18.5.07

Epistolário VII

[Guirlandaio - Retrato de jovem]
Fin hará la profecía
dada por mi mala suerte
qu'es triste el ánima mía
fasta que venga la muerte

(anónimo espanhol, s. XV/XVI)

Ρ.Α. ao seu André

Eu sei que não me pediste nunca nada. Nem eu a ti. Porque tu não és de pedir. E por isso não me pedes que tenha saudades tuas. Tê-las-ia, se não estivesse. Tu sabes. Porque as tinha tantas quando. Mas se as pudesse ter não as teria. Porque como poderia ter saudades tuas se estou tenho estado estarei todos os minutos da minha inexistência na tua memória.

Não quero ser teu barco. Queria. Porque se o fosse é porque estaria. Mas eu não estou nem sou. E onde vês barco não há barco nem barqueiro. Tira os olhos do horizonte. Barco sou mas morto. Não embarques em barco morto. Não te lances ao mar. Porque o mar mata quando nele não sabes andar.

Eu mostrei-te o que valia. É verdade, não tive tempo. Tu não mo deste. E eu não to pedi. E mostrei-te tanto. Quase tudo. Tão pouco tempo. Não te culpes. Eu acredito que mais não te podia dar. E tu acreditas no que eu acabo de escrever? Nunca soubeste nunca soube nunca saberemos. E é isso que te tortura. Poderia aliviar-te e dizer não não eu não tinha mais nada para te mostrar. E tu respiravas fundo e viravas esta página. Mas tu sabes que não é verdade. Que havia tanto tanto. وأنا صديقك . Obrigado. Eu tinha-te pedido para me pores a escrever árabe. E eu sou teu amigo. Foi o que escrevi ali. E se sou teu amigo não te vou mentir. Magoaste-me tanto. Sentava-me atrás de ti como dantes. Mas agora tu não olhavas para trás. Quando te dava palmadas nas costas ou te dizia disparates e tu dizias está quieto agora não. E era sempre agora. Nunca era depois.

Depois perdoei-te. Tu sabes. Soubeste. Naquele dia. O dia a seguir. Eu lembro-me de ti. Olhos perdidos em cara hirta de dor. Boca apertada pronta para se abrir em pranto contido. Mas não. Viravas a cabeça de um lado para o outro. Olhos em movimento frenético. E depois metias as mãos nos bolsos e depois tirava-las e apertavas o casaco. E paravas e andavas. E olhavas para o céu e olhavas para onde eu ia metido enfiado apertado e passava-te uma dor horrível nos olhos. Menos horrível do que as minhas. Que só esquecia quando dormia. E eu dormia tanto. Lembras-te daquela tarde em que me entraste no quarto e eu estava a acordar. Disse-te que era para esquecer as dores. É como tu quando te deitas e tomas aquelas drogas todas. Mas يا صديقي lembra-te sempre de que as tuas dores não matam. Não me leves a mal. É que te vejo tão. E acredita que eu gostava de estar tão como tu. Porque era sinal de que eu era de que eu estava. E tanta vez te olhei e pensei gostava de ser como tu que não estás doente e pensas que és tão infeliz e não sabes o que é ser infeliz e ter a data da morte marcada.

Por isso acorda يا صديقي e olha bem para ti. Porque tu ainda não olhaste bem para ti. Porque se já tivesses olhado bem para ti não dizias que ias fechar a porta. Se já tivesses olhado bem para ti já terias fechado e trancado e barricado a porta. E afundado o barco. Fico tão contente de ver que já estás tão diferente. Porque já começaste a abrir os olhos e a olhar para ti. Mas não bem. Ainda. De te ver despedir o barco. Mas falta ainda ver-te virar as costas ao barco. Porque quando me dizes que ainda olhas para trás no caminho espinhoso e que ainda tens a mão na maçaneta a ver se a porta se abre. Porque quando mo dizes eu sei que ainda não afundaste o barco. Mas também te vejo pronto. E sei que é uma questão de tempo. Pouco. Muito pouco. E que em breve me dirás يا صديقي afundei o barco e mesmo que voltasse eu agora não o queria. Porque o sinto nos teus olhos.

Eu estou aí contigo. E tu sabes. Só tens de abrir os olhos. E ir à janela.
Adoro-te.

Ρ.Α.

Sem comentários: