5.5.07

Qui habet aures audiendi audiat

[Bosch - Tentação de Santo Antão (pormenor do painel central)]

Havia um rei mouro em Bagdade que tinha uma esposa que era uma rainha moura. Claro. Tivesse ele uma esposa que fosse uma rainha cristã e não faria sentido esta história. E o rei mouro um dia partiu para a guerra longínqua no país dos persas mas antes de partir a rainha moura chegou-se-lhe ao ouvido e disse حبيب quando voltares vitorioso انشاء اﷲ da guerra longínqua no país dos persas traz-me presente valioso porque se eu não te pedisse isto não faria sentido esta história. E o rei mouro tomando a rainha moura nos seus braços disse حبيبتي quando eu chegar da guerra longínqua no país dos persas vencedor انشاء اﷲ podes estar segura de que receberás presente tão valioso como rainha moura nenhuma recebeu até hoje porque se assim não fosse que sentido faria esta história. E beijando-se nos lábios sussuraram em uníssono انشاء اﷲ e o rei mouro montando o seu cavalo negro partiu para a guerra longínqua no país dos persas. A guerra correu mal ao rei mouro que foi capturado pelo rei dos persas e lançado numa masmorra húmida e quente em Shiraz. Isto era só para mostrar que eu sei o nome de uma importante cidade persa porque na verdade não adianta nada para a moral desta história saber se o rei foi preso em Isfahan, Shiraz ou outra qualquer cidade persa. E para que esta história faça algum sentido tenho de resolver rapidamente a intriga. O rei dos persas decidiu que se queria acabar de vez com a ameaça do rei mouro e dos seus exércitos então tinha mesmo de eliminar o rei mouro. Então o rei dos persas mandou que lhe trouxessem o rei mouro acorrentado. O rei mouro chorava aflito e dizia سيدي não é por mim que choro é pela minha mulher a rainha moura que me desespera em Bagdade e a quem prometi o mais valioso dos presentes. Se me queres matar permite-me ao menos que lho envie pois se não o fizer esta história não fará qualquer sentido. سيدي, respondeu o rei dos persas, e que presente é esse. E respondeu o rei mouro سيدي para a rainha moura minha esposa só há um presente que se lhe possa igualar em valor. E que presente é esse, perguntou o rei dos persas. قلبي يا سيدي respondeu o rei mouro. Assim seja, suspirou o rei dos persas. Agora matai-o depressa. E enquanto esperava a espada persa no seu pescoço entoava o rei mouro لا إله إلاَّ الله ومحمد رسول الله que é como quem diz em língua cristã não há outro deus senão Deus e Maomé é o Seu profeta. E pensava na sua rainha moura em Bagdade e no presente mais valioso de todos que lhe enviaria assim que a espada lhe golpeasse o pescoço. E quando a espada lhe caiu sobre o pescoço pensou حبيبتي não é por mim que receio a morte é por ti porque não te quero perder. Em Bagdade a rainha moura tecia no seu tear quando chegou o mensageiro com uma caixa de sândalo que dizia em bela caligrafia قلبي لك . E quando a rainha moura abriu a caixa de sândalo viu o presente valioso mais valioso que alguma vez rainha moura recebera vindo das longínquas terras persas. O coração do rei mouro sem sinal de corrupção. Porque era aquele o único e mais valioso dos presentes. E a rainha moura chorou o rei mouro e para sempre lhe guardou o coração incorrupto. E só assim faz esta história algum sentido. Porque na vida há sempre os que perdem mas há uns que perdem mais do que os outros. Mesmo quando parece que.

ὁ ἔχων ὦτα ἀκουέτω

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