15.5.07

Epistolário IV

[Tim Fitts - Textured Cityscape 6]
Querido Π.Σ.

Tão bom ler-te. Estou aqui. Não saí daqui. Vou crescendo e mudando. Mas não saio daqui. Porque aqui estou bem. Tenho pensado em ti. Porque não tenho notícias tuas há tanto tempo. Espero que estejas bem. Que estejas. Seria tão irónico. Lembro-me de ti tantas vezes. Aquele miúdo tão louro tão bonito que se lançava para cima da minha cama com voz grossa profunda. Sim sim eu achava-te tão bonito. E tinha tanto medo. Dos teus olhos azuis escuros de aço. Mas aço quente. Quente tu eu frio. Deitavas-te na minha cama e falavas sem parar o dia todo. E eu com tantas dores de cabeça do acidente. E fumavas fumavas e eu não podia fumar. Era tão engraçado. Um dia lembras-te um dia perguntaste onde podias pôr o 'axe'. E eu fiquei arrelampado. Porque não há palavra melhor. Arrelampado. Disse-te que em minha casa não se podia fumar haxixe. Arrelampei-me. E tu riste-te e apontaste para a cinza do cigarro e disseste não não este 'axe'. Rimos tanto. Ria-me tanto contigo. Mesmo quando. Quando. Ah e lembras-te daquela vez em que subia para tua casa e estavas no cimo das escadas em pijama e com um isqueiro aceso. E deitavas fogo ao pijama e rias muito muito porque aparecia uma chama grande que logo se apagava.

Empacotado de um lado para o outro. Ora cá ora lá. Ninguém te queria. E eu gostava tanto de ti. Não percebia até que ponto. Não sei. Na altura eu achava que não. Lutava contra mim mesmo. Hoje não sei. Se calhar. Não posso esquecer-me dos arrepios que me causavam os teus olhos azuis escuros de aço. E como me apetecia abraçar-te. Perder os dedos nos teus cabelos cor de palha seca ao Sol. Depois havia o jogo do beijo. Saltavas à minha volta com um plástico daqueles que envolvem os maços de tabaco. E punhas os teus lábios em forma de beijo e fechavas os olhos e punhas o plástico em frente aos lábios e dizias beija beija não tem mal eu tenho o plástico. E eu ficava vermelho e protestava não não está quieto até me render perante a tua insistência e também eu pôr os lábios em forma de beijo e aproximar-me dos teus. Tiravas o plástico quando sentias o calor da minha cara quase quase a tocar-te. Mas eu parava. Porque eu fazia batota. Não fechava os olhos. E às vezes queria não parar. Mas eu tinha tanto medo. Aterrorizavas-me. Por isso nunca quis ficar a dormir contigo. Eu tinha então dezassete ou dezoito tu tinhas quinze ou dezasseis. Não. Eu queria. Mas sabia o que aconteceria se. E eu tinha tanto tanto medo. Tanto.

Como esquecer-me dessa noite. Abrir a porta e ver-te ali tão bonito tão grande maior do que eu. Não te via há tantos anos. E tu com aquele teu sorriso que não era sorriso era riso. Os teus dentes fortes brancos. Abraçaste-me tanto e eu pensava que morria ali de alegria e de costelas partidas. Sentir o teu corpo outra vez. Agora tão mais perto. E lembrei-me de um dia em Santa Cruz há anos e anos e tu sentaste-te ao meu colo. Tenho uma fotografia desse dia. Achei-a há pouco tempo e pedi que ma digitalizassem. Está numa das minhas páginas. Não digo em qual. Há gente a ler-nos, sabias. Quem me conhece sabe onde a procurar. Mas ali o teu cabelo está tão escuro. Não sei se da sombra. Não interessa. Abraçado a ti sentindo o teu cheiro doce. E a sentir uma coisa diferente em ti. Estavas tão sereno. Ou seria triste.

Um chá. Era um chá. Lembras-te. Falámos das nossas vidas. Eu falei da minha vida. Tu pouco falavas. Só rias tão triste. E eu estranhava. Porque tu dantes falavas tanto. E depois de muitas tentativas disseste. Sim, posso dizê-lo aqui. Não é segredo para quem me conhece. E tu também não fazias segredo. Disseste-me que gostavas de rapazes com o teu peculiar sotaque. Que esperavas que eu não me escandalizasse. Passaram-me pelos olhos todos aqueles episódios. O jogo do beijo. Ou quando explicavas que não te sentias bem nu no balneário com os outros rapazes. Os convites para dormir contigo. Os meus terrores. E fiquei sem falar. Não foi para te chatear. Foi porque eu fiquei arrelampado. Porque nunca me tinha passado pela cabeça. Apesar do jogo do beijo. Apesar de tudo. E finalmente disse eu também. Rimos tanto. Riste tanto finalmente. E ficámos a olhar um para o outro. Olhos de aço teus em olhos de aço meus. A pensar no passado e no presente. Acho que te passei a mão pelo braço.

Fui-te pôr a casa da tua irmã. E sentia que ainda não me tinhas dito tudo. Estavas de novo tão calado tão triste. Depois paraste. Olhos no chão. Havia mais qualquer coisa. Tão longe daquele miúdo irrequieto sempre a falar sempre a rir. Olhaste para mim e disseste. Como um tiro de pistola. E eu parei e o meu coração parou. E morri ali um bocadinho. Não sei se choraste. Eu chorei. Por dentro. Como se costuma dizer. Fomos conversando poucochinho. Eu sem voz. Seguias um pouco à minha frente. Pernas maiores do que as minhas. Aceleraste um pouco. Paraste e voltaste-te para mim. Agarraste-me na cabeça e deste-me um beijo. Na face. Adoro-te. Tive tantas saudades tuas. Abraço tão grande.

Houve uma noite em que me ligaste a chorar. Sim. Eu lembro-me. Perguntei-te se querias que te fosse ver. Quando cheguei estavas mais calmo. Mas os olhos vermelhos desesperados. Disseste-me que tinhas chorado tanto e que não podias abraçar a tua mãe porque tinhas medo de. E eu expliquei-te que não. E passei-te a mão pelo cabelo curto curto cor de palha seca ao Sol. Tinha tantas saudades tuas. Lembras-te quando querias ir comigo à discoteca. E era daquelas que só deixavam entrar casais. E tu disseste que te vestias com as roupas da tua irmã e te calavas para não te ouvirem a voz grossa. Teria funcionado. Eras tão bonito. Cara de menina com barba branca invisível. Eras tão louco.

Vês. Tu escreves-me a falar de ti. E eu respondo e praticamente só falo de ti. Vou falar um bocadinho de mim. Por aqui estou. Daqui não tenho saído. Mudei tanto. Estou mais sereno. Mais desencantado. Aquela relação acabou. Caiu de podre. Tu bem dizias. Mas eu estava tão cego. Continuo a ser professor. É a alegria da minha vida. No dia em que não conseguir dar aulas preparem-me o funeral. Porque eu gosto tanto do que faço. Trabalharia de graça. Já terás lido por aqui que amo quem não quer nada comigo. Não vou contar tudo outra vez. Começo a ficar tão cansado. Ele é um tipo extraordinário. Se não fosse não o amaria assim. Nunca tinha conhecido ninguém assim. Com quem posso falar de tudo. E continua no meu pensamento dia e noite. E ainda me deito e olho para o lado e me lembro de quando dormíamos abraçados. E não percebo. E queria tanto tê-lo de novo nos meus braços. Mas os dias vão passando. E com eles também eu. E depressa chegará o dia em que não quererei voltar para trás. Porque é verdade que perdemos os dois. Mas a cada dia que passa diminuem as minhas dúvidas sobre quem terá ficado mais a perder. E vou-me fechando outra vez. Ficando como quando me conheceste.

Adoro-te muito. Um beijo grande.
Α.Φ.

3 comentários:

ritagrama disse...

ARTE POÉTICA

Olhar o rio feito de tempo e água
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que os rostos lá passam como a água



Jorge Luis Borges
O FAZEDOR

Anónimo disse...

tenho visitado seu blog com alguma regularidade e indiquei aos leitores aqui no Rio. Um abraço
http://www.tribuna.inf.br/
Antônio Dutra

André . أندراوس البرجي disse...

Olá Antônio, muito obrigado pela divulgação. Mas eu ainda não sou escritor. Um dia talvez. Abraço.