13.5.07

Epistolário II

[Evelyn Williams - Icarus]

porque el alma prende fuego cuando deja de amar
(cantado por Lhasa de Sela)

Π.Σ. a André

André? Ainda aí estás? Não te vejo há tanto tempo. Não não: não sou eu que estou a escrever, és tu. Mas é como se fosse eu. Porque os anos vão passando. E francamente não sei se ainda aqui estou. Seria irónico. Deixei de dar notícias. Quererá dizer que. Não sei. Não sabes. Não interessa. E depois. Lembras-te de quando nos conhecemos. Tu estavas de cama a recuperar de um acidente. Ah não consigo deixar de me rir. Não de ti. De mim. Quase não falava português. E tu olhavas-me e pensavas quem é este par de olhos azuis e estes cabelos louros quase brancos. Eu sei que era isso que primeiro chamava a atenção em mim. E tu reparaste. Em Portugal não há gente loura. Não. Há. Mas não é como na minha terra. Depois era o meu frenesi incontrolável. E já ninguém reparava nos meus olhos nem no meu cabelo.

O meu pai não me queria a minha mãe não me queria. Acho eu. Porque me empacotavam e enviavam para aqui e para ali. Ora fica tu com ele ora fica tu. E tu eras tão diferente. Tu gostavas de mim. E eu gostava da tua serenidade. Precisava dela. Lembras-te de quando eu começava a fingir que era deficiente mental e tu rias até às lágrimas e as pessoas olhavam para ti com ar de quem diz que vergonha a rir-se do pobre coitadinho. Era tão divertido. Depois deitava-me ao teu lado na cama e tu olhavas assustado a pensar o que que é que este quer. Eu tinha catorze e tu tinhas dezasseis. Ninguém me suportava porque eu nunca estava quieto e nunca me calava. Na altura era uma diferença de idades tão grande. Agora não. Tu trinta e cinco eu trinta e três. Mas tu tinhas paciência. Tinhas uma paciência sem limites. Quando a minha irmã se fartava de me aturar mandava-me para tua casa. E tu recebias-me com a tua cara serena.

Não sei se na altura já. Mas lembras-te. Eu queria tanto que ficasses a dormir comigo. Porque eu não gostava de dormir sozinho. Mas tu não querias. Não sei se tinhas medo. Isto já eu tinha dezasseis e tu dezoito. Fazemos anos no mesmo mês. Mas nunca os passámos juntos. E eu brincava contigo tanto. Ah, havia aquele jogo em que eu punha à frente da boca um plástico transparente e dizia agora dá-me um beijo. É por cima do plástico não há problema. E quando vinhas quase quase quase eu tirava o plástico. Mas tu davas por isso a tempo e paravas. Ah tu paravas e eu não queria que tu parasses. Não é que eu coiso por ti. Era pela experiência. Sim, está bem, não eras feio. Não és feio. Se calhar se eu tivesse pensado nisso. Mas era só pela experiência. E a ti nunca te percebi. Os teus olhos de aço não me diziam nada. Mas aquela coisa do plástico. Eu via-te hesitar. Pensaste algumas vezes em te deixar ir. Aliás só isso explica que continuasses a entrar num jogo cujo fim conhecias tão bem. E eu era tão bonito não era? Ainda sou. Eu bem te via mergulhado nos meus olhos azuis escuros.

Esperava-te no cimo das escadas às vezes em pijama e gritava-te olá. Depois já não me lembro o que fazíamos. Fumávamos e dizíamos disparates até tu te ires embora apesar dos meus pedidos para dormires comigo. Não sei porque é que me estou a lembrar destas coisas todas. Depois houve aquela vez em que foste para Lisboa para a faculdade e me disseste até logo. E quando voltaste à noite já eu ia a caminho do meu país. Porque me tinham empacotado e enviado de novo de repente. E naquela época não havia telemóveis para nos avisarmos. Depois depois já não me lembro. Ah, lembras-te de quando eu apareci anos depois com um telemóvel e ficava toda a gente a olhar para mim porque aí ainda não se usava. Ah ah ah. Depois estivemos anos sem nos vermos.

Já viste que te estou a escrever uma carta e só falo de mim e não falo de ti. Ao contrário daquele rapaz ali em baixo (é um rapaz não é?) que te escreveu e falou de ti. Ele dizia que não tinha saudades mas eu não percebi o que ele queria dizer. O meu português já está tão esquecido. Se não fosses tu a escrever esta carta eu não seria capaz de a escrever. Se visses a tua cara quando tantos anos depois toquei à campainha e tu abriste e viste esta torre loura de olhos azuis escuros e físico imponente e riso aberto. Tão diferente de quando nos tínhamos visto pela última vez. Foi o quê. Há onze anos. Já tinha tantas saudades tuas. Notei logo alguma coisa diferente em ti. Mais sereno. Não sei, talvez fosse isso. Estavas mais sereno ainda do que eu me lembrava. Então ganhei coragem para te dizer aquilo que já sabias e que quem está a ler isto também já percebeu. E tu fizeste um silêncio longo e riste e disseste que tu também. Foi tão divertido. Eu cheio de medo e tu afinal também. Sim sim sim. Sacana. Aquele silêncio foi só para me meteres medo. Mas depois havia mais outra coisa que eu tinha de te contar mas que não quero contar aqui em frente a esta gente toda. E aí não nos rimos. E o teu silêncio foi sentido. Depois acompanhaste-me a casa da minha irmã e eu dei-te um beijo na cara. Não, não foi na boca. E desta vez não precisámos de plástico. E tu não recuaste. Ficaste a olhar para mim tão atrapalhado. E aquela noite em que te telefonei a chorar descontrolado. Porque não queria morrer. E tu disseste-me que eu não ia morrer. E eu disse que não fosses parvo que eu sabia que ia morrer. Eu era tão novo e tão bonito. Depois fui-me embora. Mas vimo-nos no ano seguinte. E no outro. E depois nunca mais.

Aquele rapaz ali em baixo diz que perdeste peso. Quando nos vimos pela última vez eras normal, não estavas gordo. O que te aconteceu para engordares tanto? E de que fala ele quando fala de tristeza? Os olhos que te vejo são os mesmos de quando nos vimos pela última vez. A não ser que da última vez. Mas não. Eram os teus olhos de aço. Eu conheço-os bem. Talvez estejam agora mais tristes. Mas nós estamos mais velhos. E com a idade vem a tristeza. Pois pois pois. E um dia ver-nos-emos outra vez. Espero que continues como eras. Sereno. Tranquilo. Adoro-te.

Beijo grande
Π.Σ.

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