all my veins and bones
will be burned to dust
you can throw me into
a black iron pot
and my dust will tell
what my flesh would not
will be burned to dust
you can throw me into
a black iron pot
and my dust will tell
what my flesh would not
(cantado por Lhasa de Sela)
Puluis sum et in puluerem reuertar. Não. Não pó. Cinza. E não tem de ser into a black iron pot. Pode ser num frasco de vidro daqueles grandes. Porque eu tenho muito para queimar. Depois chocalha-o bem bem para teres a certeza de que estou morto. E para me ouvires uma última vez. Vês. Sou eu. Sempre funda a minha voz. E calma. Aterciopelada, me decían. Ouves. Ouve. Terei ainda tanto para dizer. Por isso chocalha o frasco. Se ainda me quiseres ouvir. Chocalha. Mas com cuidado não vá a tampa saltar. Fecha-o bem bem fechado. Para eu não voltar a sair. E me molde de novo nas cinzas molhadas de sal. Depois aperta-o no peito. Vai até àquela árvore. Sim. Essa. Abre um buraco fundo fundo fundo. Terá de ser de noite. Não tens medo pois não. Porque de dia não te deixariam. Fundo fundo. Para não me desenterrarem por acaso. Depois abre o frasco dentro do buraco e despeja a cinza e cobre tudo com terra muita terra. Porque assim se um dia por acaso me desenterrarem. Se um dia. Já não me voltarão a encontrar. Misturado na terra. Pó e cinza. Se tiveres medo abre o frasco e despeja-me na sanita. Hombre me da igual.
23.5.07
Epistolário X
my heart is breaking
I cannot sleep
I love a man
who's afraid of me
he believes if he doesn't
stand guard with a knife
I'll make him my slave
for the rest of his life
I love this hour
when the tide is just turning
there will be an end
to the longing and yearning
if I can stand up
to angels and men
I'll never get swallowed
in darkness again
you've travelled this long
you just have to go on
don't even look back to see
how far you've come
though your body is bending
under the load
there is nowhere to stop
anywhere on this road
I cannot sleep
I love a man
who's afraid of me
he believes if he doesn't
stand guard with a knife
I'll make him my slave
for the rest of his life
I love this hour
when the tide is just turning
there will be an end
to the longing and yearning
if I can stand up
to angels and men
I'll never get swallowed
in darkness again
you've travelled this long
you just have to go on
don't even look back to see
how far you've come
though your body is bending
under the load
there is nowhere to stop
anywhere on this road
(cantado por Lhasa de Sela)
Ρ.Α. ao seu André
O meu calor e o meu cheiro. E assim dito e escrito parece que sou animal só corpo só carne. Quando só osso. E pó. Dito e escrito assim parece-me que só o meu corpo te. Parece. Mas eu sei que não. Porque isso sente-se. Lê-se-te nos olhos. E tu não és corpo. Nem era isso que via em ti. Tu sabes. Porque não é o corpo que te vale. E não era o teu corpo que eu. Não não. A cada carta mais pareço tu. Não te escrevia assim eu. E tu vais fantasiando. Não demasiado. Porque é quase tudo. Tu sabes. Eu sei. E tu não eras corpo. Então era o quê. Eram os teus olhos de aço. Tão frios impenetráveis. E eu sabia quando tu tremias. Porque tu tremes quando. E só quem passou por isto. Eu sei o que queres dizer. Só quem conhece o sabe reconhecer quando lhe passa à frente. Tu não soubeste. Não. Soubeste. Demasiado tarde. E agora que o reconheces de novo não em mim mas noutro lado. Agora vejo-te de porta fechada e chave na fechadura pronta a fechá-la de vez. Já sei que tens um prazo. Ontem ouvi-te dizê-lo. E que faltam poucos dias. E que tens uma data. Também tens direito. E que depois tudo estará definido. Que a espera termina. E viras as costas à praia. Quantos dias. Ah já sei. Não digas.
Fico contente. Não me interpretes mal. Não fico contente de te ver sofrer desta maneira cruel. Mas quando te fechares eu fico sozinho no teu coração. Não sim sim sim eu sei quais são os teus planos. Mas ouve. Eu sei que vou acabar sozinho no teu coração. Se não for agora será depois. Posição cómoda. Ficar com o fácil da relação. Tão bonito. E o resto adeus. Porque dá trabalho e eu não. Não. Não sou eu. Tu sabes. E eu sei. Tu já passaste por isto. Eu avisei-te. Mas eu sei que tu não deixas de sonhar. Que ainda aspiras o ar do teu quarto e sentes o cheiro que lá ficou e não sai. E eu sei coisas que tu não sabes. Eu sei que te viras na cama durante o sono e estendes os braços para o aninhares. Na tua protecção. E ficas de braços vazios porque já não está lá. Nem estará. Mete isso na cabeça de vez. Miser, misercule, desinas ineptire. Como o outro. E se não está nem estará o que esperas tu. Nunca esteve. Que esperas tu. Eu sei. Tu já decidiste. Já te vejo de cabeça tão erguida. Tão limpa. Não te arrependas. Porque já te vi chorar tanto. E não te ponhas com a alma triste até à morte. Porque aparecerá quem. Tu sabes. Há tanta gente a ler-nos. E se agora te parece tudo tão triste. Não te ponhas assim. Há quem precise de ti. Tu sabes. E expulsa da cabeça quem não precisa de ti. Porque quem não precisa de ti. Sim.
Não precisas de dizer que gostas de mim. Não o digas. Não to quero ouvir. Porque eu sei que sim. Não tens de mo lembrar todos os dias. Nunca to pedi. Porque eu também nunca te pedi nada. Só que estivesses ao meu lado quando eu precisasse de ti. Nem eu nunca te disse que gostava de ti. Disse. Disse que me fazias tão feliz. Mas isso não é dizer que gosto de ti. Não é preciso. Há coisas que se lêem nos olhos. Até nos mais duros. E tu sabes ler os olhos. E eu sei que é isso que te dói. E que então te doía. E que estás farto de ler nos olhos e depois. Acabas sempre sozinho. Mas tu sabes. Je n’ai pas peur de dire que tu me fais peur avec ton espoir et ton grand sens de l’honneur. Canta essa Lhasa. É verdade. Metes-me medo. Tão seguro por detrás dessa timidez e dessa tristeza. Tão forte. Sim sim sim eu sei que tu agora levantas vinte e oito quilos repetidamente. Mas tu sabes. Não é disso que estou a falar.
Entre toi et le diable j'ai choisi le plus confortable. Não negarei. E eu sei que também é isso que te dói. C'est que entre toi et le diable on choisit toujours le plus confortable. Talvez seja tempo de passares a ser confortável. Porque claramente o problema é teu. Porque ninguém atura um tipo como tu. Só eu. E tu sabes. Tu cansas. Tantas leituras. Tu não existes. Tu não és normal. Olha à tua volta. Desconfortável. És. E tu sabes. E tens de escolher. Porque assim não. Não tenhas a tentação de pensar que és melhor do que os outros. Não és. És desconfortável. Sozinho. Tu sabes. Para quê ainda.
You love a man who's afraid of you. Larga. Deixa. Deixa. Foge do deserto. Dos espinhos. Foge. Deixa. Porque tu também tens o direito. De fugir. De escolher o mais confortável. Não virei mais vez nenhuma dizer-to. Tu já sabes. E eu fico contente. É o primeiro passo para ficar sozinho no teu coração. Porque só eu suporto o teu desconforto. Porque eu já não sou. E por isso já não tenho conforto. Nem desconforto. E tu sabes que eu nunca tive medo de nada. Nem de ti.
Adoro-te
Ρ.Α.
O meu calor e o meu cheiro. E assim dito e escrito parece que sou animal só corpo só carne. Quando só osso. E pó. Dito e escrito assim parece-me que só o meu corpo te. Parece. Mas eu sei que não. Porque isso sente-se. Lê-se-te nos olhos. E tu não és corpo. Nem era isso que via em ti. Tu sabes. Porque não é o corpo que te vale. E não era o teu corpo que eu. Não não. A cada carta mais pareço tu. Não te escrevia assim eu. E tu vais fantasiando. Não demasiado. Porque é quase tudo. Tu sabes. Eu sei. E tu não eras corpo. Então era o quê. Eram os teus olhos de aço. Tão frios impenetráveis. E eu sabia quando tu tremias. Porque tu tremes quando. E só quem passou por isto. Eu sei o que queres dizer. Só quem conhece o sabe reconhecer quando lhe passa à frente. Tu não soubeste. Não. Soubeste. Demasiado tarde. E agora que o reconheces de novo não em mim mas noutro lado. Agora vejo-te de porta fechada e chave na fechadura pronta a fechá-la de vez. Já sei que tens um prazo. Ontem ouvi-te dizê-lo. E que faltam poucos dias. E que tens uma data. Também tens direito. E que depois tudo estará definido. Que a espera termina. E viras as costas à praia. Quantos dias. Ah já sei. Não digas.
Fico contente. Não me interpretes mal. Não fico contente de te ver sofrer desta maneira cruel. Mas quando te fechares eu fico sozinho no teu coração. Não sim sim sim eu sei quais são os teus planos. Mas ouve. Eu sei que vou acabar sozinho no teu coração. Se não for agora será depois. Posição cómoda. Ficar com o fácil da relação. Tão bonito. E o resto adeus. Porque dá trabalho e eu não. Não. Não sou eu. Tu sabes. E eu sei. Tu já passaste por isto. Eu avisei-te. Mas eu sei que tu não deixas de sonhar. Que ainda aspiras o ar do teu quarto e sentes o cheiro que lá ficou e não sai. E eu sei coisas que tu não sabes. Eu sei que te viras na cama durante o sono e estendes os braços para o aninhares. Na tua protecção. E ficas de braços vazios porque já não está lá. Nem estará. Mete isso na cabeça de vez. Miser, misercule, desinas ineptire. Como o outro. E se não está nem estará o que esperas tu. Nunca esteve. Que esperas tu. Eu sei. Tu já decidiste. Já te vejo de cabeça tão erguida. Tão limpa. Não te arrependas. Porque já te vi chorar tanto. E não te ponhas com a alma triste até à morte. Porque aparecerá quem. Tu sabes. Há tanta gente a ler-nos. E se agora te parece tudo tão triste. Não te ponhas assim. Há quem precise de ti. Tu sabes. E expulsa da cabeça quem não precisa de ti. Porque quem não precisa de ti. Sim.
Não precisas de dizer que gostas de mim. Não o digas. Não to quero ouvir. Porque eu sei que sim. Não tens de mo lembrar todos os dias. Nunca to pedi. Porque eu também nunca te pedi nada. Só que estivesses ao meu lado quando eu precisasse de ti. Nem eu nunca te disse que gostava de ti. Disse. Disse que me fazias tão feliz. Mas isso não é dizer que gosto de ti. Não é preciso. Há coisas que se lêem nos olhos. Até nos mais duros. E tu sabes ler os olhos. E eu sei que é isso que te dói. E que então te doía. E que estás farto de ler nos olhos e depois. Acabas sempre sozinho. Mas tu sabes. Je n’ai pas peur de dire que tu me fais peur avec ton espoir et ton grand sens de l’honneur. Canta essa Lhasa. É verdade. Metes-me medo. Tão seguro por detrás dessa timidez e dessa tristeza. Tão forte. Sim sim sim eu sei que tu agora levantas vinte e oito quilos repetidamente. Mas tu sabes. Não é disso que estou a falar.
Entre toi et le diable j'ai choisi le plus confortable. Não negarei. E eu sei que também é isso que te dói. C'est que entre toi et le diable on choisit toujours le plus confortable. Talvez seja tempo de passares a ser confortável. Porque claramente o problema é teu. Porque ninguém atura um tipo como tu. Só eu. E tu sabes. Tu cansas. Tantas leituras. Tu não existes. Tu não és normal. Olha à tua volta. Desconfortável. És. E tu sabes. E tens de escolher. Porque assim não. Não tenhas a tentação de pensar que és melhor do que os outros. Não és. És desconfortável. Sozinho. Tu sabes. Para quê ainda.
You love a man who's afraid of you. Larga. Deixa. Deixa. Foge do deserto. Dos espinhos. Foge. Deixa. Porque tu também tens o direito. De fugir. De escolher o mais confortável. Não virei mais vez nenhuma dizer-to. Tu já sabes. E eu fico contente. É o primeiro passo para ficar sozinho no teu coração. Porque só eu suporto o teu desconforto. Porque eu já não sou. E por isso já não tenho conforto. Nem desconforto. E tu sabes que eu nunca tive medo de nada. Nem de ti.
Adoro-te
Ρ.Α.
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Lhasa de Sela
Cogito ergo insanio
... I discovered the whitewashed wall beneath the window slick and syrupy with an abundance of goo. Since I didn't know what masturbation was, I of course didn't know what ejaculate was. I thought it was pus. I thought it was phlegm. I didn't know what to think, except that it was something terrible. In the presence of a species of discharge as yet mysterious to me, I imagined it was something that festered in a man's body and then came spurting from his mouth when he was completely consumed by grief.
Philip Roth, The plot against America
Sandeu por fim. Havia de chegar o dia. E eu que não estava preparado. Et pourtant par terre. Porque achava que já não ensandecia. Ou já estava sandeu. E pensava que eram os outros não era eu. Não. Se calhar agora não estou. Porque agora vejo tudo tão claro. Tão tão. Sandeu. Cogito ergo insanio.
22.5.07
Facilis difficilis
je n’ai pas peur de dire que je t’ai trahi
par pure paresse par pure mélancolie
qu’entre toi et le diable
j’ai choisi le plus confortable
mais tout cela n’est pas pourquoi
je me sens coupable
mon cher ami
je n’ai pas peur de dire que tu me fais peur
avec ton espoir et ton grand sens de l’honneur
tu me donnes envie de tout détruire
de t’arracher le beau sourire
et même ça n’est pas pourquoi
je me sens coupable
c’est ça le pire
avec ton espoir et ton grand sens de l’honneur
tu me donnes envie de tout détruire
de t’arracher le beau sourire
et même ça n’est pas pourquoi
je me sens coupable
c’est ça le pire
je me sens coupable parce que j’ai l’habitude
c’est la seule chose que je peux faire
avec une certaine certitude
c’est rassurant de penser
que je suis sûre de ne pas me tromper
quand il s’agit de la question
de ma grande culpabilité
c’est la seule chose que je peux faire
avec une certaine certitude
c’est rassurant de penser
que je suis sûre de ne pas me tromper
quand il s’agit de la question
de ma grande culpabilité
je n’ai pas peur de dire que j’ai triché
j’ai mis le plus pur de mes pensées sur le marché
j’ai envie de laisser tomber
toute cette idée de vérité
je garderais
pour me guider
plaisir et culpabilité
j’ai mis le plus pur de mes pensées sur le marché
j’ai envie de laisser tomber
toute cette idée de vérité
je garderais
pour me guider
plaisir et culpabilité
(cantado por Lhasa de Sela)
Range lenta pesada. Ou é a força que me falta. Que me trai. Mas ainda hoje levantei vinte e oito quilos repetidamente. Vinte e oito. Um terço do meu peso. Mais. Custa tanto. Vai rangendo range range. Porque eu não quero mas tem de ser. E eu sou forte. Não escolho o fácil. Que esse é o caminho dos. Frágil. Traído. E por isso range range vai rangendo rangida. Relógio avança tic tic tic tic. Está quase lá. E quando o ponteiro bater no outro ponteiro. Então tudo se resolve. E os fracos. Quatro dias. E depois. Tant pis pour. Toada. Suave.
Se
E eu juro que virei e revirei. E puxei os bolsos para fora e sacudi-os à janela. E pu-lo a lavar. E sacudi e voltei a sacudir. E ainda lá estão para me assombrarem e me fazerem lembrar. Os grãos de areia. E há estas noites em que me pergunto. Se.
Epitaphius primus
yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used or shall I wear a red yes and how he kissed me under the Moorish wall and I thought well as well him as another and then I asked him with my eyes to ask again yes and then he asked me would I yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes.
James Joyce, UlyssesPorque se isto é vida então a vida não é vida. Nem vive nem deixa viver. Porque vivo assim vazio. Havia de cavar uma cova. A minha sepultura. E pôr-lhe um epitáfio. Hic situs est. Tão mais bonito do que aqui jaz. Porque jazer é estar deitado a dormir morto. E eu não quero ficar deitado a dormir morto. Quero que me queimem o corpo. Bem queimado (nondum coctum est). Hic situs est Andreas. Muito bem. Talvez em letras gregas. Porque dá logo outro ar. Mas depois quem é que percebia. Que tolice. Ninguém vai sequer olhar. Amicos habuit paucos. Porque não os tive tantos. É que me custa tanto. Tão mais fácil encerrar-me na cela. E depois. Amauit. Numquam amatus. Sim sim sim. Gosto deste. O resumo da minha vida. Amei tanto tanto tão pouco tempo. Amei pouco. Mas tão. E. Mas não. Chega. Libros legit compluris eosque edere uoluit. Estranho estranho. Comer livros. καὶ ἀπῆλθα πρὸς τὸν ἄγγελον λέγων αὐτῷ δοῦναί μοι τὸ βιβλαρίδιον καὶ λέγει μοι λάβε καὶ κατάφαγε αὐτό καὶ πικρανεῖ σου τὴν κοιλίαν ἀλλ᾽ ἐν τῷ στόματί σου ἔσται γλυκὺ ὡς μέλι. E cheguei-me ao anjo e pedi-lhe que me desse o livrinho, e ele disse-me: toma-o e come-o, e amargar-te-á nas entranhas mas na tua boca será doce como o mel. Apocalipse 10,9. Tradução minha que o meu grego afinal ainda vai dando para isto. E eu peguei nos livros e arranquei-lhes as capas porque eram muito duras e têm tintas tóxicas e comi-lhes as folhas doces como mel. Amargas amargas. Porque é tudo tão doce. E depois no fim. Aquele amargor. Porque nada se me aguenta doce. É este o meu medo. Não sei. Tem sido mais fel. Algum mel. Pouco. Obiit. Óbito. Hábito. حبيبي Habîbî. Que mais dizer. Óbito. Foi-se. Finou-se. Quia fessus nimis. Tão tão. Cansado. Trop fatigué. Hélas. Et si. Ah non. Laisse tomber. Par terre. Sous terre. Souterrain. Sit terra tibi leuis. Não sei como prefiro tibi terra terra tibi tibi terra terra tibi. Laisse tomber. Sous terre. Lourde.
hic situs est ἀνδρέας.
amicos habuit paucos.
amauit.
numquam amatus.
libros legit compluris
eosque edere uoluit.
obiit.
quia fessus nimis.
Em minúsculas musculadas. Faltam-lhe os anos. Não não faltam. Porque não houve ano. Nem há. A minha vida não tem ano. Nem amo. Não. Eu amo. Mas eu não tenho amo.
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Sequentiae
Vida
مِنْ أَجْلِ ذَلِكَ كَتَبْنَا عَلَى بَنِي إِسْرَائِيلَ أَنَّهُ مَن قَتَلَ نَفْسًا بِغَيْرِ نَفْسٍ أَوْ فَسَادٍ فِي الأَرْضِ فَكَأَنَّمَا قَتَلَ النَّاسَ جَمِيعًا وَمَنْ أَحْيَاهَا فَكَأَنَّمَا أَحْيَا النَّاسَ جَمِيعًا وَلَقَدْ جَاء تْهُمْ رُسُلُنَا بِالبَيِّنَاتِ ثُمَّ إِنَّ كَثِيرًا مِّنْهُم بَعْدَ ذَلِكَ فِي الأَرْضِ لَمُسْرِفُونَ
ألْمَائدَةُ ٣٢
"Por isso prescrevemos aos filhos de Israel que quem quer que mate uma pessoa não culpada de assassínio ou de corrupção sobre a terra é como se matasse todos os homens. E quem quer que lhe dê o dom da vida é como se desse o dom da vida a todos os homens. Na verdade os Nossos mensageiros vieram a eles com provas. E depois, apesar disso, muitos deles começam a fazer excessos sobre a terra."
Alcorão, 5:32
Alcorão, 5:32
21.5.07
Epistolário IX
Wombed in sin darkness I was too, made not begotten. By them, the man with my voice and my eyes and a ghostwoman with ashes on her breath. They clasped and sundered, did the coupler's will. From before the ages He willed me and now may not will me away or ever A lex eterna stays about him. Is that then the divine substance wherein Father and Son are consubstantial? Where is poor dear Arius to try conclusions? Warring his life long on the contransmagnificandjewbangtantiality. Illstarred heresiarch. In a Greek watercloset he breathed his last: euthanasia. With beaded mitre and with crozier, stalled upon his throne, widower of a widowed see, with upstiffed omophorion, with clotted hinderparts.
James Joyce, UlyssesNão te tenho escrito porque percebi que estás num processo de recordação. Diria catarse, se conhecesse a palavra. Não te quero atrapalhar. Porque já basta aquele tempo em que te entrava pelo quarto aos gritos e me lançava para dentro da tua cama. Já percebi que te liga uma coisa muito especial àquele rapaz que assina Ρ.Α.. Que te ligava. Porque também percebi que ele morreu. E que agora é tarde. Ou não. Porque só é tarde quando desistimos. E tu não desistes de ser feliz. Nem eu. Apesar de. Tu sabes.
E tenho ciúmes, acreditas. Não não. Não estou nem nunca estive apaixonado por ti. Tu sabes que se estivesse não o esconderia. Porque eu nunca escondi nada. Sim. Tu sabes. Não quiseste ver mas eu queria mostrar-te. Não percebo qual era o mal. Só porque. Lembras-te de quando eu dizia que não me importava de ir a casas de banho públicas com mirones, porque tinha uma pila (eu dizia assim) bonita? Está bem, eu não digo mais coisas destas. Mas era para as pessoas saberem como eu era. Tão louco. A bomba loura.
Queria que gostasses de mim como gostas ou gostaste dele. Gostava de saber o que tem teve ele que eu não tenho. Porque eu sou mais bonito de certeza. Eu sei que isso não te importa. Mas admite, é sempre tão bom ter um amigo bonito ao lado. Ou uma amiga. Eu sei que não gostas de mariquices, como tu dizias. Mas eu sou assim. Nada a fazer. Mesmo sendo tu a escrever por mim. Porque o meu português não daria sequer para entender um terço do que está escrito neste parágrafo. Quanto mais escrever.
Bonito mundo este o teu em que escreves cartas de amigos a ti mesmo. Pelo menos assumes. Mas tu sempre assumiste tudo sem medos nem vergonhas. Como eu. Por isso diz-me, o que é preciso para tu gostares de mim tanto como gostas desse Ρ.Α., porque eu quero tanto que tu gostes de mim tanto tanto. Porque tu lembras-te ninguém gostava de mim. Eu achava isso. Se calhar não era bem assim. Tu gostavas de mim. E havia mais pessoas. Mas eu só me consigo lembrar das que não gostavam de mim.
Eu sei que te metia medo. Sobretudo depois de. Porque tu lutavas contra ti mesmo. Essa é a luta mais dura. Porque não a queres vencer. Porque só a derrota te salvará. Ou será vitória. Afinal quem queres que vença. Foste mesmo tu o vencedor? Eu perdi. Tu sabes. Derrota estrondosa. Ou não. Não sei. Ai ai. Pudesse eu. Eu queria mesmo era beijar-te. Não porque estivesse apaixonado por ti. Porque estavas ali. E era tão fácil. Seria. Porque tu decidiste lutar contra ti mesmo. E perdeste. Ou ganhaste. Tu saberás.
Agora choras de amor. Choras não como eu chorei e choro. Porque isso do amor. Já sei já sei já. Não vamos falar disso. Bem bem. Já me viste os meus olhos como estão tão bonitos. Lembras-te quando eu andava desesperado a tentar arranjar haxixe. Porque aqui eu comprava-o livremente. E no teu país era proibido. Porque eu só dormia depois de fumar haxixe. Haxe. Xamom. Aquela tua namorada. Sim, eu lembro-me de quando tu tinhas namoradas. Não tens vergonha. Estavas a perder a luta. Ou a ganhar. A perder. Aquela tua namorada que tinha Xamonix escrito numa camisola e nós gozávamos tanto. Agora choras de amor. Que tolice. Nunca te vi assim. Deve ser mesmo especial. Mas já percebi que o teu prazo está a acabar e que lhe vais fechar a porta. E eu já te vi fechar portas. Nunca me feches a porta. Nunca ma fechaste. E quando fechares a porta vais chorar mais ainda mais mas depois vai passar. E vais encontar quem. Quem quem. Ah ah. Tu sabes.
Já chega estou tão cansado. Tu sabes. Bem bem. Vá. Deixo-te. Já vi que. Fecha lá isso. E vai à tua vida.
E tenho ciúmes, acreditas. Não não. Não estou nem nunca estive apaixonado por ti. Tu sabes que se estivesse não o esconderia. Porque eu nunca escondi nada. Sim. Tu sabes. Não quiseste ver mas eu queria mostrar-te. Não percebo qual era o mal. Só porque. Lembras-te de quando eu dizia que não me importava de ir a casas de banho públicas com mirones, porque tinha uma pila (eu dizia assim) bonita? Está bem, eu não digo mais coisas destas. Mas era para as pessoas saberem como eu era. Tão louco. A bomba loura.
Queria que gostasses de mim como gostas ou gostaste dele. Gostava de saber o que tem teve ele que eu não tenho. Porque eu sou mais bonito de certeza. Eu sei que isso não te importa. Mas admite, é sempre tão bom ter um amigo bonito ao lado. Ou uma amiga. Eu sei que não gostas de mariquices, como tu dizias. Mas eu sou assim. Nada a fazer. Mesmo sendo tu a escrever por mim. Porque o meu português não daria sequer para entender um terço do que está escrito neste parágrafo. Quanto mais escrever.
Bonito mundo este o teu em que escreves cartas de amigos a ti mesmo. Pelo menos assumes. Mas tu sempre assumiste tudo sem medos nem vergonhas. Como eu. Por isso diz-me, o que é preciso para tu gostares de mim tanto como gostas desse Ρ.Α., porque eu quero tanto que tu gostes de mim tanto tanto. Porque tu lembras-te ninguém gostava de mim. Eu achava isso. Se calhar não era bem assim. Tu gostavas de mim. E havia mais pessoas. Mas eu só me consigo lembrar das que não gostavam de mim.
Eu sei que te metia medo. Sobretudo depois de. Porque tu lutavas contra ti mesmo. Essa é a luta mais dura. Porque não a queres vencer. Porque só a derrota te salvará. Ou será vitória. Afinal quem queres que vença. Foste mesmo tu o vencedor? Eu perdi. Tu sabes. Derrota estrondosa. Ou não. Não sei. Ai ai. Pudesse eu. Eu queria mesmo era beijar-te. Não porque estivesse apaixonado por ti. Porque estavas ali. E era tão fácil. Seria. Porque tu decidiste lutar contra ti mesmo. E perdeste. Ou ganhaste. Tu saberás.
Agora choras de amor. Choras não como eu chorei e choro. Porque isso do amor. Já sei já sei já. Não vamos falar disso. Bem bem. Já me viste os meus olhos como estão tão bonitos. Lembras-te quando eu andava desesperado a tentar arranjar haxixe. Porque aqui eu comprava-o livremente. E no teu país era proibido. Porque eu só dormia depois de fumar haxixe. Haxe. Xamom. Aquela tua namorada. Sim, eu lembro-me de quando tu tinhas namoradas. Não tens vergonha. Estavas a perder a luta. Ou a ganhar. A perder. Aquela tua namorada que tinha Xamonix escrito numa camisola e nós gozávamos tanto. Agora choras de amor. Que tolice. Nunca te vi assim. Deve ser mesmo especial. Mas já percebi que o teu prazo está a acabar e que lhe vais fechar a porta. E eu já te vi fechar portas. Nunca me feches a porta. Nunca ma fechaste. E quando fechares a porta vais chorar mais ainda mais mas depois vai passar. E vais encontar quem. Quem quem. Ah ah. Tu sabes.
Já chega estou tão cansado. Tu sabes. Bem bem. Vá. Deixo-te. Já vi que. Fecha lá isso. E vai à tua vida.
A dor
A partir de certo ponto deixa de ser possível o regresso. É esse o ponto a atingir.
Kafka
Enquanto me preparo para o adeus. De vez. Encho uma última vez os pulmões do teu cheiro que me assombra o quarto. Ainda. O calor do teu corpo nos meus lençóis. Onde ainda me aninho desejoso de te abraçar. E já não estás. Tant pis pour. Toar. Afinar. O meu espírito. Por fim. Expulsar-te dos meus sonhos. Abri-los a quem. Ainda dói. Vai doer. Tem de ser. E vai voltar a ser tudo como dantes. Antes de. Porque eu não desço mais.
Time doesn't flow if you don't dream
After making a few passes over the offending spot with the burnishing shell using different motions, he returned to his former pattern, moving his hand back and forth as he stared out of the window into the distance, losing himself in daydreams. I shall never forget how before looking outside again, he briefly gazed into my eyes - as I would later do to others. This dolorous look has only one meaning, which all apprentices know quite well: Time doesn't flow if you don't dream.
Orhan Pamuk, My Name is Red
(original: Benim Adım Kırmızı. Tradução de Erdağ M. Göknar)
(original: Benim Adım Kırmızı. Tradução de Erdağ M. Göknar)
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Verba aliena
20.5.07
O último campeonato
à memória do Rui
Estava tanto calor e era dia de festa. Verde. Maio de dois mil e dois. Ontem tinha-te perguntado se querias vir. E tu disseste que querias vir mas estavas com tantas dores. Que me ligavas se te sentisses melhor. Que se não fazias a festa em casa. E eu fiquei à espera do teu telefonema que não chegou. Porque não se foram as dores. E tu foste com elas.
Epistolário VIII
En tus manos la mi vida
encomiendo condenado.
O piedad mereçida!
Por qué m'as desanparado?
(anónimo espanhol, s. XV/XVI)
André ao seu Ρ.Α.
Nem isso. Nada. Não peço. Fico-me com aquilo que me querem dar. Por isso nada te pedi. E me mantive sereno ao teu lado sentindo o teu calor o teu cheiro. Baixando os olhos quando mos surpreendias. E é disso que tenho saudades. Porque sim é verdade. Estás sempre na minha memória. Todos os momentos. Mas se fosse só fraternal. Se fosse só fraternal bastar-me-ia a tua recordação. A tua presença no meu espírito. O saber que estavas ali. Mas amigo. Não é fraternal. É mais forte do que isso. E não me basta a tua memória. É isto que distingue o fraternal do outro. E só quem por ele passou. Mas sentir o calor do teu corpo. O teu cheiro. Perto de mim. Mas perto de mim. Isso chegava-me. Não te pedia mais. Nunca to pedi. Nem com os olhos. Porque sabia que não mo podias dar. Mas saber que estavas ali ao meu lado. Que te podia abraçar e dizer o que nunca te disse que gosto de ti. E agora é tarde. Tão tarde. Tu passaste por mim e eu não te vi.
Foste és serás. És o meu barco. Onde me recolhi quando me expulsaram. Onde me chamaram hóspede querido não náufrago roto. Onde agora me recolho de novo abandonado. Vontade de não mais sair. Não tenho já os olhos no horizonte. Repouso-os neste barco morto seguro. Onde barqueiro invisível me passa a mão pelos cabelos desgrenhados. E me sussurra ao ouvido esquece ignora corta não fales não escrevas não dês importância a quem não ta dá. Eu vou fechando os olhos salgados e murmuro talvez não sei se calhar não pares desculpa. Eu vejo barco e sinto o barqueiro. Nunca me quiseste magoar. Dizes não há barco nem barqueiro. É que não me queres preso a miragem morta. Não me queres miragens. Nem eu mas quero. E tenho passado a vida agarrado a miragens que se desfazem cruelmente quando me baixo para lhes tocar. E enterra-se-me a mão na areia escaldante. E eu prefiro miragem morta que me adora e me acarinha e me refresca. Porque a miragem viva. Sabes aquela canção da Lhasa de Sela. He venido al desierto para irme de tu amor. E eu volto ao deserto.
Monge estilita. Na Síria havia tantos. Aqueles que viviam no cimo de colunas de pedra. Em grego antigo coluna diz-se στήλη, stêlê. Grossas colunas de pedra. Para onde lhes subiam comida escassa e água quase nenhuma. E ali viviam uma vida sob a violência do sol do deserto e o gelo da lua. E tinham miragens e visões. Mas acorrentados à coluna não as podiam seguir. Pudesse eu subir a coluna de pedra tão alta que não me deixasse ver o chão. Agrilhoado. Não fosse subir-me uma miragem pela coluna e o meu espírito fraquejar. E volto ao deserto embarcado em barco seco. Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar. Não estou a falar de ti. Porque tu mereceste tudo o que te quis dar. Volto ao deserto e fujo do mar. Porque o mar mata. E eu não sei nele andar.
E eu dizia está quieto agora não. Porque eu achava que não tinha passado de um capricho. E tu estavas ali à minha frente e eu não te via. Cego da ilusão em que me arrastei durante tantos anos. Mas tu dizias-me. E eu não te ouvia. E sentia a tua respiração no meu pescoço e não queria senti-la porque sabia que não era capaz de lhe resistir. Amarrado agrilhoado a coluna de pedra no deserto. E não era miragem. Porque eu não podia viver sem as tuas palmadas nas costas sem os teus sorrisos traquinas sem os teus disparates. E não sabia. Agora sei. Ou será miragem do meu coração rasgado sangrado. Já não sei. E não quero saber. Porque não mais me agarrarei a miragens. Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor. Não me mostraste tudo o que valias e eu sei e eu sabia et excrucior. Porque eu não te dei tempo e te enxotei quando achei que regressava aos braços do amor da minha vida. Et excrucior et excruciabor. E eu sei que te magoei tanto. Não quero pensar nisso. Porque me dói tanto. E não há maneira de o remediar.
Não são comparáveis às tuas as minhas. Eu sei. E penso nisso nos meus momentos mais negros. Eu não sei o que é ser infeliz. Porque eu não estou doente. Porque eu não tenho as dores que tu tiveste. Nem morte aprazada. Não sei o que dói mais. Se as dores. Se ter a data da morte marcada. E eu não sei como tu. E relativizo todos os dias as minhas miseráveis dores quando me lembro do teu sofrimento. E eu não posso sequer ter uma pequena ideia do horror das tuas dores. Sinto-me depois tão mesquinho. Porque aquilo que me esmaga é nada comparado com o que te matou. Pudesse dar-te a vida. Dar-te.
Não olhei ainda bem para mim. Tens razão. Mas já me ergui. E começo a olhar em volta. De mais alto agora. E olho-me nos olhos também. Ainda não de frente. Mas olho. Et quod uideo bonum est. A porta já está fechada. Não trancada. Não barricada. Porque ainda a queria ver abrir-se. E ser feliz. Mas o tempo vai passando. A chave está na minha mão. Em breve estará trancada e barricada a porta e escondida. O barco não o afundo. Não é preciso. Eu virei as costas ao mar. E os dias vão passando. E eu vou deixando para trás o mar e o barco e a porta e todos os símbolos. Até um dia em breve os perder de vista. Em breve. E depois, amigo, será definitivo. E tu sabes. Hélas.
Enquanto te escrevo sinto-te como dantes atrás de mim. O queixo pousado no meu ombro. A tua respiração no meu pescoço. Eram dias luminosos. Lembras-te. Claro que te lembras. Hoje vou ver o Sporting. Já te contei que tenho lugar marcado desde que o novo estádio foi inaugurado? Vou ficar triste se não ganharmos o campeonato. Vou ficar triste se ganharmos. Porque tu não vais estar lá para nos agarrarmos num abraço sem fim e chorarmos os dois de alegria tanta. Um dia disseram-me que era possível amar duas pessoas ao mesmo tempo. Eu acredito que é possível amar uma pessoa e continuar agarrado a uma miragem. E eu, amigo, já não sei qual é a miragem. Porque nem sempre aquilo que parece.
Adoro-te
Foste és serás. És o meu barco. Onde me recolhi quando me expulsaram. Onde me chamaram hóspede querido não náufrago roto. Onde agora me recolho de novo abandonado. Vontade de não mais sair. Não tenho já os olhos no horizonte. Repouso-os neste barco morto seguro. Onde barqueiro invisível me passa a mão pelos cabelos desgrenhados. E me sussurra ao ouvido esquece ignora corta não fales não escrevas não dês importância a quem não ta dá. Eu vou fechando os olhos salgados e murmuro talvez não sei se calhar não pares desculpa. Eu vejo barco e sinto o barqueiro. Nunca me quiseste magoar. Dizes não há barco nem barqueiro. É que não me queres preso a miragem morta. Não me queres miragens. Nem eu mas quero. E tenho passado a vida agarrado a miragens que se desfazem cruelmente quando me baixo para lhes tocar. E enterra-se-me a mão na areia escaldante. E eu prefiro miragem morta que me adora e me acarinha e me refresca. Porque a miragem viva. Sabes aquela canção da Lhasa de Sela. He venido al desierto para irme de tu amor. E eu volto ao deserto.
Monge estilita. Na Síria havia tantos. Aqueles que viviam no cimo de colunas de pedra. Em grego antigo coluna diz-se στήλη, stêlê. Grossas colunas de pedra. Para onde lhes subiam comida escassa e água quase nenhuma. E ali viviam uma vida sob a violência do sol do deserto e o gelo da lua. E tinham miragens e visões. Mas acorrentados à coluna não as podiam seguir. Pudesse eu subir a coluna de pedra tão alta que não me deixasse ver o chão. Agrilhoado. Não fosse subir-me uma miragem pela coluna e o meu espírito fraquejar. E volto ao deserto embarcado em barco seco. Que tú nunca mereciste lo que tanto quise dar. Não estou a falar de ti. Porque tu mereceste tudo o que te quis dar. Volto ao deserto e fujo do mar. Porque o mar mata. E eu não sei nele andar.
E eu dizia está quieto agora não. Porque eu achava que não tinha passado de um capricho. E tu estavas ali à minha frente e eu não te via. Cego da ilusão em que me arrastei durante tantos anos. Mas tu dizias-me. E eu não te ouvia. E sentia a tua respiração no meu pescoço e não queria senti-la porque sabia que não era capaz de lhe resistir. Amarrado agrilhoado a coluna de pedra no deserto. E não era miragem. Porque eu não podia viver sem as tuas palmadas nas costas sem os teus sorrisos traquinas sem os teus disparates. E não sabia. Agora sei. Ou será miragem do meu coração rasgado sangrado. Já não sei. E não quero saber. Porque não mais me agarrarei a miragens. Que el desierto es más tierno y la espina besa mejor. Não me mostraste tudo o que valias e eu sei e eu sabia et excrucior. Porque eu não te dei tempo e te enxotei quando achei que regressava aos braços do amor da minha vida. Et excrucior et excruciabor. E eu sei que te magoei tanto. Não quero pensar nisso. Porque me dói tanto. E não há maneira de o remediar.
Não são comparáveis às tuas as minhas. Eu sei. E penso nisso nos meus momentos mais negros. Eu não sei o que é ser infeliz. Porque eu não estou doente. Porque eu não tenho as dores que tu tiveste. Nem morte aprazada. Não sei o que dói mais. Se as dores. Se ter a data da morte marcada. E eu não sei como tu. E relativizo todos os dias as minhas miseráveis dores quando me lembro do teu sofrimento. E eu não posso sequer ter uma pequena ideia do horror das tuas dores. Sinto-me depois tão mesquinho. Porque aquilo que me esmaga é nada comparado com o que te matou. Pudesse dar-te a vida. Dar-te.
Não olhei ainda bem para mim. Tens razão. Mas já me ergui. E começo a olhar em volta. De mais alto agora. E olho-me nos olhos também. Ainda não de frente. Mas olho. Et quod uideo bonum est. A porta já está fechada. Não trancada. Não barricada. Porque ainda a queria ver abrir-se. E ser feliz. Mas o tempo vai passando. A chave está na minha mão. Em breve estará trancada e barricada a porta e escondida. O barco não o afundo. Não é preciso. Eu virei as costas ao mar. E os dias vão passando. E eu vou deixando para trás o mar e o barco e a porta e todos os símbolos. Até um dia em breve os perder de vista. Em breve. E depois, amigo, será definitivo. E tu sabes. Hélas.
Enquanto te escrevo sinto-te como dantes atrás de mim. O queixo pousado no meu ombro. A tua respiração no meu pescoço. Eram dias luminosos. Lembras-te. Claro que te lembras. Hoje vou ver o Sporting. Já te contei que tenho lugar marcado desde que o novo estádio foi inaugurado? Vou ficar triste se não ganharmos o campeonato. Vou ficar triste se ganharmos. Porque tu não vais estar lá para nos agarrarmos num abraço sem fim e chorarmos os dois de alegria tanta. Um dia disseram-me que era possível amar duas pessoas ao mesmo tempo. Eu acredito que é possível amar uma pessoa e continuar agarrado a uma miragem. E eu, amigo, já não sei qual é a miragem. Porque nem sempre aquilo que parece.
Adoro-te
19.5.07
O ramo
Com estrondo aos meus pés. Um ramo grosso pesado. Eu nem parei. Caiu. Quase quase na minha cabeça. E se me. Quando eu tinha tanto medo de bater com a cabeça. E as dores. Os dias enfiado na cama mole. À espera de que parassem. As dores. E abria os olhos e estavam ali. Aquelas dores de cabeça fracas. Persistentes. Porque era mais do que uma. Atrás. À frente. Dos lados. O quase silêncio nocturno. Embalado no zumbido dos ouvidos. Porque eu ia morrer. Eu sabia. Hoje morria. Tivesse dado um passo mais rápido. E sabes o que me preocupa. É que aquele conjuntivo ali em cima é desiderativo não é condicional.
Pedicabo ego uos et irrumabo
O cu e a boca vos foderei eu,
Aurélio minha bicha, Fúrio meu paneleiro,
que pelos meus versinhos me julgam,
por tão delicadinhos serem, pouco virtuoso.
É que casto deve ser o bom poeta,
não têm de o ser os seus versinhos,
que além do mais têm picante e graça,
sendo tão delicadinhos e pouco virtuosos,
e se podem provocar comichões,
não digo aos miúdos, mas a estes peludos
que não conseguem mexer as duras piças.
Vocês, porque "muitos milhares de beijos"
me leram, acham que eu sou pouco macho?
O cu e a boca vos foderei eu!
(Catulo, carme XVI)
pedicabo ego uos et irrumabo
Aureli pathice et cinaede Furi
qui me ex uersiculis meis putastis
quod sunt molliculi parum pudicum
nam castum esse decet pium poetam
ipsum uersiculos nihil necesse est
qui tum denique habent salem ac leporem
si sunt molliculi ac parum pudici
et quod pruriat incitare possunt
non dico pueris sed his pilosis
qui duros nequeunt mouere lumbos
uos quod milia multa basiorum
legistis male me marem putatis
pedicabo ego uos et irrumabo
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