13.5.07

Epistolário I

[Frank Hunter - Negative 230: Stairs]

hoy cruzo la frontera
(cantado por Lhasa de Sela)
Ρ.Α. ao seu André

Esta carta nunca a poderia ter escrito eu. Porque aqui onde estou não estou em lugar nenhum. Aqui não há lugar nem tempo. Só o nada. E no nada não posso viver. Porque eu não vivo. Estou nas memórias tuas e dos que se lembram de mim. E também por isso nunca poderia ter escrito esta carta. Sabes o que é o nada? Eu também não sei. Porque morrer, amigo, é como adormecer sem sonhar e não acordar. Agora estás aqui e sentes e sonhas. No segundo seguinte acabou. Nem negro nem luz. Nada. E depois ficamos como recordação. Até também ela morrer. À medida que os que nos recordam vão morrendo.

Mas não te quero entristecer. É que te escrevo porque te vejo de novo tão. E lembro-me de quando começámos a nossa amizade. Também então te tinham. Está bem, eu não digo. Dói-te e eu sei. E eu sou teu amigo. Os amigos não se magoam. Lembras-te. Tu é que costumas escrever lembras-te. Mas lembras-te. Falávamos no IRC. E tu estavas tão triste. E eu brincava contigo e perguntava-te se te animava se eu fosse ter contigo só com uma tanga de Tarzan. E tu riste tanto. Imagino eu, pois não estava ao teu lado para ver. Mas não acreditavas que eu fosse mesmo ter contigo. E eu fui. E depois pus-me debaixo da tua janela a mandar pedrinhas. E vieste à janela e eu estava ali a rir para ti. No meio da estrada. Não ia de tanga de Tarzan. Mas que importava. Tu riste outra vez tanto. Começou ali a nossa amizade.

Então dizia-te que ele não merecia que chorasses assim. Quer dizer, tu não choravas. Nunca te vi chorar. Nem tu a mim. Mas eu sabia que choravas por dentro, como se costuma dizer. De resto só te via os olhos frios. E os lábios apertados numa angústia sem tamanho. O teu silêncio esmagado. Como te vejo agora. Dez anos depois. Como é possível teres caído no mesmo erro. Mas deixa-me dizer-te primeiro que me afligia tanto ver-te assim. Tu sabes. Nunca consegui fingir. Os meus olhos diziam-te tudo. E aquelas vezes em que não dizíamos nada e ficávamos uma tarde inteira só a sentir a presença um do outro. Isto é amizade. E. Não, eu não digo. Tu sabes. Nunca falámos disto. Mas eu sabia. E fingia que não sabia. Fingia mal. Porque eu não sabia fingir aquilo que não sentia. E dizia-te que ele não te merecia. E os teus olhos deitavam fogo. Fogo azul frio. Eu dizia-te olha para ti e olha para ele. Olha o que tu és e olha o que ele é. E tu calavas-te com um olhar tão zangado. Sorria-te e calava-me. Não valia a pena. Haverias de descobrir por ti. E descobriste. Demasiado tarde. Mas o que importa é que descobriste.

Agora vejo os teus olhos mortos e a tua boca arrepanhada num desespero sem nome. E sinto-te tão perto de mim. E não te quero. Porque isto é nada. E no nada não há perto nem longe. Outra vez. Dez anos depois. Devias ter aprendido. Lembro-me de me dizeres que a tua vida era tão estúpida. Porque. Não. Eu não digo. Se tu quiseres contar a estas pessoas que te vêm ler a alma conta tu. Nunca te achei capaz disto. Eras tão reservado. A tua palavra preferida era o silêncio. E ninguém te conseguia ler a alma. Nem eu. Quase nunca. Porque às vezes. Aqueles teus olhos de aço. Aço frio esverdeado. Ou assim às vezes parecia. Porque é que te entregaste dessa maneira. Tu já sabias. Já passaste por isto. Há dez anos. E se calhar. Não me leves a mal. Eu não o conheço. Mas será que. Já pensaste se não estarás de novo a chorar em vão? Eu sei que vais ficar muito zangado. Mas gostava que pensasses nisto. Promete-me. Lembra-te do que aconteceu há dez anos. Pensa nisto. Olha para ti. Levanta-te e vai olhar para ti. E vai ver se valerá a pena.

Despeço-me com um abraço forte forte. Daqueles que só tu sabias dar. Não tenho saudades tuas. Porque aqui é o nada. E eu só estou na tua memória.

Teu,
Ρ.Α.

P.S.: Quase não te reconheci. Quantos quilos perdeste? Trinta? Quarenta? Estás tão bonito. Como eras quando.

Sem comentários: