12.5.07

A morte de Paulina

[British Library, Royal MS 12 F. xiii, Folio 10v]

Não morri contigo. Amarraram-me por ordem de Nero e sararam-me os pulsos cortados sangrados. Disseram-me que estava proibida de morrer. Isto tu não viste. Porque tinhas pedido que me levassem do pé de ti. Tinhas receio de que a visão da minha morte te enfraquecesse a tua resolução de morrer. Assim já não te vi morto sufocado nos vapores do banho quente. Dizem-me que morreste sereno. Tranquilo. Não esperava de ti outra coisa. Suportar tolerar. Pediste-me que não te chorasse. Sabias que me pedias o que eu não podia cumprir. Chorei-te. Choro-te enquanto escrevo estas palavras que nunca escrevi nem escreverei. Porque eu Paulina nunca poderia escrever-te estas palavras a ti Lúcio.

Não morri contigo. Tua mulher fui. Contigo me deitei. Contigo acordei. A ti te amei. Com uma força que não sabia possível. Nunca to disse. Não queria que me soubesses presa de tais paixões. Ser-te-ia intolerável. Mas tu sabias, não sabias. Como era possível não saberes. Mas ainda assim deixaste-me. Morreste. Porque quiseste. Foi tão fácil para ti. É que poderíamos ter fugido. Tu, um dos homens mais ricos que Roma já viu. Mesmo que te preocupassem as coisas terrenas. Não te teria sido difícil deixar a cidade. Refazer os poucos anos que nos restavam em outro lugar. Mas não. Era-te demasiado difícil. E assim preferiste abandonar-me. Fugir. Da maneira mais cruel. Tu sabias que me destruirias o coração. Que me destruirias. Tu sabias. Mas não hesitaste. Fizeste o que era mais fácil para ti. E eu fiquei. Sozinha. Destruída. Morta em vida. Porque não me deixaram morrer contigo. E tu sabias que não me deixariam morrer contigo. E eu não me deixaria morrer contigo. Porque te amava. Mais do que a mim mesma. Mas tu não. Tu dizias que não me amavas. Não. Tu dizias que me amavas. Depois deixaste de me amar. De repente. Apesar de nada ter mudado. Deixaste de me amar. De um dia para o outro. E eu nunca te pedi que me amasses. Jamais. Não seria egoísta a esse ponto. Chegava-me saber que te amava e que tu estavas ali ao meu lado. Que me podia abandonar nos teus braços fortes. Que apreciavas a minha companhia. Que não te repugnavam os meus beijos. Chegava-me. Fazias-me feliz. Mas tu deixaste-me e foste morrer.

Nunca te pedi que me amasses. Foste tu que que mo disseste e eu ainda tinha medo de to dizer. Porque para mim as palavras não dizem. As minhas mãos dançando ao de leve na tua pele doce. Eram elas que te diziam o meu amor. Lembras-te daquele fim de tarde. Deitados os dois nus destapados. E eu passava os dedos leves leves sobre a pele do teu peito e da tua barriga. E cada toque dizia amo-te amo-te. Não eram precisas palavras. Porque as palavras matam. Agarrada a ti nos momentos de paixão suspirei-te amo-te ao ouvido amo-te sem mover os lábios senão para te beijar a pele doce. Não precisava de to dizer. Não to queria dizer. E tu não precisavas de mo dizer. E eu não queria que mo dissesses. Mas disseste. E continuaste a dizer. Mesmo quando achavas que não o sentias já. E isso, Lúcio, dói-me.

Nunca te pedi que me tomasses como mulher. Foste tu que o fizeste de tua livre vontade. Lembras-te. Eu receosa tímida olhos no chão. E tu agarraste-me o coração e não mais o largaste. Eu hesitei, no início. Nunca to tinha dito. Mas hesitei. Porque te achei demasiado pronto para um compromisso sério. E eu não sabia se era capaz. Tinha medo. Medo de me entregar. De me expor. Porque me achava feia e imperfeita. Maçadora e sensaborona. Vulgar. Mas tu conquistaste-me com o teu ser. E eu perdi os meus medos. Entreguei-me a ti. Tota tua. Como nunca pensei ser capaz. E tu não me contiveste. Nem a ti. Não. Tu amaste-me de uma maneira que eu julgava impossível. Sim, tu amaste-me. Que eu só tinha ainda lido em poemas de amor e achava que não passava de fantasia literária. A ponto de ter receado não te conseguir acompanhar na intensidade do teu sentimento. E então, Lúcio, quando me tinha entregado desta maneira avassaladora. Quando te tinha revelado os fundos mais secretos da minha alma. Então, Lúcio, abandonaste-me e foste morrer.

Nunca te pedi que te comprometesses. Como podia fazer algo que te desagradasse que te prendesse que te comprometesse. Porque eu mesma sou livre. Sempre fui. Foste tu que me tomaste como mulher. Foste tu que me chamaste mulher antes de eu te chamar marido. Foste tu que me disseste e repetiste quero estar sempre contigo (quando eu ainda tentava perceber a intensidade do que me ia na alma). E também eu queria estar contigo. E eu sentia a tua falta assim que nos separávamos nem que fosse por algumas horas. Mas nunca te pedi (louca seria) que estivesses sempre comigo. Nunca te pedi (louca louca seria) que quisesses estar sempre comigo. Porque nem eu quero estar sempre comigo. E tu começaste a sentir-te obrigado a estar sempre comigo. Mas não é isso que dói, Lúcio. O que me dói é que eu nunca te pedi que estivesses sempre comigo. É isso que me dói, Lúcio.

Nunca te prendi. Sempre te disse que um dia te fartarias de mim. Que me trocarias por mulher mais bonita. Tu rias-te e dizias não sejas tonta. E não to dizia com mágoa nem com azedume. Dizia-to resignada. Por isso nunca te prendi. Sempre te dei a liberdade para tomares as tuas decisões para levares a tua vida sem que eu fosse empecilho. Ficava feliz quando te sabia com os teus companheiros. Porque com eles eras tão feliz. E quando eras feliz eu ficava feliz. E se a tua felicidade passasse por estares longe de mim, então isso fazia-me feliz. Nunca te recriminei. Nunca te exigi que abdicasses das tuas coisas. Nunca da minha boca ouviste queixume por partires em viagem (e tantas vezes partias em viagem). Porque eu amava-te, Lúcio, e se te amava não podia ficar triste por levares a vida que escolheste levar. Sempre respeitei as tuas decisões. E sorria-te quando me dizias Paulina amanhã parto para _ e não sei quando volto. Porque sabia que era importante para ti. Eu era tão feliz, Lúcio. E para essa felicidade eu não precisava da tua presença constante. Precisava apenas de saber que estavas ali. Que me poderia voltar a aninhar nos teus braços quando voltasses de viagem. E isso bastava-me. Da minha boca nunca ouviste nem ouvirias nunca queixas da tua ausência. Porque quando se ama, Lúcio, não se fazem exigências. E por isso eu era tão feliz. Mas tu, Lúcio, preferiste morrer.

Nunca te obriguei a nada. Nunca te censurei. Só agora que morreste choro a minha mágoa. Porque sempre me fizeste feliz, Lúcio. Ah sim. Fui a mulher mais feliz do mundo. Enquanto não decidiste morrer nunca tive razões para me queixar. Fizeste-me tão feliz. E por isso quando me comunicaste a tua decisão de me abandonares e morreres eu não queria acreditar. Porque ainda horas antes. Não, Lúcio, não quero lembrar-me porque me dói tanto tantos anos depois. E dançaram-me na garganta palavras desesperadas não me deixes não me abandones não me mates. Mas engoli-as. E chorei as lágrimas de uma vida.

Às vezes quando estou tão sozinha tão triste pergunto-me se. Se tu por milagre regressasses do mundo dos mortos. E me dissesses Paulina, perdoa-me, estou aqui, voltei e quero estar contigo. Às vezes pergunto-me. Se te aceitaria de volta. E depois choro e digo que sim. Que se voltasses dos mortos te tomaria de novo como marido. E de novo nada te exigiria. Amar-te-ia. Tentaria fazer-te o homem mais feliz do mundo e tu far-me-ias a mulher mais feliz do mundo. Mesmo sabendo que voltarias a morrer sem te preocupares comigo. Não me apoquentaria. Já estaria preparada. E poder ter-te nos meus braços sem me preocupar com o futuro. Mas há dias em que me dói mais o coração. Em que me lembro de como decidiste morrer de repente. E à medida que os anos passam esses dias são mais frequentes. E se eu não fosse morrer agora, um dia esses dias seriam mais do que aqueles em que choro e digo sim.

Porque eu, Lúcio, amava-te como nunca ninguém te amou. E tu não quiseste o meu amor e preferiste ir morrer. Mas não é isso que me dói, Lúcio.

Quis morrer contigo, Lúcio. E cortei contigo os pulsos com a mesma espada. Cega de dor. Porque te amava tanto. E não me via viver sem ti ao meu lado. E depois vieram aqueles soldados e levaram-me. Amarraram-me e sararam-me os pulsos sangrados. E disseram-me que eu estava proibida de morrer. E eu lembrei-me do teu olhar indiferente e de me dizeres que não te chorasse. E então compreendi, Lúcio, que tu nunca soubeste o que é o amor. E compreendi, Lúcio, que não fui eu quem perdeu. E é isso, Lúcio, que me dói.

Agora que te disse tudo, Lúcio, agora que chorei a minha mágoa final. Agora, Lúcio, agora posso morrer. Sozinha.

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