28.5.07

Epistolário XIII

[British Library, Royal MS 12 C. xix, Fólio 49v: a Fénix]

he venido a ese centro
de la nada pa' gritar
que tu nunca mereciste

lo que tanto quise dar
(cantado por Lhasa de Sela)


André ao seu querido Ρ.Α.

Leio e releio a tua última carta. No meu frasco negro de ferro não tenciono levar mais do que as minhas cinzas e algum pólen e alguma semente perdida. O remorso e a culpa e a mágoa e o medo e o amor. E a dor. Não me assombrarão. Não os levo comigo. Ficam nestas terras. Para se lançarem sobre quem descuidado passe perto. Enquanto não, devoram-me as entranhas. E tornam-me tão pesada a vida. Tão tão. Que às vezes. Tu sabes. Tu sempre soubeste. E olhavas para mim e dizias não não por favor não. E eu não. Porque tu estavas. Porque tu eras. Levantado do chão. Tinhas tanta força. Sabes que hoje levantei trinta e dois quilos. Sim. Trinta e dois. Mas tu eras mais forte. Estendias-me o braço e eu agarrava-te e. Agora não estás nem és.

Não escrevas mais que te fugi. Não escrevas mais que não te dei tempo. Não escrevas mais que te troquei. Não escrevas mais que te deixei. Não escrevas mais que te abandonei. Não escrevas mais que. Não escrevas. Porque eu não esqueci. Porque me dói tanto. Porque se eu pudesse voltar no tempo. Porque se eu não fosse tão estúpido. Porque me dói tanto tanto. Porque eu estou. Porque eu sou. Ainda. E assombram-me os dias e sufocam-me as noites. E não vejo porta de saída senão. Rodar devagarinho a maçaneta. Tão devagarinho. Até lá agarro-me a ti morto. Porque morto me dás mais do que os vivos. Porque tu não me desiludes. Porque tu nunca me foste inconstante. Nunca me negaste num dia aquilo que dizias no anterior. Nunca me disseste num dia aquilo que negavas no anterior. Nunca inventaste histórias para justificares as tuas decisões mais difíceis. Sempre disseste claramente. Tudo. E por isso nunca me magoaste. Nunca me magoarás. Porque tu. Por isso me agarro a ti morto e me deito lançado desesperado na tua sepultura.

Voltarei. Mais forte do que nunca. Mas antes vou passar pelo fogo. E deixar nestas terras o que me mata me come por dentro. E um dia voltarei. Com tanta força. E então levantarei muito mais do que trinta e dois quilos. Já viste. Trinta e dois quilos.

A cada dia mais me apetece não estar não ser não ver. Si un día me voy e ya no vuelvo yo. Ayer te tuve en mis brazos y hoy, como un grano de arena, estás escondido de mi. Lhasa.

Adoro-te.

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